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SÔNIA VAN DIJCK
Uma janela de botequim






Eis que Eduardo da Cunha Júnior está de volta. Talvez não seja certo dizer “está de volta”. Ele está sempre nas páginas de Cunha de Leiradella. Explico.

Eduardo da Cunha Júnior é aquele que morreu no Caraça, não se sabe bem se morreu no Caraça, e esse fato nem é muito certo para ele, conforme não chegou a saber com certeza se morreu ou não no Caraça, e nem nós e nem os habitantes de “Os espelhos de Lacan” (Rio de Janeiro: Ciência Moderna, 2004) podemos ter qualquer certeza. Eduardo da Cunha Júnior já foi gerente de hotel; foi dramaturgo sem muito sucesso e nem era bom no bilhar; fez curso por correspondência e passou a ganhar a vida consertando aparelhos elétricos, até que um tiro encerrou sua carreira de técnico em eletrodomésticos; voltou a Portugal, para reencontrar um grande amor. Mas, tudo isso foi antes de “Apenas questão de gosto” (Rio de Janeiro: Ciência Moderna, 2005).

 

Para entender Eduardo da Cunha Júnior, recorro a Northrop Frye (1973: 185):

 

O elemento essencial da trama, na estória romanesca, é a aventura, o que significa que a estória romanesca é naturalmente uma forma consecutiva e progressiva; por isso a conhecemos melhor na ficção do que no drama. Em seu ponto mais ingênuo é uma forma sem fim, na qual um protagonista que nunca se desenvolve ou envelhece passa de uma aventura a outra, até que o próprio autor desanima.

Trata-se, então do herói romanesco que vive na obra de Cunha de Leiradella. Apesar da citação acima, não pretendo ler “Apenas questão de gosto” como atualização do Mythos do Verão, segundo a formulação de Frye.

É fato que Eduardo é um homem comum, parecido com milhões de homens comuns, mergulhados todos na banalidade do cotidiano, com suas demandas, angústias e desejos.

Na aventura de Eduardo, não há traços de nostalgia, de “busca de algum tipo de idade de ouro imaginativa no tempo e no espaço.” (Frye, 1973: 185).

 

De envolvido no esquema de propina do jogo de bicho, passando para caçador de animais de estimação, no Flamengo, ele se tornou um detetive, que se traveste de jornalista entendido em cinema, a pedido de uma cliente que quer saber com quem o marido a está traindo. Além do pagamento, concluída a investigação, o detetive pretende ganhar favores sexuais da cliente.

 

O acontecido é narrado por Eduardo, que, em 1985, foi do Rio de Janeiro para Caxambu (Minas Gerais), para dar conta da empreitada.

 

O narrador começa dizendo: “Meu velho pai tinha razão. Mais vale um ovo no saco do que dois no cemitério.” Só se deixando levar pelas primeiras páginas, o leitor vai perceber que textos de várias naturezas, com inversões e modificações ou não, fazem a fonte do discurso do narrador. O “velho pai Eduardo da Micas do Ferreiro”, citado na abertura do discurso, assim como “o velho Abílio Quitandeiro, vascaíno roxo e meu [seu] falecido tio e padrinho” e a professora “D. Maricota, aquela admiradora fissurada das duzentas mil páginas de A Retirada da Laguna” repetem-se ao longo do discurso, sempre mencionados como comentários dos fatos ou como justificativas ou explicações das ações de Eduardo. A essas figuras é atribuída uma sabedoria de frases feitas ou de transformação das formas simples, de obviedades, sabedoria essa que é orientadora dos passos de Eduardo. O velho pai, o tio e padrinho e a professora são um só elemento na relação com o narratário e  podem ser vistos como leitmotiv do discurso do narrador, pois sua repetição constante implica a informação tanto da construção do discurso do narrador como sublinha o caráter farsesco do detetive Eduardo.

 

Eduardo, em seguida à citação do velho pai, descreve seu escritório e ao mesmo tempo se apresenta, mostrando nada ter do charme que cerca essa figura nas histórias do gênero, como em, por exemplo:

 

meu estaminé também não tem duzentas e dez louras peitudas abrindo sorrisos e decotes nas mesas da Recepção, nem carpetes e quadros nas salas e nos corredores, frigobares disfarçando câmaras de vídeo embutidas nas paredes ou ar-condicionado central e outros arrebites me engana que eu gosto. (p. 9)

                       

O detetive Eduardo não tem um escritório propriamente, mas um “estaminé”, pois foi tomado um empréstimo do francês estaminet – botequim, assim como jamais, que na fala de Eduardo se realiza como “jamé”, e embeurré (embeurrer = passar manteiga, amanteigar) que deve ter sotaque de detetive carioca para dizer embeurrés d’escargots, tanto quanto forfait passa a nome de família de cineasta deslumbrado: Zózimo Forfait (sem deixar de remeter a conhecido colunista social).

 

Eduardo tende ao burlesco, e sua aventura acumula equívocos, situações ridículas, forjamentos, desencontros, invenção de palavras (tridiota, verdadeirizar, porrilhão, por exemplo). Se nem mesmo o discurso narrativo de Eduardo é inteiramente seu, pois se faz de outros textos, o relatório final da investigação só precisa apresentar fatos que satisfaçam a todos, para que o detetive seja bem pago.

 

A breve aventura de Eduardo dura cerca de uma semana, somando-se o tempo vivido em seu antiescritório de detetive e em Caxambu, palco da investigação. Para situar o tempo da história, o narrador toma a eleição de Tancredo Neves para a Presidência: 1985. Essa marca vai lhe permitir voltar no tempo ou contemplar seu presente, tecendo comentários críticos e muitas vezes irônicos acerca de fatos e de figuras históricas.

 

O romance se constrói de diálogos sempre interrompidos pelos comentários de Eduardo, citando ou não seu velho pai, seu tio e padrinho, a professora fissurada em “A Retirada da Laguna” e, ocasionalmente, sua mãe, trazendo acontecimentos do passado ou do presente da aventura, e até da contemporaneidade da escritura do romance, graças a um slogan dos militantes de um partido político que não poderia ser esquecido pelo autor: “pt, saudações.”

 

O discurso do narrador, sem ligação imediata com os fatos que geram os diálogos, instaura um jogo que poderia mergulhar no non sense, caso não ficasse estabelecida uma cumplicidade com o leitor, graças ao pacto com o narratário, que tem conhecimento da farsa que está sendo desenvolvida e que lê os comentários de Eduardo mais como uma crítica aos decadentes valores ocidentais, aos vícios da política brasileira, aos comportamentos de algumas figuras históricas, outras ligadas ao cinema ou ao futebol, por exemplo, até chegar ao próximo diálogo que revela o avanço da aventura.

 

Trazendo para a história a imitação do texto bíblico (epístolas de Paulo), e empregando calão, palavrão, gírias, expressões em línguas estrangeiras, citando frases em latim, o discurso do narrador recorre com freqüência à sinédoque, permitindo a compreensão simultânea de várias situações, como ensina Massaud Moisés (1974: 478). Assim é que para falar das formas atraentes e da aparência requintada da ricaça que contrata seus serviços, Eduardo passa a chamá-la “Chanel” ou a ela se referir como “nº 5” ou inverte fazendo “nº 5 do Chanel”:

 

O Chanel tirou a tampa do frasco e, na maior complacência, adubou o vamos ver da minha flor de laranjeira. (p. 11)

e mostrar que nos cem dólares diários que o nº 5 do Chanel me pagava... (p. 79)

 

Em outras ocasiões, para se referir a políticos brasileiros, por exemplo, a sinédoque serve para a síntese crítica:

 

Tancredo de Almeida Neves, cavaleiro da Távola Sempre-Em-Cima-Do-Muro

Paulo Salim Maluf, cavaleiro da Távola Do-Lado-Mais-Direito-Do-Muro

 

Acontece que Leiradella se renova, renovando sua narrativa e confirmando seu projeto poético, a cada obra que nos oferece. Em “Os espelhos de Lacan” ele construiu um romance como hipertexto ou caleidoscópio, que pode ser lido em qualquer ordem, uma vez que um texto remete ao outro, que está logo ali à espera do leitor, sendo suficiente virar algumas páginas, pouco importando a cronologia da história. Agora, o que temos, em rigorosa ordem cronológica da aventura, é um hipertexto que se instaura como máquina devoradora de textos (hipotextos, como ensina Gérard Genette: 1982).

 

Na verdade, Eduardo da Cunha Júnior, no papel de narrador de sua aventura detetivesca, promove uma verdadeira devastação em discursos consagrados, seja pela pose acadêmica, seja pela empáfia política, seja pela vaidade científica, seja pelo emprego abusivo de estrangeirismos, seja pelo uso popular consagrante. Graças ao primarismo pragmático da sabedoria cunhada como popular de seu pai, de seu tio e padrinho e de sua professora, Eduardo faz tábula rasa dos ícones da cultura ocidental e da História, incluindo-se aí tanto ídolos do cinema ou do esporte, como pensadores e políticos brasileiros e estrangeiros e mais um imenso número de personalidades, de realizadores e de tipos que informam a sociedade judaico-cristã ocidental. Prolixo ou pretensamente enciclopedista, Eduardo narrador costura fragmentos relativos ao cinema com outros do campo da filosofia ou da ciência política, sem se esquecer de alguns palavrões, gírias e formas populares, ao tempo em que fragmenta a travessia de boa parcela da humanidade, enquanto devora alguns uísques bem cubados (uma das formas da linguagem de Eduardo), e se prepara para mais uma performance sexual, sem perder de vista a investigação que lhe foi encomendada, pretendendo ser recompensado levando a cliente “Chanel nº 5” para a cama, e assim explica algum episódio realizado no diálogo anterior a seu discurso ou anuncia o próximo lance da aventura. Eduardo se faz devoto de uma extensa hagiografia e invoca anjos de incontáveis legiões e usa um certo “campanário das urtigas” como eufemismo para um termo chulo.

 

Se a sabedoria dos sempre citados pai, tio e padrinho e da professora soa falsa como uma nota de 3 dólares (a investigação deve ser paga em dólares), seu mestre que o prepara para que pareça entendido em cinema não passa de um esperto contraventor.

 

No conjunto de sua obra, Leiradella constrói uma narrativa consecutiva e progressiva, sempre vivida por essa personagem sem rosto, que não envelhece e que passa de uma aventura a outra (Frye: 1973). Neste seu recente livro, o autor mergulha no gênero para, em um processo de desconstrução, que atravessa o conjunto da obra, subverter o próprio discurso narrativo e implodir o romance. Seu herói romanesco, ostentando com propriedade o figurino de anti-herói, é tão escrachadamente farsesco que seu relatório de investigação é absolutamente falso. De seu caráter, deriva sua atitude crítica em relação aos homens e ao mundo. Ou, quem sabe, sua atitude crítica em relação aos homens e ao mundo terminou por forjar seu caráter?

 

Temos, neste romance, mais um caleidoscópio da raça humana que, se está presente n’ “Os espelhos de Lacan”, aqui se mostra em novas possibilidades de combinação: fragmentos da trajetória da humanidade, que, reunidos para a contemplação graças ao discurso do narrador, revelam a grande farsa ou, no extremo, a fatuidade da trajetória humana.

 

O leitor tem a oportunidade de tomar “Apenas questão de gosto” como a janela de algum “estaminé” situado no alto de algum edifício de cidade grande, da qual pode contemplar as conquistas, vitórias, derrotas, progressos, crimes e mais uma infinidade de atos grandiosos e outros mesquinhos que fazem a História e que deságuam na avenida de nosso tempo, fazendo-nos a imagem e semelhança da multidão que escorre no asfalto. Tal como Eduardo da Cunha Júnior, é bom ter por perto uma garrafa de seu uísque preferido e uns cubos de gelo - pode ser que faça um calor infernal.

REFERÊNCIAS

FRYE, Northrop (1973). Anatomia da crítica. Trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Cultrix.

GENETTE, Gérard (1982). Palimpsestes. La littérature au second degré. Paris: Seuil (Poétique).

MOISÉS, Massaud (1974). Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix.

 

 

CUNHA DE LEIRADELLA

Apenas questão de gosto

Em linha no TriploV

 

Publicado em  Castelo de Lanhoso, Póvoa de Lanhoso, 12 fev. 2006. Opinião.

http://www.castelodelanhoso.com/