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Maria do Sameiro Barroso

PEDRO TAMEN - TRADIÇÃO CLÁSSICA E POESIA URBANA, SOB O LEVE SOPRO DE UMA GREGA CAMENA (1) 

Ouvis? Ou alguma amável loucura
comigo brinca?
Horácio, Odes III, 4 (2)

Vereadora da Cultura, Pedro Tamen, Maria do Sameiro Barroso e Paulo Moreira, durante a homenagem a Pedro Tamen, na IV Bienal de Poesia de Silves

Cântico do eterno, da terra e do presente, assim se me apresenta a obra deste Poeta, presença que, embora discreta, se destaca na poesia portuguesa, a partir da segunda metade dos anos 50 (3). Nascido em 1934, Poeta e tradutor, fez a sua estreia literária em 1956, com o livro Poema para todos os dias. A sua obra poética conta com 20 livros, três dos quais incluem os livros anteriores (Poesia 1956-1978 e o livro inédito Aparelho Circulatório Moraes Editores, 1978, Tábua das Matérias, Poesia 1965-1991, Tertúlia, 1991 e Retábulo das Matérias, Gótica, 2001), 4 antologias e uma vastíssima obra de tradução. O Poeta oferece-nos um mundo pleno de sólidas experiências, plasmadas em múltiplos registos, que, no entanto, se abrem e articulam de forma viva, criativa e harmoniosa.

Escreve-se sempre para dar vida, para libertar a vida onde ela estiver presa, para traçar linhas de fuga. Para isso é necessário que a linguagem não seja um sistema homogéneo, mas um desequilíbrio, heterogénea sempre: o estilo vai desbravar nela diferenças de potencial, entre as quais qualquer coisa pode passar-se, pode um relâmpago surgir da própria linguagem e fazer-nos ver e pensar aquilo que estava na sombra das palavras, entidades de cuja existência mal suspeitávamos, escreveu Gilles Deleuze (4).

Traçadas estas linhas de abertura, a poesia de Pedro Tamen pode ser lida como uma viagem, ou como uma vertigem que desfila e desafia as fronteiras opacas ou as marcas transparentes da interiorizada ficção. Para o Poeta, o mundo é um espelho aberto à fruição dos contrários, ou um poço forjado na gramática do eu, projectado à abertura do cosmos.

Pedro Tamen é o Poeta que delapida a luz, o espaço, onde arde a terra, o seu centro, refeito, após o apocalipse mágico onde o infinito se banha e o finito se anula. O ser poético, o sujeito amante emerge na fluidez das metáforas que anulam o nada.

Sóbrio, circunspecto e conciso, em registos diversos, dilata o espaço, a linguagem, convocada entre a órfica pulsão e uma postura quase frontalmente anti-lírica. Em tríadas compassadas, a sua poesia percorre os estigmas de cinza ou as marcas fogo, nomeados nas substâncias elementais, redefinindo o lugar dos afectos, entre os lugares sagrados, os lugares banais ou os lugares onde as conexões inter-textuais assomam, tudo elegendo, em núcleos de tensão, onde a criação se opera.

Perfilados em ritmos, rimas, quadras, redondilhas, sextilhas, sonetos ou versos livres, a sua poesia abre-se numa polifonia multissémica, onde convivem palavras que aparentemente jogam, enquanto se distendem, num amplíssimo fôlego, no acto de alcançar o seu limite extremo, no qual se pulverizam ou reconstroem, desmultiplicando sentidos inconfinados, entre lúdicos fulgores, telúricos recessos, configurados entre arquétipos de luz, confrontados já com a inominada catábase dos abismos.

O Poeta está livre, perante a solidão do mundo. Convoca a terra e a alegria, por entre a música, o ruído e o silêncio. Procura os eixos insondados, as formas puras ou a génese nominal do seu movimento imperfeito.

Neologismos, arcaísmos, palavras de outras línguas, linguagem sem enfeite nem feitiço que rolam do quotidiano, vivem, convivem e respiram, na sua nudez secreta, com a estância espessa dos símbolos e o domínio transfigurador do universo da metáfora.

Num fresco e novo olhar sobre as coisas, consolida, com mestria, a harmonia que subjaz à tensão do surpreendente. O sujeito poético é um artífice que transpõe as emoções e as palavras, medindo-se consigo próprio, esgrimindo, com a sua espada negra ou dourada, o mundo, o ser, o cosmo, ou o simples registo do quotidiano, seguro de que, tal como formulou Theodor W. Adorno:

A arte não é mais do que uma palavra a que nada de real já corresponde (5).

Detentor de um caudal poético imenso, num rio de intenso fulgor, não procurarei desdobrar todas as suas espirais. Entre os seus núcleos temáticos, como já indicia o título deste trabalho, deter-me-ei no seu universo de referências clássicas, procurando explicitar o que se me afigura mais original e fascinante, na sua voz poética.

Mais do que da própria leitura, procurarei captar algo do seu silêncio, da sua tensão, do seu sopro, contido no seu espaço interdito ou na intenção expressa no fluir dialógico das suas metáforas da criação, ciente que, citando Martin Heidegger:

o ser criado na obra só se deixa manifestamente compreender a partir do processo da criação. Assim, por imposição das próprias coisas, temos de aceder a levar em conta a actividade do artista para encontrar a origem da obra de arte (6).

Sobre a multiplicidade dialógica do Poeta e sobre o seu vasto universo referencial, é de referir o trabalho notável de Luísa Freire (7).

A minha leitura iniciar-se-á pelo primeiro poema O dia, que indicia as linhas programáticas e fundadoras que enuncia:

Fresco era o dia, plantado na chuva,

jovens os relógios tocando Mozart...

Os carros corriam, os passos passavam

e os velhos sentados dormiam no tempo

regressos perdidos de todas as sombras.

Pássaro poisado na alma da tarde,

era todo o sol natural Inverno...

O mar estava perto nos olhos da gente,

um barco chegava em cada minuto

e o segredo bailava nas mãos da criança.

Pedro Tamen agradece a conferência a Maria do Sameiro Barroso, no final da cerimónia de homenagem que lhe foi prestada na IV Bienal de Poesia de Silves, a 24 de Abril de 2010

Na primeira estrofe, o binómio infância-velhice configura o tempo, a música e a memória, em isotopias de juventude, fertilidade e frescura que e presença do mar amplia:

Os relógios não são jovens. A juventude é uma característica do ser humano. Os relógios são velhos ou novos. Esta transposição, quase tão antiga como a própria arte, é explicitada por Theodor W. Adorno:

A arte gostaria de com meios humanos realizar o falar do não-humano (8).

Os relógios de Pedro Tamen são jovens e tocam Mozart, têm, portanto, uma capacidade que só o contexto metafórico da poesia lhes confere.

A viagem-vertigem consubstancia-se nos carros, nos passos, a que o uso do imperfeito confere movimento e a própria acção amplia-se, transformando a estática dos velhos, também mobilizados a convocar o regresso e a sombra de tudo o que foi perdido, até que todo o movimento se condensa na forma de um pássaro, que, por todo o voo que lhe é inerente, se apresenta imóvel sobre a alma, algo que pertence ao domínio do etéreo que é apresentado como sendo todo o sol do Inverno, tempo por excelência da imobilidade da terra, que repousa, para de novo recuperar a sua fertilidade na Primavera.

Mas, antes disso: o mar estava perto nos olhos da gente, o que quer dizer que não se desloca, como os barcos que chegam freneticamente: um barco chegava em cada minuto, e o mistério do mundo parece assomar, pois: e o segredo bailava nas mãos da criança.

A presença da criança aproxima-nos na inocência primordial, a partir da qual tudo acontece. Esse estado de inocência aproxima-se do nada. Tal como na concepção de Martin Heidegger:

O projecto poemático provém do nada, no ponto de vista em que o que nunca aceita a sua oferta a partir do habitual e do que até então havia. Todavia, nunca vem do nada, na medida em que o que por ele é lançado é só a determinação retida no próprio ser-aí histórico (9). 

A segunda estrofe rememora elementos do passado: 

Recordo uma paz sob as gabardinas,

recordo humidade nas rodas dos carros...

(tão solta no ar corria a memória

que as folhas tão verdes marcavam os anos).

A chuva nascia da terra para o ar

e ria na cara da gente perpétua

— cada riso dela era a rua inteira

e era o cão vadio cheirando esta terra

gerada no vento pelo grande gesto.

Rua colocada por amor das formigas,

pequeno brinquedo achado no bosque,

eras mão aberta para todos os sons,

para cada assobio de vapor de água,

para a bela frescura da brisa salgada.

Ligeiros, os céus brincavam escondidos

com a tarde criança presente no ar,

jogavam às pedras ao pé dos passeios

e corriam juntos fugindo ao vento...

Passavam pessoas de faces vermelhas,

de um sonho pequeno agora acordadas,

seus passos miúdos de nada sabiam

— nada estava feito e tinham dez anos.

A branca neblina sentada no sol

sorria de perto a tudo o que era

e tudo saltava na sua presença. 

Os elementos do quotidiano assomam de forma concreta: uma paz sob as gabardinas evoca um tempo de paz e onde a humidade, elemento ligado à fertilidade, se desloca para elementos urbanos: as rodas dos carros. A memória contínua: tão solta no ar, como que movida por isotopias que confluem na frescura e no verde: as folhas tão verdes marcavam os anos.

E, estranhamente, a chuva não nasce das nuvens, mas da terra: A chuva nascia da terra para o ar. A terra é entendida como centro/origem/regresso, lugar para habitar o mundo, vazio a preencher com a construção do poema.

Também nas concepções de Martin Heidegger, a terra está no centro da génese poemática:

Na e sobre a terra, o homem histórico funda o seu habitar no mundo. Na medida em que a obra instala um mundo, produz a terra. O produzir deve aqui pensar-se em sentido rigoroso. A obra move a própria terra para o aberto de um mundo e nela a mantém (10).

A permanência da terra alarga-se à gente, que como que deixa de pertencer ao tempo que, num fluir jocoso: ria na cara da gente perpétua. Nos três versos seguintes, a chuva em ligação com a rua, elemento urbano, no qual a terra permanece como elemento telúrico, a terra, cheirada por um cão vadio, surge como que movida pelo grande gesto da criação.

No resto da estrofe, a terra e os seus seres continuam a ser exaltados: Rua colocada por amor das formigas. Versos como: pequeno brinquedo achado no bosque, ou Ligeiros, os céus brincavam escondidos/com a tarde criança presente no ar,/jogavam às pedras ao pé dos passeios, convergem numa atmosfera lúdica e jovial, à qual se juntam: pessoas de faces vermelhas,/de um sonho pequeno agora acordadas.

E, de repente, como que todos regressam à infância: seus passos miúdos de nada sabiam/— nada estava feito e tinham dez anos, sob a complacente neblina que, como um diáfano e branco véu: sorria de perto a tudo o que era/e tudo saltava na sua presença.

Nas terceira estrofe, evocando os movimentos fetais e o parto, o tempo, as horas, cada vez mais rápidas, naturais (escorregavam) e jovens (berço dos ramos) configuram a génese desta poética, isto é, ao primeiro momento do mundo, ou, transposto para a criação, o primeiro momento em que surge o poema:

Escorregavam horas do berço dos ramos

ficando caladas, respirando fumo...

E, leves, cheirosas, perpassavam as mãos,

tão estreitas e fortes do primeiro mundo. 

Na quarta e na quinta estrofe, neste mundo, cada vez mais fresco, vivo e fecundo, selando uma aproximação natural: manaram os beijos, que marcam o sinal da aparição da amada. Tudo se prepara: Espreitam os sinos, riram-se as escadas,/tudo estava pronto e de novo erguido. Como que nos aproximamos do Éden primordial: 

Tão bela que vinhas como que da infância,

tão pura e tão simples, tão gesto benigno,

tão nova palavra rasgada no mar...

Menina dos anos, dos anos perdidos,

sombra de outras noites, noiva de outros dias,

perfeita miragem, pele das próprias mãos,

eis que então chegavas e eis que eu te via,

e as horas sorriam, felizes, completas (11). 

A presença da amada faz retomar os anos perdidos, a sombra de outras noites, e a plenitude anuncia-se: eis que tu chegavas e eis que eu te via,/e as horas sorriam, felizes, completas.

Na estrofe seguinte, a sétima, a amada é transfigurada em metáforas da natureza e da criação. Sobre este processo, refere Theodor W. Adorno:

A natureza deve a sua beleza ao facto de parecer dizer mais do que é. A ideia da arte é arrancar este mais à sua contingência, torná-lo senhor da sua aparência, determiná-lo, a ele mesmo como aparência, e também negá-lo como irreal (12).

A presença do mar, desde o início do poema, agora toma um novo sentido, evocando a concha de Boticelli, no quadro “O nascimento de Vénus”: 

Teu rosto era a concha dos quatro oceanos,

teu corpo era a praia de areia molhada,

teus olhos erguiam o toldo do céu

e enchiam os mastros de verdes bandeiras.

Tu eras o vento, tu eras a força,

dançavam secretas tuas mãos de aragem... 

De notar a beleza/leveza do verso: dançavam secretas tuas mãos de aragem, e a associação da presença da amada à palavra, ao canto da aurora (dos galos) e à tranquilidade da própria respiração que se estabelece, na oitava estrofe: Agora tu eras a essência dos nomes, /os galos cantavam, era bom respirar.

Os versos seguintes denotam uma ligação muito forte à terra, onde os pés assentam, transfigurados numa metáfora deliciosa: Os prados distantes ficavam tranquilos,/esperando os teus pés, berlindes pequenos.

Na última estrofe, a plenitude amorosa afasta os terrores antigos: Nunca mais a noite mordida no escuro, /nunca mais o dia manchado de cuspo, nunca mais o véu tapando-me tudo.

E o novo rumo é traçado: Agora eu sabia que em cada manhã/nasceria o sol atrás dos teus ombros.

Para Horácio, tão querido ao Poeta (que cita uma epígrafe latina sua no livro Horácio e Coriáceo (1981) e na epígrafe latina e abertura do livro Dentro de momentos (1984), é, através da amada, que também: o canto mitiga os negros cuidados (13).

Há, neste universo poético, algo que, de novo me remete para Hesíodo, para a obra Teogonia, na qual a Terra e o Céu começam por existir, separados pelo Caos, o espaço vazio, e onde Eros é a força originária, criadora e animadora do cosmo (14).

 O Poeta retoma a tradição. De acordo com Walter Benjamin:

O carácter único da obra de arte é idêntico à sua integração no contexto da tradição. A própria tradição é certamente algo bem vivo, algo de extraordinariamente mutável (15).

O sonho amoroso/o sonho criador consubstanciam-se na segunda parte do livro Os Dias, ditando o tempo, o gesto, a palavra, o real e o irreal confundindo-se, tal como a doçura dolorosa do amor: 

Sonho-te real em lágrimas de mar,

refaço as mãos, tuas raízes verdes,

conto e reconto as horas que passámos.

Repiso os passos, rasgo a estrada branca,

renasço em cada gesto que fizemos,

beijo-te outra vez, ajoelhado...

Enquanto longos, dolorosos versos

nas veias vão doendo. (R.M., p. 25)

Os dias passam, no novelo dos ritmos, percorrendo o insondável, delimitando o espaço, percorrendo fronteiras, redefinindo o real.

Nesta poesia, a temática amorosa é luminosa e central. Nela confluem alguns dados da biografia do autor, em registos, nos quais à procura da amada se alia o elemento divino: A que deuses te devo, e na procura/revelação do nome, está subjacente a procura da verdade ontológica (poema do livro Escrito de Memória (1973):

2

Formado em direito e solidão,

às escuras te busco enquanto a chuva brilha.

É verdade que olhas, é verdade que dizes.

Que todos temos medo e água pura.

 

A que deuses te devo, se te devo,

que espanto é este, se há razão para ele?

Como te busco, então, se estás aqui,

ou, se não estás, porque te quero tida?

Quais os olhos e qual a noite?

                                               Aquela

em que estiveste por me dizeres o nome. (R. M., p. 281). 

De destacar, a beleza e profunda cristalinidade dos versos: É verdade que olhas, é verdade que dizes./Que todos temos medo e água pura.

Há algo muito claro e natural (água pura), mas também algo sibilino (medo) que remete para a essência da verdade e do ser. Para Martin Heidegger: A essência da arte é a Poesia. Mas a essência da Poesia é a instauração da verdade (16).

Nesta paisagem poética, os deuses surgem de vez em quando. Na poesia ocidental, tal como refere Roberto Calasso: Os deuses são hóspedes da literatura (17) (...) manifestam-se de forma intermitente, segundo a expansão e o refluxo daquela a que Aby Warburg chamou «onda mnénica» (18). Os deuses em questão são os deuses gregos que, noutros livros de Pedro Tamen surgem associados à fertilidade, num contexto amoroso, como que primordialmente feliz, associado a Deméter, a deusa que os gregos celebram nos mistérios de Elêusis, pois, é graças ao pacto que fez com Hades, o deus do mundo inferior que raptara a sua filha Perséfena, que a terra reverdece, na Primavera, quando esta regressa e o mundo retoma o luminoso dia. O livro Primeiro livro de Lapinova (1960), está, de resto, repleto, de isotopias de fertilidade:

8

Ouves, meu amor, a água que brotou

no côncavo da pedra que a tua mão marcou?

 

Ouves, meu amor, o passo do veado

correndo no caminho que só por nós pisado?

 

Entendes, meu amor, a voz que fala agora

do tempo que esperou, da lenta e só demora?

 

Já onde nós somos a nossa paz presente.

Só nós entramos nela e agora é o que sente.

 

Alumiam-se as noites, Deméter aparece,

tu sentas-te a meu lado e o trigo reverdece. (R. M., p. 140).  

A água, o côncavo da pedra, o passo do veado, a voz que fala agora precedem a epifania da deusa, que sanciona a união dos seres e do todo. Como diz Martin Heidegger:

Todas as coisas da terra, ela própria na sua totalidade, desembocam numa recíproca harmonia (19).

Quanto ao processo criativo, segundo Luísa Freire: É sabido que Pedro Tamen escreve por ciclos (ele o afirmou já em várias entrevistas), constituindo cada livro um corpo poético com uma unidade de sentido, mesmo quando a temática é variada (...) (20).

No livro O Sangue, a Água e o Vinho (1958), todo ele atravessado pela noite e o sagrado, há poemas claramente alusivos à religiosidade cristã, como o da Parte I, O sangue:

8

Uma única morte: agora em toda a parte, exangue, vem nos ventos,

soa na flauta abandonada, quebrado renasce pela terra-

Homem sou e sei: no enterro, longo, a espalhar-se nas ruas,

lá estaria, lá estarei, lá fui, de noite, desembuçada a carne.

Tão próximo e passado, tão hoje, tão mudado daqui a poucos dias,

raiz de muitos braços a perfurar o estrume. Cheiro,

recordo o pó, as patas agitadas, cavalos importados

em barcos, em galés, vinham de Roma vivos. Cheiro

o sangue mas os gritos não cabem. Mas os gritos não cabem

numa única morte. (R. M. p. 87).

Desde o primeiro livro, há também referências a outros deuses e outras religiões que o Poeta percorre, quer sejam portadoras de rituais cruéis, como a do poema que o pacífico pescador de múrex é confrontado com sacrifícios fenícios ao deus Baal (actualmente postos em causa por novas descobertas arqueológicas), ou com a violência inerente à própria vida, no (Poema para todos os dias, III Todos os dias, 20 (R. M., p. 57), quer os paradigmas religiosos tragam o consolo, porque estão associados aos elementos da natureza, ou porque, muito simplesmente, segundo José Jiménez: a religião é sempre portadora de uma promessa de felicidade, de identidade e de realização humanas (21). E, mesmo nos contextos de crueldade, segundo Miecea Eliade: O ritual refaz a criação (22).

No terceiro verso: Homem sou e sei, ecoa a conhecida citação, atribuída a Terêncio: Sou homem; e nada do que é humano me é estranho (Homo sum; humani nil a me alienum puto) (Heautontimorumenos, 163 d.C.).

E, num contexto puramente clássico, surge um pequeno poema (na III Parte, O vinho):

5

Alguém domador de cavalos,

Aquiles de pés velozes.

 

Na franca insuspeitada

balança inabarcável

quem sabe os pés que pesam? (R. M., p. 112). 

Numa espantosa capacidade de síntese, o Poeta coloca, lado a lado, alguém que não nomeia, Heitor, o melhor dos guerreiros troianos, que é também o pai, esposo e oficiante religioso. Heitor é o descendente de Príamo, o velho rei que ainda reina mas é a ao jovem Heitor que compete defender, num combate perdido, a já condenada cidade, Tróia, domadora de cavalos.

Aquiles é o herói homérico, o herói grego por excelência, que sabe, de antemão, que a cidade será destruída depois de derrotar Heitor. Sabe que a sua própria morte se seguirá, mas, perante Tétis, sua mãe, optara entre uma vida curta, mas coroada de glória. André Bonnard define da seguinte forma os dois heróis: Aquiles ama a vida o bastante para preferir a intensidade dela à duração (23). No que respeita a Heitor: A sua coragem é a mais alta coragem, a única que, segundo Sócrates, merece esse nome, porque, não ignorando o medo, o supera (24). O guerreiro e o cidadão defrontam-se, numa luta sem tréguas. Heitor sabe que vai ser morto e a cidade destruída, mas não pode fazer mais que cumprir o seu destino (25).

E que pés pesam afinal, na inabarcável balança? Os pés velozes do maior dos guerreiros da Antiguidade, ou os pés de Heitor, o melhor guerreiro de Tróia, domadora de cavalos, mas cujos pés, derrotados, às portas Ceias, foram arrastados vezes sem conta, no cadáver amarrado ao carro de guerra do colérico Aquiles. Onde pesará a cândida humanidade do cidadão, marido e pai, a quem a história roubou o nome?

E, no nosso tempo, quem pesará mais, na balança ética da valorização actual, os guerreiros de Homero ou os camponeses de Hesíodo? Lemos facilmente, nestas referências, os heróis destruidores da guerra do Iraque e os camponeses e os habitantes urbanos sem nome, despojados da sua própria identidade.

De resto, já no título do poema O dia, bem como o título do livro Poema para todos os dias, havia algo que não podia deixar de convocar Hesíodo, o Poeta grego que, no século VIII a. C., escreveu os Erga, conjunto de poemas que escreveu no final da sua vida, nos quais nos oferece uma pintura viva da vida campesina, opondo aos heróis homéricos, o esforço e a grandeza dos que trabalham a terra. Também tem o seu heroísmo e valor a luta tenaz e silenciosa daqueles que cavam, lavram e plantam, lutando com a adversidade e com os elementos (26).

Do livro Horácio e Curiáceo (1981) no qual paira a explicação inicial de Tito Lívio, segundo a qual, na mítica formação da história de Roma, embora iguais em idade e em força, ninguém sabia a que povo os tês irmãos pertenciam, marca uma impossibilidade de identificação da origem dos guerreiros e agressores (R. M., p. 441).

A epígrafe de abertura de Horário, talvez o seu excerto mais conhecido, no qual o Poeta enaltece a aurea mediocritas, parece querer contrabalançar, através da sabedoria de vida, as consequências destruidoras, provocadas pela cobiça e pela sordidez do ser humano. Neste livro, lemos um dos mais surpreendentes poemas do Autor: 

(Cesariana) 

Está um Volswagen branco matrícula HG-63-24

e por detrás passou um Renault 12 azul.

Atravessa agora a Maria Antónia com um saco

de plástico dos Estabelecimentos Mar-do-Sul.

Agora é uma camioneta de rações de gado

e um senhor careca de duffel-coat e pasta.

 

E se porém ou nisto me degrado,

explode aqui, no espaço de um quadrado,

a absurda inocência de Jocasta. (R. M., p. 477).

Neste poema, parecem ecoar ainda rumos que Horácio traçou, mas agora, no que se refere à transfiguração da linguagem: 

Não penses por acaso que hão-de morrer as palavras

que eu, nascido junto do Áufido ao longe ressonante,

   por artes nunca dantes conhecidas

                 com minha lira canto. (27) 

Num registo diferente, em relação aos poemas que citei ou analisei até agora, mas que também utiliza com abundância, o Poeta coloca-nos perante uma cena de rua. Começa com a matrícula de um carro branco e vai descrevendo outros elementos que se cruzam: outro carro azul, uma mulher anónima que tem nome: Maria Antónia com um saco/de plástico dos Estabelecimentos Mar-do-Sul. E mais duas insólitas presenças: Agora é uma camioneta de rações de gado/e um senhor careca de duffel-coat e pasta.

A propósito desta temática, Walter Benjamin analisou a transformação da linguagem poética, a partir de Baudelaire que introduziu na poesia vocabulário que anteriormente estava, à partida, excluído da linguagem poética:

Baudelaire ultrapassou, tanto o jacobinismo linguístico de Victor Hugo como as liberdades bucólicas de Sainte-Beuve. As suas imagens são originais devido ao carácter baixo dos objectos de comparação. Observa os processos banais para aproximar deles o poético. (28)

Do que quer que se passe, neste poema, o que mais importa é o remate de forma ainda mais desconcertante: E se porém ou nisto me degrado, /explode aqui, no espaço de um quadrado,/a absurda inocência de Jocasta.

Mais uma vez, o Poeta surpreende pela habilíssima capacidade de transformar uns versos que, devo confessar, à partida me causaram um enorme desagrado, em algo que, a partir da introdução, no espaço de um quadrado, da absurda inocência de Jocasta, adquirem um límpido e inequívoco sentido.

Na realidade, na peça de Sófocles, nunca foi claro como é que Jocasta nunca suspeitou que Édipo podia ser seu filho, uma vez que, tal como é referido na peça, apresentava estranhas parecenças com Laio. Quando Édipo a interroga sobre o aspecto físico de Laio, Jocasta responde: Era alto, na floração das primeiras cãs; não diferia muito do teu aspecto (29).

A partir desta resposta, torna-se difícil compreender, como foi possível ter pactuado com toda a situação, sem nunca ter suspeitado do crime em que estava envolvida.

Quem não se lembrará da frase que de Theodor W. Adorno que fez correr rios de tinta: Nach Auschwitz ein Gedicht zu schreiben, ist barbarisch (Depois de Auschwitz, é bárbaro escrever um poema.), tema sempre actual, que reuniu escritores das duas Alemanhas divididas, em Frankfurt, em 1988 (30).

E, a propósito de crimes quem não pensará, no fundo de si, a partir deste insólito poema, nos crimes aos quais assistimos, absurdamente alheios e impotentes?

Os poetas continuaram a escrever durante e depois de Auschwitz, como foi o caso de Nelly Sachs e Paul Celan, entre outros, ou mesmo o caso dos presos que escreveram poesia, nos mais diversos suportes e confessaram que escrever os tinha ajudado a sobreviver. Mas Paul Celan foi criticado por ter produzido arte a partir dos horrores vividos nos campos de concentração, no poema Todesfuge (31). A questão não é escrever. Mas, num mundo cada vez mais desumanizado, a escrita e a arte foram e possivelmente continuam a ser questionadas.

Alguns gritaram a sua pulsionalidade, como foi o caso de Wolfdietrich Schnurr:

A lírica é erótica. Assim a considera a vida. Por isso a defende. E deve então calar-se, após um triunfo da morte de tal forma global?

(Lyrik ist sinnlich. Also meint sie das Leben. Also verteidigt sie es. Und da soll sie, nach einem derart globalen Todessieg, schweigen?) (32).

E, em Der Meridian (O Meridiano) discurso que proferiu, quando recebeu o Prémio Büchner, em 1960, Paul Celan, afirmou: A arte regressa (Die Kunst kommt wieder) (33).

Mas a arte e a poesia sofreram alterações profundas, nas quais toda a dialéctica poetológica tem que ser reequacionada. Assim, se, por um lado, Paul Celan afirma:

E a poesia seria assim o lugar, onde todos os tropos e metáforas querem ser levadas ao absurdo (Und das Gedicht wäre somit der Ort, wo alle Tropen und Metaphern ad absurdum geführt werden wollen.) (34).

Ou Elargissez l’Art! (35)

A esta atitude, contrapõe:

Alargar a arte? Não. Mas vai com a arte ao mais apertado do teu estreito. E liberta-te. (Die Kunst erweitern? Nein. Sondern geh mit der Kunst in deine allereigenste Enge. Und setze dich frei.) (35).

Pedro Tamen parece ter trilhado estes caminhos estreitos, estes becos, nesse quadrado, onde se desenrola a cena que descreve, acompanhando este cenário, onde a arte cada vez mais se abre ao inconfinado.

Para Michel Foucault: A literatura faz assim parte daquele grande sistema de coacção do discurso; todavia, ela ocupa aí um lugar especial: obstinada a procurar o quotidiano por debaixo dele próprio, a ultrapassar limites, a levantar brutal ou insidiosamente segredos, a deslocar regras e códigos, a fazer dizer o inconfessável, ela terá tendência a pôr-se fora da lei, ou pelo menos a tomar a seu cargo o escândalo, a transgressão ou a revolta. Mais do que qualquer outra forma de linguagem, é ela que continua a ser o discurso da “infâmia”: cabe-lhe dizer o indizível –o pior, o mais secreto, o mais intolerável, o vergonhoso (36).

O título deste singular poema de Pedro Tamen, (Cesariana) não pode deixar de remeter para essa excisão problemática.

Sobre o universo clássico, referirei ainda a obra Dentro de Momentos (1984) (R.M., p.507), pela dialéctica entre a fugacidade das palavras e o seu aprisionamento, em versos, utilizando a voz de Horácio, novamente, como epígrafe inicial.

Neste livro de poemas muito curtos, destaco outro poema, desconcertante, no que concerne o tratamento de temas clássicos:

6

Orfeu ao balcão avia bicas

sem poder olhar Eurídice na caixa

Transposto para o nosso tempo, o mito de Orfeu é recriado na impossibilidade de olhar/na impossibilidade de amar. Não há mistério nestas personagens. Foi por olhar Eurídice, que Orfeu, com a sua lira, conseguira resgatar ao mundo dos mortos, que a perdeu, pela segunda vez, definitivamente.

Como diz Paul Veyne, aquilo que se opõe ao tempo, tal como se opõe à eternidade, é a nossa actualidade (37).

Umberto Eco, distingue dois tipos de postura em relação à arte:

A arte contemporânea tinha-nos habituado a reconhecer duas categorias de artistas: de um lado, os que vão procurando novas formas, entregando-se a um ideal quase pitagórico de harmonia matemática, inventando configurações apoiadas em relações secretas e que, para chegarem à poesia, passam pela geometria, euclideana ou não; do outro, os artistas que reconhecem a fecundidade do acaso e da desordem (38).

É na segunda categoria que incluiria o Autor deste poema, embora noutros se possa incluir na categoria anterior.

Na realidade, segundo José Jimenez: As vidas humanas não podem abrir-se ao encontro dos múltiplos sentidos que lhes servem de suporte simbólico na pura instantaneidade, senão no (re)conhecimento dos tempos (passados/futuros) e espaços (épocas, cenários culturais) diversos (39).

Neste poema, Orfeu pode ver-se também na perspectiva do anti-herói, protagonizado por Woyzeck de Georg Büchner pois a vida de Orfeu é rotineira, apagada e banal, tal como a de Woyzeck (40).

Orlando Neves, que traduziu a peça, escreveu, na introdução: Em 1834, data do começo de Woyzeck, foi como se Deus tivesse criado os camponeses e os artesãos no quinto dia e os príncipes e os nobres no sexto (41).

Há ecos do mito das cinco idades da obra Trabalhos e Dias de Hesíodo. A partir da idade de ouro, a humanidade vai percorrendo vai percorrendo as várias idades até chegar à quinta raça:

Quem dera que eu não vivesse no meio dos homens

da quinta raça, que morresse antes, ou vivesse depois!

Agora é a raça de ferro. Não cessam, de dia,

de ter trabalhos e aflições, nem, de noite, de serem consumidos ,

pelos duros cuidados que lhes oferecem os deuses. (42) 

A existência do homem não é fácil. Mas, no tempo dos deuses olímpicos, a vida também não era assim tão fácil para os próprios deuses. Para Walter Otto:

A existência dos deuses desenrola-se em princípio num horizonte a que a morte é estranha. Os olímpicos não vivem, no entanto, numa eternidade imóvel, mergulhados numa luz límpida. É na dimensão de uma continuidade «efémera» que se renova dia após dia que eles desfrutam o seu afastamento da negra morte... (43)

Uma concepção muito próxima deste conceito, está presente no poema de Pedro Tamen:

55

O tempo nasce com o nascer do sol.

Todos os dias nasce o tempo (R.M, p. 516). 

É como se tivéssemos de conquistar os dias à eternidade. E não será?

Ainda neste livro, Apolo é apresentado de forma radiosa, aos dias mais longos do ano, no Verão, tempo de pujança da natureza:

30

Agora é Verão:

cresceu Apolo

e volta a casa tarde (R. M., p. 512 ).           

No livro Delfos, Opus 12, cujo título de conotação musical, parece, desde logo estar em consonância com o Apolo, deus da poesia e da música, reporta-se aos seus lugares sagrados. A ilha de Delos, onde nasceu e o vale de Delfos são evocados, recriando os vários aspectos da sua complexidade simbólica e mitológica. A indicação da visita a Delfos e as notas que o Autor fornece servem de suporte exegético à leitura (R.M., p. 541).

Segundo Walter F. Otto: Os deuses mantêm as suas singularidades porque permanecem as tensões entre eles (44). Estas tensões são aludidas de várias formas, a partir do poema 1. Numa intensa expressividade dramática, é expressa a oposição de Hera ao nascimento do deus, filho de Zeus e de Latona, no verso: Por sobre a terra intensa/nula criança chora (R. M., p. 521.

António Ramos Rosa, num ensaio publicado em 1986, salientou dois aspectos: a dramaticidade deste Poeta e a dimensão interior que cria (e amplia), na sua ligação ao sagrado:

Vejo na poesia de Pedro Tamen uma das mais sérias tentativas para dar à actividade poética aquele sentido do sagrado, sem o qual não se pode atingir a verdadeira dimensão interior. Violentamente dramático, quase sempre, este poeta restabelece a circulação entre o humano e o elementar infundindo à linguagem poética uma energia e expressividade que superam a mera agressividade do bizarro, tantas vezes esterilmente ofensiva em alguns poetas surrealistas.(45)

O tempo adquire uma dimensão intemporal no poema 8. Tal como em Delos, a morte é abolida: 

Quando souberes agora que é atrás da linha

dos montes núbeis que se ergue o sol,

do mesmo passo sabes que esses montes

refazem a palmeira inicial, na rocha replantada,

figurando o lugar de nome repetido

de nenhum parto outro, ausente morte:

vasta bacia para a eternidade (R. M., p. 528). 

À luta de Latona, junta-se a luta entre Apolo e Geia, a deusa mais antiga, representada como deusa-serpente, que dominava esse lugar, que Apolo passou a ocupar depois de matar a serpente Piton:

5

O que foi o último a nascer

onde nunca ninguém morreu

nem mais que a sua irmã surgiu à luz,

ele que, vindo da palmeira, encheu de flores

a rocha agreste que Hera permitiu

— olhou aqui a hórrida Serpente

que a deusa despeitada lhe deu em desafio.

E ao matá-la tomou a voz da terra

cuja verdade engana (R. M., p. 525). 

Os deuses gregos foram substituindo as divindades arcaicas anteriores, embora a voz da terra permaneça una, neste cenário em que os deuses, segundo Walter F. Otto: São o mundo, e o mundo é multiforme. Não obstante, o homem conhece a unidade do divino (46).

No poema 3, a planície, onde outrora havia corridas de carros, dos quais é testemunha a belíssima escultura do auriga de Delfos, retoma o espaço primordial onde a vegetação se instala e cresce como: Púbis, sagrada e verde. Esta imagem é de um erotismo subtil que atravessa o poema, em outras isotopias como as coxas do Parnaso, o umbigo róseo, e, às premissas de fertilidade enunciadas, junta-se a necessidade premente de trabalhar a terra, nos versos: Terreno defendido e proibido/verde velho/que um homem, mão erguida/quer lavrar (R. M., p. 523).

Os deuses gregos surgem ligados a factos e fenómenos naturais. Para Walter F. Otto, nos deuses gregos O divino não tem superioridade sobre os factos naturais como um poder soberano: manifestam-se nas formas do natural como sua essência e ser (47).

O poema 7, poema central do livro, define as qualidades do deus, que se situa no ônfalo. Em Delfos existe uma pedra que simboliza o centro do mundo:           

Seio, centro, nó: lugar

da ligação e em que o contrário

une. Tal como aquele

que aqui te conquistou.
 

Guardador de rebanhos, amigo das ovelhas

mas dos lobos. Senhor e escravo.

É ele o curandeiro, mas também

o que da morte zunia as doces flechas.

Amador de mulheres que não o queriam

e dos jovens mortos por acaso.

O tocador de lira, o que aceitou a flauta.

Conquista o seu desejo e dele

a negação. Claro e turvo.

O que gerou enganos

nas linhas rectas

em que escreveu oblíquo.

 

Lugar de alto e baixo,

largo e estreito,

negro e branco,

lugar e não lugar,

a perdição achada (R. M., p. 527). 

As características do deus possuem, como nos deuses ctónicos que os precederam, características bipolares. Apolo é o deus da luz, mas também é o Lóxias, herdeiro das profecias obscuras. O seu oráculo é o mais importante de todo o mundo grego e assim se prolonga no mundo romano. Nenhuma decisão política é tomada, sem que o oráculo, pela voz da pitonisa, seja consultado.

Apolo é também o deus da medicina, mas foi ele que enviou as setas que provocaram a peste aos exércitos gregos, no início da Ilíada. Apolo é o deus que, apesar da sua beleza, não conquista as suas (nem os seus) amantes, que morrem ou se transformam em plantas quando dele fogem. Conquista o seu desejo e dele/a negação., como afirma o Poeta. E, na obscuridade das respostas proféticas, pode precipitar os homens na sua própria perdição.

Apolo é o deus da poesia e da música, o inventor da lira, mas que convive com os tocadores de flauta, os pastores e é o deus da loucura profética, inspira a chamada mediunidade apolínea cujo objectivo é o de conhecer o futuro, bem como os segredos ocultos do presente (48).

Com as Musas, suas irmãs, partilha as instâncias da luz e da beleza:

15

Elas contam o mundo com os seus corpos.

Não dançam bem apenas, enchendo de alegria

os Imortais: dançam o bem, ou este

é a mesma dança. Indestrinçável

do que a beleza é, além

da que os homens conseguem (R.M., p. 536). 

Talvez Apolo, ou algo equivalente nos parâmetros da actualidade, continue a actuar. Maritain, na sua obra Creative Intuition in Art and Poetry, afirmou:

«Por poesia entendo... essa intercomunicação entre a essência interior das coisas e a essência interior da criatura humana que é uma espécie de adivinhação.». (49)

E, entre as criaturas e as essências, fica a poesia de Pedro Tamen, como o rasto vivo que o amor nos deixa: 

Alga de luz, submisso assunto

é este amor de face repousada

que dorme toda a noite

e acorda vivo.

(1990) (R. M., p. 696).  

(1) Horácio, Odes, II. O verso pertence à última estrofe: A Parca que não me mente a mim me deu/uma pequena propriedade, e o leve sopro/de uma grega Camena, permitindo-me/que o malévolo povo desprezasse (vv. 37-40, (Q. Horatius Flaccus, Opera, E. C. Wickham e H. W. Garrot (ed.), Oxford Classical texts, 1912), tradução de Pedro Braga Falcão, Livros Cotovia, Lisboa, 2008, p. 163. (As Camenas ou ninfas dos montes, eram divindades romanas assimiladas às Musas gregas).

(2) Horácio, Odes, (Q. Horatius Flaccus, Opera, E. C. Wickham e H. W. Garrot (ed.), Oxford Classical texts, 1912), tradução de Pedro Braga Falcão, Livros Cotovia, Lisboa, 2008, p. 163. (As Camenas ou ninfas dos montes, eram divindades romanas assimiladas às Musas gregas). p. 188.

(3) Sobre este assunto, ver Fernando J. B. Martinho, Tendências Dominantes da Poesia Portuguesa da Década de 50, Lisboa, Edições Colibri, 1996, p. 421.

(4) Gilles Deleuze, «Signes et évèvements, entretien avec Gilles Deleuze» in Magazine Litteraire n.º 257, 1988; retomada em Pourparlers, Minuit, Paris, 1990, in Edmundo Cordeiro, prefácio e tradução a Gilles Deleuze, O mistério de Ariana, Lisboa, Vega, 2ª edição, 2005, p. 7.

(5) Martin Heidegger, A Origem da Obra de Arte (Der Ursprung des Kunstwerks, Vittorio Klostermann, Frankfurt am Main, 1977), tradução de Maria da Conceição Costa, Edições 70, Lisboa, 2008, p. 11.

(6) Martin Heidegger, A Origem da Obra de Arte, p. 46.

(7) Sobre este assunto ver Luísa Freire, Pedro Tamen: a tenção em tensão, Livros Horizonte, Lisboa, 1999, pp. 13-55.

(8) Theodor W. Adorno, Teoria estética (Aestetische Theorie, Suhrkampf- Verlage, Frankfurt am Main, 1970), tradução de Artur Morão, Edições 70, Lisboa, 2008, p. 124.

(9) Martin Heidegger, A Origem da Obra de Arte, p. 61.

(10) Martin Heidegger, A Origem da Obra de Arte, p. 36.

(11) Pedro Tamen, Retábulo das Matérias (1956-2001), Gótica, Lisboa, 2001, pp. 11-13.

(12) Theodor W. Adorno, Teoria estética (Aestetische Theorie, Suhrkampf- Verlage, Frankfurt am Main, 1970), tradução de Artur Morão, Edições 70, Lisboa, 2008, p. 125.

(13) Horácio, Odes IV.11, vv. 35-36, p. 290.

(14) Werner Jaeger, Paideia, p. 74.

(15) Walter Benjamin, A modernidade (Gesammelte Schriften, Suhrkampf Verlag Frankfurt am Man 1972, 1974 e 1977), edição e tradução de João barrento, Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p. 214.

(16) Martin Heidegger, A Origem da Obra de Arte, p.60.

(17) Roberto Calasso, A Literatura e os deuses (La Letteratura e Gli Dei, Adelphi Edizioni S. P. A. Milano 2001), tradução de Clara Rowland, Gótica, Lisboa, 2003, p. 11.

(18) Roberto Calasso, A Literatura e os deuses, p. 31.

(19) Martin Heidegger, A Origem da Obra de Arte, p. 37.

(20) Luísa Freire, Pedro Tamen: a tenção em tensão, p. 29.

(21) José Jiménez, A vida como acaso, tradução de Manuela Agostinho, Vega, Lisboa, 1997, p. 74.

(22) Sobre este assunto, ver: Mircea Eliade, Tratado de História das Religiões ( Traité d’Histoire des Religions, Éditions Payot, 1949), tradução  de João Machado, Edições Asa, Lisboa, 1994 (2º- edição), p. 430.

(23) André Bonnard, Civilização Grega Da Ilíada ao Pártenon (Civilizsation Grecque de l’Iliade au Parthenon) III volumes, I, tradução de José Saramago, Lisboa, Editorial Estúdios Cor, 1966, p. 62.

(24) André Bonnard, Civilização Grega Da Ilíada ao Pártenon, p. 64.

(25) Sobre este assunto, ver Bernard Knox, The Iliade, Translator's Preface in. Translated by Robert Fagles. Introduction and notes by Bernard Knox , Penguin Books, New York , 1990, p. 33.

(26) Werner Jaeger, Paideia: los ideales de la cultura griega (Paideia, Die Formung des grieschischen Menschen, D. R., 1967), tradução de Joaquín Xirau (Livros I e II) e Wenceslao Roces (livros III e IV), Fondo de Cultura Economica, Madrid, 1993, p. 67.

(27) Horácio, Odes, IV. 9. vv. 1-4, p. 285.

(28) Walter Benjamin, A modernidade, p. 100.

(29) Sófocles, Rei Édipo, introdução, tradução do grego e notas de Maria do Céu Fialho, Edições 70, Lisboa, 1991, /45, p. 104,

(30) A.A. V.V., Petra Kiedaich (Org.), Lyrik nach Auschwitz?Adorno und die Dichter, Philipp Reclam jun. Sttugart, 2001, pp. 5-9.

(31) Paul Celan. Gedichte. In zwei Bänden, Erster Band, Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main, 1975, pp. 41-42; Ver a tradução deste poema em Sete Rosas Mais Tarde. Antologia Poética, Selecção, tradução e introdução de João Barrento e Y. K. Centeno, edição bilingue, 2.ª ed., Cotovia, Lisboa, pp. 52-57 e Paul Celan, Todesfuge, tradução e comentários de Maria do Sameiro Barroso e Ivo Miguel Barroso, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, volume V, Direito Público e Vária, Estudos organizados pelos Professores Doutores António Menezes Cordeiro / Luís Menezes Leitão / Januário Da Costa Gomes, Almedina, Coimbra, 2003, pp. 411-423-

(32) Wolfdietrich Schnurre, Dreizehn Thesen gegen die Behauptung , daß es barbarisch sei, nach Auschwitz zu schreiben ?, apud A.A. V.V., Petra Kiedaich (Org.), Lyrik nach Auschwitz?Adorno und die Dichter, p. 125.

(33) Paul Cean, Büchner-Rede (Einband unter Verwendung des Facsimiles eines Entwurfs), Der Meridian, End fassung, -Entwürfe, Materiallen, Org. Bernhard Böschenteinund Heino Schmull unter Mitarbeit von Michael Schwarzkopf und Christiane Wittkop, Suhrkamp Verlag, 1999, 2, p.2.

(34) Und das Gedicht wäre somit der Ort, wo alle Tropen und Metaphern ad absurdum geführt werden wollen, Paul Celan, Büchner-Rede, Der Meridian, 39 b, p. 10.

(35) Paul Celan, Büchner-Rede, Der Meridian, 32 b, p. 10.

(36) Paul Celan, Büchner-Rede, Der Meridian,42 d, p.p. 10-11.

(37) Michel Foucault, O que é um autor? (Qu’est-ce qu’un auteur?), prefácio: José A. Bragança de Miranda, tradução: António Fernando Cascais e Eduardo Cordeiro, 7ª edição, Nova Vega, Lisboa, 2009, p. 127.

(38) Gilles Deleuze, O mistério de Ariana, p. 70.

(39) Umberto Eco, A definição da Arte (La definizione dell’Arte, U. Mursia & C.,1968, 1972), tradução de José Mendes Ferreira, Edições 70, Lisboa, 2008, p. 217.

(40) José Jimenez, A vida como acaso, p. 49.

(41) Sobre esta peça. profundamente moderna, adaptada à ópera por Alben Berg, com o título Wozzek, que ficou inacabada por morte de Büchner aos vinte e três anos, por tifo, nos seus escritos, apresentou o seu conceito de arte realista, ligada à sociedade. Woyzeck é um soldado, oprimido por todos. Não tem nada de herói. Para os oprimidos, perante um quadro de violência, não têm outra reposta senão a violência (A.A. V.V., História da Literatura Alemã 1 (Deutsche Literaturgeschichte, von den Anfängen bis zurGegenwart), Edições Cosmos, Lisboa, 1993, p. 354).

(42) Orlando Neves, Introdução, Georg Büchner, Woyzzeck, tradução, introduçãio e notas de Orlando Neves, Teatro Início, Lisboa, 1967.

(43) Hesíodo, Trabalhos e Dias, vv. 174-178, in Maria Helena da Rocha Pereira, Helade, 5ª. edição. Coimbra, 1990, p. 85.

(44) Giulia Sissa, Marcel Detiene, Os deuses da Grécia (La Vie Quotidiènne des Dieux Grecs), tradução de Manuela Madureira, Editorial Presença, Lisboa, 1991, p. 56.

(45) Walter F. Otto (Die Götter Grieschenlands, G. Schltye-Bulmke, Frabkfurt. Trad. castellana de R. Berger e A. Murguia: Los dioses de grecia; Eudeba, Buenos Aires, 1973, 2ª. ed. 1976 (1ª. ed. 1929), apud José Jimenez, A vida como acaso, p. 68.

(46) António Ramos Rosa, Pedro Tamen ou a unidade viva num presente inaugural, apud Poesia Liberdade livre, Prefácio de Fernando J. B. Martinho, Ulmeiro, Lisboa, 1968, p. 128.

(47) Walter F. Otto, apud José Jimenez, A vida como acaso, p. 68.

(48) Walter F. Otto (Die Götter Grieschenlands, G. Schltye-Bulmke, Frabkfurt. Trad. castellana de R. Berger e A. Murguia: Los dioses de grecia; Eudeba, Buenos Aires, 1973, 2ª. ed. 1976 (1ª. ed. 1929), apud José Jimenez, A vida como acaso, p. 66. E.R. DODDS, Os Gregos e o Irracional, Gradiva, Lisboa, 1988, pg. 80.

(49) Maritain, Creative Intuition in Art and Poetry, apud Umberto Eco, A definição da Arte, p. 111.

Maria do Sameiro Barroso. Médica e escritora, é licenciada em Filologia Germânica, em Medicina e Cirurgia pela Universidade de Lisboa e Doutoranda da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Tem publicado livros de poesia, traduções e ensaios. Dedica-se à investigação da Medicina Antiga e à História da Mulher e ao estudo da Literatura Alemã. Integra os actuais corpos directivos do Pen Club Português. Ver mais informação em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_do_Sameiro_Barroso