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CECÍLIA BARREIRA
(UNL)
ALMADA NEGREIROS E A "REVISTA PORTUGUESA" (1)
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Almada Negreiros regressou a Lisboa em Abril de 20 e achou tudo «mais pequenino» - não tanto por diferença de escala de que Paris lhe dera consciência, como por um real enfraquecimento da vida intelectual e artística portuguesa, após a ardência dos anos 15-17. Pessoa queixar-se-à do mesmo, três anos mais tarde, melancolicamente, a propósito de uma nova revista modernizante, a Contemporânea, e mais três anos passados, à beira de uma nova emigração, Almada constatará não haver mais artistas avançados em Portugal, onde tudo, nesse domínio, era então «uma paródia ridícula», «um deplorável equívoco», senão «um mal-entendido sem remédio»... Os anos 20 decorriam, fatalmente, dentro desse engano - e Almada logo em 21 fez uma leitura pública da sua Histoire du Portugal par Coeur, escrita em Paris, de smoking e barrete de campino, sublinhando sem querer, o desacordo nacionalista com a modernidade...

José Augusto França, A Arte em Portugal no século XX , p. 94

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I. Apresentação: A Rivalidade Contemporânea - Revista Portuguesa

Os anos vinte decorreram sob o signo da euforia, da contradição, da bipolaridade ideológica. O Modernismo torna-se a proposta artística que enforma esses anos, concedendo-lhes alguma irreverência, sentido crítico, e, sobretudo, uma forte consciência anti-decadentista. Reclamando o novo e o diferente, aposta-se na superação da mediania, da mediocridade: num trajecto onde todas as evasões são possíveis, Modernismo e Tradicionalismo não raras vezes coincidiram e se estreitaram nas margens do tópos -outro que se permitiam reinventar.

A Revista Portuguesa é um exemplo (entre mais) dessa aliança entre um tradicionalismo político e um modernismo de cariz estético. Semanário de «Literatura, Crítica de Arte, Sport, Teatro, Música, Vida Estrangeira» surge em Março de 1923 para se eclipsar em Outubro do mesmo ano. Seis meses não constitui um período de existência efémero se nos reportarmos aos anos vinte. Publicações desabrochavam e feneciam goradas as vertentes programáticas, usualmente ambiciosas para as parcas condições existentes. Para além do mais, não deveria ser fácil a um semanário, desguarnecido de apoios financeiros e apenas colaborado por jornalistas na sua maioria exercendo a actividade profissional noutros periódicos, subsistir e marcar encontro com um público leitor todos os sábados.

1923. A data merece algumas reflexões prévias. No plano político dois acontecimentos empolgaram a classe política e a imprensa: a ascensão irresistível de Primo de Rivera em Espanha e, paralelamente, a de Mussolini em Itália. Longe, na fria Alemanha, alguns perigos espreitavam a República de Weimar. A Europa, no entretanto, ia vibrando ao ritmo do fox-trot e do jazz-band . Desses "ritmos" nos dá conta - num estilo mundano, tentando imitar Cocteau, inspirado no exemplo de D'Annunzio -, António Ferro no livro A Idade do Jazz Band .

Uma leve incursão pelas publicações periódicas que maior êxito alcançaram nos anos vinte em Portugal - o ABC , a Ilustração , o Magazine Bertrand e a Civilização - informa-nos sobre os principais caricaturistas e desenhadores que pululavam na capital. Em formato apreciável e papel de luxo estreia-se a revista mais notavelmente apetrechada, de maior arrojo gráfico, de quantas irromperam nos dois primeiros decénios novecentistas: referimo-nos à Contemporânea (1922-1926) dirigida, concebida, pensada por José Pacheko (o arquitecto que desenhara a capa do 1.º número de Orpheu ). Colaboradores: Almada Negreiros, Eduardo Viana, António Soares, Jorge Barradas, etc .. Ainda, do ponto de vista literário, Fernando Pessoa, Raul Leal, Mário Saa, Marinetti.

Revista de criação literária, vocacionada para suceder a Orpheu , a Contemporânea saldar-se-ia por um certo falhanço. Que modernismo, afinal, para além da excelente apresentação gráfica? Fernando Pessoa desabafa com Armando Côrtes-Rodrigues:

«V. tem visto a Contemporânea ? É, de certo modo, a sucessora de Orpheu . Mas que diferença! Que diferença! Uma ou outra cousa relembra esse passado; o resto, o conjunto ...» (1).

Pessoa falara no passado. Também ele forjaria uma nova experiência com Atena (1924). Efémera, como as demais.

A Revista Portuguesa beneficiara de um escasso apoio publicitário que a Contemporânea lhe reservara, por suposto acordo entre os directores (Pacheko e Victor Falcão). Leiamos um deles:

«Revista Portuguesa

Director Victor Falcão

Colaboradores literários: Américo Durão, Mário Saa, Ivo Cruz, José Bragança, Carlos Óscar da Silva e José Dias Sancho, Correia da Costa e Rebelo Bettencourt.

Colaboração artística: António Soares, Bernardo Marques e Mário Saa. A Revista Portuguesa será a revista crítica da semana e acompanhará o movimento intelectual modernista» (2).

Estava-se em 1923. O namoro entre as respectivas revistas seria breve. A Revista Portuguesa pretendia-se exigente e crítica, não se conformava à futilidade mundana ou à sedição ideológica. Logo no número 3, a propósito da organização de exposições e jantares que a Contemporânea vivamente incentivava, comenta-se:

«A revista que por quatro vezes mencionei se bem que dê jantares a muita gente que nunca deu o mínimo esforço para o desenvolvimento da arte moderna, não usa de igual método na promoção de exposições. Até hoje só a temos visto patrocinar a obra que realmente se pode classificar de hodierna. E faz bem, porque tragar bons jantares e erguer brindes mais ou menos entusiastas, mais ou menos floreados, é empresa de que qualquer se desempenha. Agora, compreender e sentir toda a beleza da arte moderna, é tarefa para poucos, para raros, mesmo» (3).

Encontrava-se no número cinco da Revista Portuguesa . Com redobrada violência se ataca a Contemporânea : Álvaro Maia, no discorrer da verve amarga, nem o próprio Fernando Pessoa poupa, por causa de uns poemas em francês que o primeiro gostaria ver escritos na língua natal:

«A que diabo vêm os seus versos em francês? Não seria melhor... aprender a sua língua natal?» (4).

Victor Falcão lança mais algumas achas na fogueira. No número 9 assina o editorial a que intitula: «Revista Portuguesa». Congratula-se pelo bom acolhimento que o periódico teria merecido junto do público e sustenta a «crítica independente e desassombrada» de uma revista face às «nódoas literárias que não se limpam» da outra.

Para além da rivalidade editorial (embora, a uma primeira análise a Contemporânea e a Revista Portuguesa colhessem leitores em estratos sociais económica e culturalmente similares, não há dúvida que aquela última fizera um esforço de popularização: desde o preço acessível, até ao formato, passando pelas rubricas de futebol e desporto em geral, as entrevistas, etc. ) que outro tipo de embates se poderiam retorquir reciprocamente? A revista de Victor Falcão coloca uma questão primordial: como ser vanguarda (intelectual e artística) em Portugal nos anos que então decorriam? Seria consagrar Guerra Junqueiro aos cumes da glória, após a morte, ou elogiar as obras de António Ferro e Homem Cristo Filho? A apreciação da Revista Portuguesa fundamenta-se num eixo de alguma coerência: a qualidade não se compadece com simpatias ou favoritismos pessoais. Na senda pela destruição de ídolos (velhos e novos), em nome da Modernidade, a própria Revista Portuguesa não escaparia aos meandros de um certo hibridismo. Tradicionalista (na concepção política, na visão do todo social), esgueirando-se com pouca ligeireza das linhas doutrinárias propugnadas pelo Integralismo Lusitano, representaria o espectro possível de um difuso e conturbado posicionamento ideológico. O que não impedira o próprio Sérgio de se lhe referir nos seguintes termos:

«Agrada o tom da crítica independente e de idealismo patriótico de alguns artigos desta revista» (5).

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(1) Carta de Fernando Pessoa a Armando Côrtes-Rodrigues de 4-8-1923 in Cartas de Fernando Pessoa e Armando Côrtes-Rodrigues , Lisboa, 1944, p. 82.

(2) Contemporânea n.º 7, p. 6.

(3) Mário Domingues, «Exposições de Arte/A exposição de pintura Teles Machado» in Revista Portuguesa , 24 de Março de 1923, p. 24.

(4) Álvaro Maia, «Revista das Revistas/"Contemporânea - número 7"» in Revista Portuguesa , 7 de Abril de 1923, p. 20.

(5) António Sérgio, «Revistas Portuguesas» in Seara Nova, 1923, p. 216.