:::::::::::::::ADELTO GONÇALVES::::::::::::::

Para enriquecer os estudos queirozianos

EÇA DE QUEIROZ-RAMALHO ORTIGÃO: RETRATO DA “RAMALHAL” FIGURA, de A. Campos Matos. Lisboa: Livros Horizonte, 112 págs., 2009, 14 euros. E-mail: geral@livroshorizonte.pt Site: www.livroshorizonte.pt

A GUERRILHA LITERÁRIA: EÇA DE QUEIROZ-CAMILO CASTELO BRANCO, de A.Campos Matos. Lisboa: Parceria A.M.Pereira, 150 págs., 2008, 18 euros. E-mail: parceriaeditora@net.novis.pt Site: www.parceria.a.m.pereira.com

SETE BIOGRAFIAS DE EÇA DE QUEIROZ, de A.Campos Matos. Porto Alegre-RS: Editora Movimento, 104 págs., 2007, 18 reais. E-mail: editoramovimento@editoramovimento.com.br Site: www.editoramovimento.com.br Lisboa; Livros Horizonte, 112 págs., 2004, 13 euros. E-mail: geral@livroshorizonte.pt Site: www.livroshorizonte.pt

I

A imagem que ficou de Ramalho Ortigão (1836-1915) foi a que Eça de Queiroz (1845-1900) nos legou: um amigo devoto dos tempos do Colégio da Lapa, do Porto, um professor de francês nove anos mais velho e companheiro leal nas diatribes que ambos escreviam para As Farpas, opúsculos de capa alaranjada que começaram a aparecer nas bancas e quiosques de Lisboa a 17 de junho de 1871 e que contaram com a colaboração de Eça pelo menos até o número de setembro-outubro de 1872, quando o escritor partiu como cônsul para as Antilhas espanholas. Agora, porém, A.Campos Matos, grande queiroziano, vem nos mostrar um outro personagem, de caráter duvidoso, de aspecto melífluo, que depois da morte de Eça teve um comportamento pouco edificante.

Dono de vasta obra sobre a produção queiroziana, na qual se destacam os dois volumes do Dicionário de Eça de Queiroz (Lisboa: Caminho, 2ª ed., 2000) e a Fotobiografia de Eça de Queiroz (Lisboa: Livros Horizonte, 2008), Campos Matos acaba de lançar Eça de Queiroz-Ramalho Ortigão: retrato da “ramalhal” figura (Lisboa: Livros Horizonte, 2009) em que mostra, com rigor de pesquisa, que, embora tenha sobrevivido 15 anos a Eça, Ramalho teve um papel discreto e diminuto na publicação da obra póstuma do amigo, limitando-se à revisão das últimas páginas de A cidade e as serras. Fez também a revisão de O mistério da estrada de Sintra em 1902, mas praticou tantas falsetas e teve tantas atitudes discutíveis e atrabiliárias que melhor teria sido se nada fizesse. Sem contar que ainda tentou reclamar para si a autoria principal do romance, atribuindo a Eça um papel secundário.

Parece que a memória do amigo que ficara para a posteridade o incomodava, a tal ponto que faz recordar um caso mais antigo de relacionamento ambíguo e tumultuado entre dois intelectuais, o de João Agostinho de Macedo (1761-1831) e Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805). Como se sabe, incomodado com a crescente fama póstuma de Bocage, Macedo, por despeito, teria feito desaparecer muitos originais do vate setubalense, depois de convencer a irmã do poeta a lhe ceder o espólio de manuscritos a pretexto de organizá-lo para a publicação.

De Eça, o que a correspondência levantada por Campos Matos mostra é a imagem de um amigo leal, que se sentia à vontade para confessar tudo o que lhe preocupava a alma. Basta dizer que, em gratidão, Eça de fez de Ramalho seu padrinho de casamento e padrinho de seus filhos. Já Ramalho... Para Campos Matos, há razões de sobra para se pensar que Eça pode ter se enganado na apreciação que sempre fez de seu pretenso amigo.

Isso fica claro em doze cartas exumadas por Campos Matos em que Ramalho mostra uma indisfarçável indiferença perante a morte do amigo, mais preocupado que estava em usufruir por aqueles dias os prazeres de uma viagem pela Itália. Ao receber em Veneza a notícia da morte de Eça, “continuou impávido a passear de gôndola”, tendo-se instalado depois em Florença, de onde escreveu cartas para a posteridade, enquanto o brasileiro Eduardo Prado (1860-1901) regressava apressadamente a Paris para socorrer a família do amigo.
Já em relação ao espólio literário de Eça o comportamento de Ramalho foi o mais irresponsável possível. Fez a discutível revisão de A cidade e as serras e não atribuiu nenhuma importância ao resto. Só em 1924, depois de sua morte, José Vasco Ortigão, seu filho, morando no Rio de Janeiro, tratou de enviar para o filho de Eça em Lisboa o material inédito que lhe ficara do pai que incluía cinco cartas inéditas de Fradique Mendes (personagem inventado por Eça e Ramalho), o romance A capital (com cerca de 100 páginas impressas e corrigidas pelo próprio autor) e ainda O conde de Abranhos.

Mas, além da negligência inacreditável com que tratou a obra póstuma de Eça e de seus comentários dúbios a respeito da obra queiroziana, pior ainda foi o seu comportamento sibilino e desonesto marcado por tentativas de apropriação da autoria de romances conjuntos. Quem até aqui sempre teve Ramalho como uma figura impoluta e possa alimentar alguma dúvida que leia as doze cartas publicadas na íntegra por Campos Matos. Com certeza, vai se decepcionar com a “ramalhal figura”, epíteto que lhe atribuíram porque, do alto de seu 1m80 mostrava um porte ereto e sobranceiro, ombros largos, sempre bem trajado, loquaz e espalhafatoso de gestos.

II

Outro livro imperdível do queiroziano Campos Matos é A guerrilha literária: Eça de Queiroz-Camilo Castelo Branco (Lisboa: Parceria A.M.Pereira, 2008) em que recupera divergências e afinidades entre os dois escritores. Embora Camilo Castelo Branco (1825-1890) tenha ficado famoso por suas polêmicas furibundas, eufemisticamente chamadas de “polêmicas à portuguesa”, com Eça o que houve foram algumas escaramuças, sem a rudeza típica das intervenções públicas do escritor, tendo prevalecido “a cortesia, a mesura, o reconhecimento prudente das qualidades do adversário”, nas palavras de Campos Matos.

Diz o pesquisador que, vinte anos mais velho do que Eça, são inúmeras as referências de Camilo ao autor de Os Maias em cartas a amigos, em notas à margem das suas obras. Já Eça ignorou Camilo mais do que devia, ou fingia ignorá-lo, “vendo nele, predominantemente, aspectos negativos, desaprovando radicalmente aquilo que chamou de maneirismo sentimental e o que por ventura via em Camilo de passadista, provinciano e contraditório”. Isso não significa que não o tivesse admirado: leu-o, talvez até pela mão de Ramalho, que o admirava incondicionalmente e com ele se carteava, diz Campos Matos.

O pesquisador lembra ainda a amizade que ligava Camilo ao juiz Teixeira de Queiroz, pai de Eça de Queiroz, a quem conhecera por ocasião de sua prisão na cadeia da Relação do Porto, depois de sua condenação por adultério com Ana Plácido, episódio que duraria de 12/12/1859 a 1/10/1861. Segundo Campos Matos, Camilo sempre guardou pelo juiz Teixeira de Queiroz respeito e gratidão, “razão pela qual, repetimos, iria evitar que Eça fosse vítima da pena do mais violento polemista das nossas letras”.

Isso não significa que os dois autores não tenham trocado algumas farpas, às vezes dissimuladas. Campos Matos reedita, inclusive, uma carta de 1887 que Eça chegou a escrever, mas não a enviar a Camilo em resposta a alguns comentários um tanto ácidos do colega de ofício. Um ano depois, Eça iria escrever a Camilo, convidando-o a colaborar na Revista de Portugal, da qual era diretor.

Parece que Eça e Camilo nunca se encontraram pessoalmente, embora Ramalho Ortigão tenha feito referência, num artigo de 1874 n´As Farpas, a um encontro entre ambos em julho de 1871, ao recordar os tempos do Cenáculo de Lisboa. Mas, diz Campos Matos, Ramalho, mais uma vez, mostrou-se parco em suas memórias do velho amigo, mais preocupado com a imagem que deixaria de si para a posteridade. Para o investigador literário, Ramalho, entre os literatos de seu tempo, era o mais bem informado acerca da vida de Eça. E, no entanto, deixou meia dúzia de linhas de episódios mal contados e algumas alusões, “nem sempre todas verdadeiras”, a respeito do escritor.

III

Publicado em 2004 em Portugal pela Livros Horizonte, Sete biografias de Eça de Queiroz, de A.Campos Matos, ganhou edição brasileira em 2007 pela Editora Movimento, de Porto Alegre, revista e acrescida de novas informações. Como se percebe pelo título, nesta obra o queiroziano faz uma resenha de sete das mais destacadas biografias do escritor, que incluem três autores brasileiros: os gaúchos Miguel Melo (1877-1929) e Vianna Moog (1906-1988), ambos biógrafos pioneiros em língua portuguesa, além do baiano Luís Viana Filho (1908-1990), responsável por uma pesquisa muito bem apurada e de uma objetividade de interpretação que lhe mantém o interesse de leitura até hoje. Entre os biógrafos portugueses contam-se António Cabral (1863-1950), João Gaspar Simões (1903-1987), João Calvet Magalhães (1915-2004) e Maria Filomena Mónica (1943).

A mais extensa das biografias de Eça de Queiroz, com 762 páginas, Vida e Obra de Eça de Queirós, de João Gaspar Simões, é também a que mais espaço obtém neste livro, até porque são muitas as contestações que Campos Matos lhe faz, a partir de uma “incoerência crítica, tantas vezes irrefletida” com que o biógrafo utilizou as idéias freudianas, apelando para a intuição quando necessitava preencher lacunas deixadas pela ausência de documentos. “Pode a documentação ser complementada com a intuição? Pode a psicologia servir à crítica literária? Por certo que sim. O que não se pode é ultrapassar os limites impostos ao rigor e à coerência”, observa Campos Matos, sem, contudo, deixar de reconhecer em Simões “o maior biógrafo português de Eça”.

Da biografia mais recente de Eça de Queiroz, escrita por Maria Filomena Mónica, o autor também não faz boa apreciação, a partir a ausência de uma investigação aprofundada da infância e adolescência do escritor, passando por visões romanceadas sem fundamento, até concluir que a obra nada traz de novo, “exceto uma carta de Ramalho que relata o encontro que teve com Eça em Paris, quando este acompanhava na cidade-luz uma inglesa casada em Londres, rica e bonita”.

De Eça de Queiroz: A Vida Privada, de José Calvet Magalhães, a opinião de Campos Matos também é pouco abonadora, apontando algumas fantasias que perpassam uma narrativa que constitui, no seu dizer, “uma biografia rudimentar”. Da obra pioneira de António Cabral, o autor lembra que o biógrafo estava incluído entre os estudiosos “proscritos de Tormes”, ao lado de João Gaspar Simões e o padre Alyrio de Melo, ou seja, que não agradavam à viúva e aos filhos de Eça. Em seu livro, Cabral inclui um capítulo sobre os “plágios” de Eça, apontados por Camilo, António Enes, Adolfo Coelho, João Meira e Cláudio Basto.

Entre os biógrafos brasileiros de Eça de Queiroz, o mais importante foi, sem dúvida, Luís Viana Filho, autor de A Vida de Eça de Queiroz, publicada pela editora Lello, do Porto, em 1983, e pela Nova Fronteira, do Rio de Janeiro, no ano seguinte. Trata-se de obra rigorosamente documentada, já que Viana Filho teve acesso a duas fontes principais: a correspondência de Eça com sua mulher, Emília, que hoje faz parte do acervo da Biblioteca Nacional de Lisboa, e a correspondência de Emília para o marido, que o pesquisador consultou em Tormes.

Já a Miguel Melo cabe a honra de ter sido o primeiro autor, em livro, de um estudo crítico-biográfico de Eça, publicado em 1911. Mesmo sem ter tido a oportunidade de ir a Portugal para levar mais adiante suas pesquisas, Melo teve o mérito de fazer uma obra pioneira, exemplo da popularidade que o escritor gozava no Brasil no começo do século XX.

Para Vianna Moog e o seu Eça de Queiroz e o século XIX (Porto Alegre, Livraria do Globo, 1945), as palavras de Campos Matos são mais amenas, embora o escritor gaúcho também não tenha deixado de cair no psicologismo como Gaspar Simões e de ter tomado algumas passagens dos romances queirozianos como experiência pessoal do romancista. Do livro, porém, diz que, escrito em forma sintética e linguagem simples, constitui “obra ainda hoje muito sugestiva”.

Adelto Gonçalves, nascido em Santos, Brasil, é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa e mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanholas e Hispanoamericana pela Universidade de São Paulo (USP). É autor de Bocage: o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Fernando Pessoa: a voz de Deus (Santos, Universidade Santa Cecília, 1997), Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio, 1981) e Mariela morta (Ourinhos-SP, Complemento, 1977). É colaborador da revista Vértice, de Lisboa, desde 1994. Escreve também no quinzenário As Artes Entre as Letras, do Porto, e na Revista Forma Breve, da Universidade de Aveiro, No Brasil, escreve na Revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras, no Jornal Opção, de Goîânia, e na Revista Philologus, do Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos. É membro da Academia Brasileira de Filologia (Abrafil). É professor de Jornalismo na Universidade Santa Cecília, de Santos, e no curso de Direito da Universidade Paulista (Unip), campus Rangel, em Santos. Ganhou os prêmios Assis Chateaubriand, de 1987, e Aníbal Freire, de 1994, da Academia Brasileira de Letras, e Ivan Lins de Ensaios, de 2000, da Academia Carioca de Letras e União Brasileira de Escritores, do Rio de Janeiro.Escreveu prefácios para dois livros de contos de Machado de Assis publicados em 2006 e 2007 pelo Centro Lusófono Camões da Universidade Estatal Pedagógica Hertzen, de São Petersburgo, Rússia, em edição bilíngüe russo-portuguesa. Jornalista desde 1972, trabalhou em O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo, Editora Abril e A Tribuna, de Santos. Foi correspondente em Lisboa da revista Época em 1999-2000.

 E-mail: adelto@unisanta.br