Padre António Vieira
HISTÓRIA DO FUTURO, II
LIVRO II . Capitulo III

Se este Império de Cristo no Mundo é espiritual ou temporal

Assentado, como acabamos de resolver, que este Império de Cristo e dos Cristãos, de que falam as profecias alegadas, é principalmente o da Terra e não o do Céu, ainda nesta suposição nos resta averiguar um ponto de grande importância e de cuja decisão depende o maior fundamento de todo este nosso discurso. Porque este Império de Cristo, que dizemos há de ser na Terra, ou pode ser espiritual ou temporal. espiritual como o que hoje tem o Sumo Pontífice, cujo poder e jurdição se ordena a governar os fiéis membros e súbditos da Igreja, a conseguir a bem-aventurança, que é o último fim do homem; temporal, como o que têm os príncipes católicos sobre os seus reinos e províncias, que se dirige a governar os vassalos por meio de leis prudentes e justas, que é o fim particular de todas as comunidades humanas, dos Cristãos católicos, em quanto este fim particular e mediato se ordena ao último fim.

Isto posto, perguntamos agora se este Império de Cristo há-de ser espiritual ou temporal; e começando pela conclusão em que não há resistência nem dificuldade, diremos primeiramente que este Império de Cristo (o qual não há-de ser diferente do que hoje é, senão ,quanto ao modo como em seu lugar veremos) é império espiritual. Assim o ensinam e ensinaram sempre conformemente todos os Padres e Doutores da Igreja, todos os teólogos antigos e modernos, e todos os expositores de ambos os Testamentos, e se demonstra com o mesmo mistério da Encarnação e fim com que Cristo veio ao Mundo, e com a doutrina e acções de sua vida e morte.

Porque, se perguntarmos aos Evangelistas (deixando o testemunho das outras Escrituras) que fez Cristo e que ensinou com a palavra e com o exemplo, desde o dia em que nasceu até à hora em que expirou na cruz, dir-nos-ão que veio ensinar aos homens a ciência da saúde e salvação; que veio ser luz do Mundo e alumiar os que vêm a ele; que veio lançar fogo na terra, para que se acendesse nela a claridade que tão apagada estava; que veio encher e informar a lei e animar a letra com o espírito; que veio vencer o demônio e lançá-lo do Mundo, onde reinava e se intitulava príncipe; que veio apartar os pais dos filhos e os filhos dos pais, para que a graça prevalecesse contra a natureza e o amor de Deus pudesse mais que o do sangue; que ensinou o desprezo das riquezas, os interesses da esmola, o perdão das injúrias, a verdadeira amizade com os inimigos, a virtude da humildade e a da castidade, uma não usada, outra não conhecida no Mundo, que pregou o Reino do Céu, a eternidade do Inferno, o rigor do juízo, o preço e imortalidade da alma; finalmente que abriu sete fontes de graça e ou que instituiu sete sacramentos perpétuos e ficou Ele conosco perpetuamente em sacramento; que nos lavou com o seu sangue, que morreu por nós, e que nos deixou o seu amor e o nosso contentamento.

Sendo pois estas as ações daquele Senhor a quem antes de vir ao Mundo todos os profetas chamaram Pai, e em seu nascimento foi aclamado Rei e em sua morte intitulado Rei; e sendo todas elas ordenadas só à salvação e perfeição dos homens e dirigidas e encaminhadas ao Céu, cujo reino lhes pregou e prometeu sempre, e estando até aquele tempo fechado, lho abriu e mereceu com seu sangue; que maior sentimento se pode desejar, nem que maior demonstração ou evidência de ser o Reino e Império deste santíssimo e soberaníssimo Rei, Reino e Império espiritual?

Foi Reino e Império espiritual no fim e causas de sua instituição, espiritual nas leis, espiritual no governo, espiritual no uso, nas execuções e no exercício; e suposto que dizemos há-de ser sempre o mesmo (nem é decente nem seria crível outra cousa), em qualquer tempo futuro será e há-de ser também espiritual.

Não alegamos aos autores desta doutrina, assim por serem todos, como dissemos, como porque alegaremos muitos no capítulo seguinte.