Adelto Gonçalves

Marquês de Pombal e padre Malagrida: as entranhas de um confronto

I

Depois de publicar Padre Malagrida: o último condenado ao fogo da Inquisição (Setúbal, Centro de Estudos Bocageanos, 2012), o pesquisador Daniel Pires ainda dispunha de tantos documentos sobre o assunto que resolveu escrever O Marquês de Pombal, o Terramoto de 1755 em Setúbal e o Padre Malagrida (Setúbal, Centro de Estudos Bocagenos, 2013), que traz maiores detalhes sobre o confronto entre Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), conde de Oeiras e, depois, marquês de Pombal, secretário de Estado dos Negócios do Reino, com os jesuítas que teve o seu epílogo com a condenação do padre Gabriel Malagrida (1689-1761), já demente, ao fogo da Inquisição. 

Como se sabe, o que estaria em causa seria uma pretensa ajuda que os missionários jesuítas teriam dado aos índios guaranis, levando-os ou incentivando-os a uma guerra contra os portugueses e os espanhóis na região hoje ocupada pelo Paraguai e pelo Estado do Mato Grosso do Sul.  É de lembrar que a Companhia de Jesus, instituição fundada em 1534 por Inácio de Loyola e outros religiosos, constituiu um Estado dentro de um Estado, a partir de 1540, quando se radicou em Portugal a convite de D. João III. Três décadas depois, estava instalada em Portugal e em partes do mundo lusófono uma rede de ensino que se tornou hegemônica pelos dois séculos seguintes. 

E que, justiça seja feita, apesar das críticas dos iluministas, produziu talentos como o padre Antônio Vieira (1608-1697), filósofo, escritor e orador de renome, Fernão Mendes Pinto (1509-1583), explorador e aventureiro, autor de Peregrinação (1614), uma das mais extraordinárias narrativas de viagem escritas em língua portuguesa, e o diplomata Alexandre de Gusmão (1695-1753), nascido na vila de Santos, na América portuguesa, que representou Portugal em vários países, inclusive em Roma, e notabilizou-se pelo seu papel fundamental nas negociações do Tratado de Madri, assinado em 1750, que definiu os limites entre os domínios portugueses e espanhóis na América do Sul, criando assim as bases do Brasil de hoje.

II

Nascido em Menaggio, na Itália, Malagrida, filho de um médico, depois de estudar Teologia, entrou em 1711 para a Companhia de Jesus, onde fez sólida carreira, a partir de sua instalação em São Luís, então capital do Estado do Grão-Pará e Maranhão, na América portuguesa. Começou, então, a estudar a língua dos índios tupinambás, guaranis e barbados com o objetivo de convertê-los ao cristianismo. Em 1727, lecionava Literatura no Colégio de São Luís e, em 1730, Teologia no Colégio do Maranhão. Em 1735, radicou-se na Bahia, onde fundou a Casa das Ursulinas, que abrigava mulheres desamparadas. Depois, transferiu-se para Pernambuco, onde igualmente abriu na vila de Igaraçu um local de recolhimento para mulheres. Em 1749, estava no Pará quando decidiu retornar a Portugal, onde desfrutava de grande fama, a ponto de ter sido recebido pela rainha Maria Ana da Áustria. 

Místico, costumava atrair multidões com suas orações. A ele não raro atribuíam-se curas milagrosas. Tamanha auréola o fez se aproximar de D. João V, a quem teria assistido em seus últimos dias ao final de julho de 1750, e de muitas mulheres da nobreza, o que o permitia circular com desenvoltura na Corte. Em 1751, à época de D. José I, foi nomeado conselheiro real nas possessões do ultramar, tendo viajado para o Brasil no mesmo navio em que seguia Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão do futuro marquês de Pombal, que viria a incompatibilizar-se com a Companhia de Jesus.

Em 1753, fundou no Pará outro asilo e, em janeiro de 1754, a pedido da rainha, retornou a Lisboa, com o objetivo de fundar mais um recolhimento. Voltou a ter presença constante ao lado da rainha Maria Ana de Áustria, que veio a falecer em agosto de 1754. Com o terremoto de 1º de novembro de 1755, escreveu um livro que, a princípio, foi elogiado pela censura, mas que interpretava o cataclismo como uma vingança de Deus contra as iniquidades da Corte. Essa interpretação, obviamente, contrariou o ministro Carvalho e Melo, que começava a consolidar seu poder depois de sua atuação decidida para recuperar o país da hecatombe de 1755.

Malagrida foi mandado ao exílio na vila de Setúbal, onde continuou a pregar com fervor nas igrejas, atraindo muitos fiéis, além de escrever e fazer representar peças de teatro.  Como conta Daniel Pires, a ligação de Malagrida com damas da primeira e da segunda nobreza portuguesa – as marquesas de Távora e de Angeja, as condessas da Ribeira e de Atouguia, a duquesa de Aveiro, entre outras – manteve-se intensa durante o seu exílio em Setúbal, o que lhe rendeu valores consideráveis em dinheiro e jóias, como se pode depreender da leitura das cartas e documentos que o pesquisador recolheu neste livro.

Tudo isso veio à tona depois que ocorreu a tentativa de assassinato do rei D. José I, a 3 de setembro de 1758, atribuída ao duque de Aveiro e aos marqueses de Távora, com o apoio da Companhia de Jesus. Acusado por Carvalho e Melo de autor moral do atentado, Malagrida viveu em condições abjetas de janeiro de 1759 a janeiro de 1761, no Forte da Junqueira, em Lisboa, o que – ao lado dos interrogatórios que sofreu nos cárceres da Inquisição, no Palácio dos Estaus (hoje Teatro D. Maria II, nos Restauradores, em Lisboa) – contribuiu para que o seu temperamento exaltado chegasse rapidamente à insanidade. Foi condenado ao fogo em fogueira armada na Praça do Rossio e suas cinzas disseminadas pelo mar.

III

Depois de devassar as entranhas do confronto entre Carvalho e Melo e Malagrida, Pires lembra ainda que a animosidade do ministro contra os jesuítas não diminuiu depois da condenação do missionário ao fogo. Contra a ordem religiosa e seus seguidores, o ministro mandou escrever panfletos, acusando-os de exercício de atividades comerciais, traição aos reis, luxúria, desvirtuamento da religião, desobediência, incitamento dos guaranis à guerra contra os portugueses, inaptidão no domínio da docência, difamação do Estado português no estrangeiro, impostura e hipocrisia. Escritas na maioria em francês, essas obras breves foram distribuídas nas cortes europeias e entre intelectuais. A campanha deu resultados, pois em 1773 o papa Clemente XIV mandou expulsar a Companhia de Jesus de todos os países católicos da Europa e suprimi-la.

A ira de Carvalho e Melo, já nomeado então marquês de Pombal, era tanta que, em 1771, a Real Mesa Censória mandou queimar na Praça do Comércio a obra de Malagrida, Juízo da Verdadeira Causa do Terramoto que Padeceu a Corte de Lisboa no Primeiro de Novembro de 1755, que teria sido “concebida com um espírito infame, fanático, malicioso, temerário e herático”. Para o pesquisador, a biografia de Malagrida reflete a precariedade da natureza humana: “Idolatrado, senhor de amplos poderes numa determinada fase; acossado, a ferros, humilhado, demente, condenado ao garrote e queimado, na velhice; ideais humanitários e sobriedade conviveram com o messianismo, o anticientismo e, alegadamente, com a apetência por bens materiais”.

Ao final do livro, o pesquisador reúne ainda cartas que Malagrida escreveu em Setúbal, das quais 16 foram dirigidas à marquesa de Távora, cujos originais se encontram no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. As demais tiveram como destinatários o padre Eckart, missionário com quem Malagrida conviveu no Maranhão, o papa Clemente XIII, José Ritter, confessor da rainha, e um conde não identificado, eventualmente o de São Lourenço.

IV

Daniel Pires (1951), doutor em Cultura Portuguesa pela Universidade de Lisboa, é mais conhecido por suas pesquisas sobre Bocage, sua paixão literária, o que o levou a fundar o Centro de Estudos Bocageanos, em Setúbal, além de defender tese de doutoramento sobre a obra do poeta. Foi responsável pela edição da Obra Completa de Bocage, publicada por Edições Caixotim, do Porto, entre 2004 e 2007. 

Licenciado em Filologia Germânica, já deu aulas de inglês no ensino secundário e foi professor em Setúbal. Sua paixão pela pesquisa e seu gosto pelo conhecimento já o levaram a trabalhar em São Tomé, Angola, Moçambique, Macau, China, Goa e Escócia. Em Macau viveu por três anos, entre 1987 e 1990, onde atuou na Universidade local, e, mais tarde, ensinou na Universidade de Cantão, a cerca de 120 quilômetros de Hong Kong. 

É autor de importantes trabalhos de divulgação da obra de Bocage, como o livro Fábulas de Bocage (Setúbal, Centro de Estudos Bocageanos, 2000) e a organização e publicação da brochura da Exposição Biobibliográfica comemorativa dos 230 anos de nascimento e dos 190 anos da morte de Bocage (Setúbal, Câmara Municipal de Setúbal/Biblioteca Pública Municipal de Setúbal, 1995). Com Fernando Marcos, preparou a edição de uma pasta com 15 belos postais (sépia) sobre Bocage na Prisão (Setúbal, CEB, 1999).  

Publicou ainda o Dicionário da Imprensa Periódica Literária Portuguesa no Século XX (Lisboa, Editora Grifo, 1996), constituído por três volumes.  Colaborou no Dicionário de História de Portugal e no Dicionário de Fernando Pessoa, além de fazer parte da comissão que organizou as comemorações do bicentenário da morte de Bocage, em 2005. Tem pronto para publicação o Dicionário da Imprensa de Macau do Século XIX,  trabalho iniciado em 1990 em que descreve todos os periódicos que foram publicados em Macau no século XIX, incluindo os jornais ingleses que, durante a Guerra do Ópio, saíram simultaneamente em Macau e em Cantão.

O MARQUÊS DE POMBAL, O TERRAMOTO DE 1755 EM SETÚBAL
E O PADRE  MALAGRIDA
Daniel Pires
Setúbal: Centro de Estudos Bocageanos, 164 págs., 2013.
Preço do exemplar: 10 euros mais portes de correio. E-mail: danielspires@netcabo.pt

 

Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br