CESARINY OU DO PICTO-ABJECCIONISMO





IN: PACHECO VERSUS CESARINY
FOLHETIM DE FEIÇÃO EPISTOLOGRÁFICA
LUIZ PACHECO
Editorial Estampa, Lisboa, 1974

Intensamente livre um homem tomou esta madrugada o comboio para o Porto. Na bagagem, uma caixa com algumas telas, tinturas, borradas, poemas-abjectos. Não é um pintor de arte. É melhor um poeta. Um viajante sem fronteiras. Um caso sério. Quando Mário Cesariny de Vasconcelos expôs há um ano, na galeria do «Diário de Notícias», pela primeira vez, o resultado das suas digressôes por uma seara alheia, o feito suscitou comentários que exprimiam a apreensão de certos amigos seus ao verem-no desviar-se duma linha de que a sua poesia fora, até ali, penhor fiel. A reincidência, desta vez no Porto, obrigará a uma nova atitude: não já por ora o reconhecimento de facto (consumatum est), mas ainda e só aquela pergunta inquieta que também tem a sua versão em clássico: Mas, ubi est victoria tua?

Pode ser que no Porto, cidade entre todas tolerante, tenha por acaso aceitação o falacioso alibi: é a pintura dum poeta, o mesmo que leva Jean Cocteau a enjeitar de arabescos frigoríficos de boas marcas, como permite a Cesariny fabricar tlnturas para nortenho ver.

No primeiro caso (Cocteau), a Academia Francesa encarregou-se de nos dar a verdadeira explicação do fenómeno; em Cesariny, honra lhe seja, não é o pecado do conformismo que se prevê nos tempos mais próximos. Mas uma ausência, uma estranheza que fica em nós e se pode definir assim: "aturdido pela antevisão do abismo, aterrorizado perante a prova de desintegração mental a que terá que sujeitar-se para realizar o individualismo absoluto, o lírico faz um regresso desvairado ao seu individualismo convencional. No entanto ele nunca mais se libertará da nostalgia dum universo que chegou a pressentir" (1).

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Há três razões para detestar as tinturas de Mário Cesariny. Vamos, por ordem ascendente:

1ª) São aspectos inferiores da chamada blague ou bluff surrealista. Tudo o que no surrealismo é provocação ou ofensa directa degenera em conforme gracinha logo que perde de vista os verdadeiros ojectivos dessa denúncia. Espantar o burguês - que ociosa manobra, que infantilidade tocante!

Quando a consagrada fórmula surrealista, saída autêntica para a revolta e para o desespero: descer à rua e disparar à toa sobre a multidão se inverte (se diverte) em jogos arrojados de cores, belos achados e contrastes e tudo o mais fica esquecido por negligência, por fraqueza ou por abjecção; quando o poeta acha piada em especular com o snobismo compreensivo das pessoas de teres e haveres, num complexo que terá suas manhas do cortesão palaciano, do vendilhão e do arauto de novas estéticas, temos para nós que não há provocação - mas namoro; que não há ofensa - mas salamaleque; que não há denúncia - mas indisfarçada necessidade. E daí que, também, a «blague» perca toda a graça (caímos no Reino da Maior Tristeza) e o «bluff» seja apenas válido para os que aceitaram o jogo e o pagaram.

2ª) Pagaram. Outra não menor ingenuidade é esta de o Poeta querer ver reconhecido e estimado, como valor mercantil, o que faz na sua condição de poeta. E por quem?! Precisamente por uma sociedade que alternadamente o teme, ou o repele, ou o despreza. E que não costuma perdoar aos que excedem as suas regras (cito dois casos extremos em campos opostos: Pound e Pasternak).

O triunfo social do Poeta - e não é desconhecido para ninguém que, um tanto mais um pouco menos, isso sempre se verificou, - não pode estar dentro das suas preocupações imediatas. Homem, é legítimo que ele sinta as necessidades do comum cidadão; artista, é inevitável que se queira aplaudido e acarinhado. Para um surrealista, porém, o problema complica-se. Ora era a propósito dum surrealista (Cesariny) que estávamos falando. E que ele sabe, como todos nós, que a sociedade apenas compra aquilo que lhe convém. Ou que deixou de a assustar.

3ª e última razão) A mais grave.

Uma pessoa não se pode distrair, repetia António Maria Lisboa quando adquiriu a certeza de que já não lhe restava muito tempo para as tarefas menores. Ao leitor de Pena Capital não podem restar dúvidas que os picto-poemas de Cesariny só com muita leviandade se podem considerar uma criação superior, ou sequer paralela à sua lírica.

Não se queira exigir dum Artista esta ou aquela directriz, esta obra e não outra; mas também será impertinência exigir aos mesmos que o acompanharam nos seus momentos melhores que se calem (porquê? para quê?) quando, em sua consciência, o sintam mudado.

E que lamentem, mesmo em público, mesmo com todas as consequências, vê-Io tomar um caminho extravagante ("quem chegará primeiro? ele? o caminho?"). Pelo que...

...os picto-poemas de Mário Cesariny não são abjeccionistas porque ele quer. São a abjecção, porque nós os consideramos assim.

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(1) Natália Correia, «Poesia de Arte e Realismo Poético», pág. 11