JÚLIO CONRADO.
TRAGÉDIA GREGA

De lágrima gritante contida

lábios semi-cerrados

cortados por finíssimo gume de ironia

(há sorrisos que valem por mil palavras)

incompatível com a solenidade da visita,

doem as cores antigas

ao misterioso forasteiro.

 

Pisa o chão venerado

qual esfíngico ser

incumbido de concretizar um crime

em tudo condizente com o que lhe vai no coração

(porque o cruel assassino a soldo

tem, imagine-se, coração).

Não sabe se lhe caberá agir

no momento da verdade.

Tudo dependerá do resultado do jogo.

Os mandantes tiveram em apreço

a extensa e intensa relação

do viandante com aquele chão

mais a diversidade dos alvos a abater

e desfizeram-se em facilidades.

Age como te aprouver

disseram, complacentes, os mandantes.

Gasta o tempo como melhor entendas. O álibi é seguro.

Juraremos que passaste connosco

a tarde e a noite do dia D

a ver pela televisão a final do Euro

à roda de uns copos

e, no caso de dar para o torto,

situação improvável porque a nossa vitória é certa

pois seria uma ofensa à grande fèzada nacionalista

que vai por esse país de janelas embandeiradas

não sermos capazes de dar a volta

ao anti-jogo daquelas “ratazanas gregas”,

estudaremos outra solução para o teu caso

que não passe pela “colaboração” com esse escritor de meias tintas

tua alma gémea como soe dizer-se, menos na firmeza, na raça.

 

Ficara então assente:

a final do Euro

seria a ocasião ideal

para localizar e isolar os alvos

escolher o melhor ponto de vista

na presunção do aparecimento dos fantasmas

à hora em que um povo chamado de “os portugueses”

do pontapé na bola

estremeceria de amor e raiva equipado a rigor

de cara borrada a verde e vermelho em frente do televisor

no apoio à chamada equipa de todos nós

a braços com a espinhosa tarefa

de evitar uma tragédia grega

na final a jogar em casa sob o assustador trovão

Portugal, Portugal, Portugal.

 

A missão, especificando, era dar caça aos fantasmas

que teimavam em lixar a biografia

de certo escritor que por ali andara em tempo infante e adolescente

de todas as vezes que intentava escrevê-la

com menção das peripécias por si vividas

naquele enigmático sítio

em data a investigar posteriormente

para que batessem coisa com coisa

as sequências da operação em apreço.

 

O homem fora lamentar-se ao padrinho da Organização

que o recebera com aquela solícita boa vontade

de quem não dá ponto sem nó e só presta favores

a um desesperado a troco da fazenda e da alma

prometendo-lhe ajuda

embora enfatizasse estar esse tipo de ajustes de contas

longe da vocação dos seus homens,

habituados a alvos concretos muito circunscritos e visíveis.

 

Disse o padrinho ao escritor apostado em fazer a cama

aos fantasmas sabotadores dos seus mais genuínos ímpetos biografistas

conhecer todavia alguém entre os colaboradores mais próximos

apanhado por pancada na mona do mesmo figurino

quase tendo passado à acção directa, por sua conta e risco, o dito cujo

não fora a habilidade com que o persuadira

das desvantagens das intervenções a solo

ante inimigos tão específicos: os fantasmas nos dias de hoje.

Assim falou o padrinho ao escritor que lhe bebia as palavras

como se fossem proferidas por sentencioso condutor de opinião.

Jurara ainda o padrinho a esse tal colaborador próximo

protecção de retaguarda nas acções directas

desde que não agisse sozinho de modo a deixar-se capturar

e assim comprometer a estrutura de Organização com
[ tão marcada influência

no miolo da sociedade civil pelo que aquele escritor

sem dúvida precisado de ajuda, caíra sob a alçada dele, padrinho,

como sopa no mel.

 

Ora, jura de padrinho vale por escritura,

estando ele agora em condições de dar ao seu operacional

o açucar há tanto tempo reivindicado

para adoçar as pulsões assassinas no atinente à liquidação dos fantasmas

por acaso no mesmo sítio onde o cliente – ou quiçá novo membro -

centrava as suas razões de queixa, o que deixava supor tratar-se

de duas almas gémeas unidas por passados afins

dispostas a dar passos semelhantes

para limparem das respectivas cabeças

os assédios hostis ao seu constitucional direito

a sonos descansados.

 

É claro que ele, padrinho – já foi dito mas não é demais insistir –

não dava ponto sem nó e enxergava longe.

Um escritor em pessoa ter-lhe vindo parar à rede

era ouro sobre azul pois tencionava cobrar-lhe a factura

convidando-o a escrever a sua dele padrinho história

que dava um romance mas enfim

uma biografia com todos também não estaria mal

em troca da cooperação solicitada. O seu mais-que-tudo caça-fantasmas

ansioso por molhar a sopa

numa apoteótica caçada que lhe satisfizesse

o instinto sanguinário, saberia demonstrar eficiência e gratidão.

 

Convocou reunião de conselheiros que chegaram das várias regiões

e de instituições dessas onde a Organização rouba à tripa forra

mas ao menos é bem-amada graças a deixar obra feita

por onde quer que aplique as ventosas do tentáculo de veludo

(e a reputação de betão à prova de bomba é tamanha

que sem a experiência dos seus notáveis mais experimentados,

diz o povo, o país nunca passaria da cepa torta e vá de votar neles)

- conquanto tenha dispensado a comparência da “estrutura”

do futebol, muito ocupada a tentar

entalar as autoridades no caso dos homens do apito -

com a finalidade de opinarem acerca da data, dinheiros, armamento

e, evidentemente, pronunciarem-se sobre a a oportunidade

de finalmente a “família” encarar de frente uma operação-piloto

de envergadura média contra os fantasmas cujas tropelias

começavam a gerar aqui e ali significativos ódios de estimação.

 

Segundo o pensamento do respeitado chefe da “família”

depois de aprovada a operação na generalidade

escritor e operacional não deveriam, por razões de segurança interna,

conhecer-se fisicamente e sim limitarem-se a trocar

correspondência electrónica com o fim de numa acção concertada

elencarem correctamente os fantasmas a “privilegiar”

depois de elaborada a lista provisória ou nem por isso

das respectivas malfeitorias.

 

Na troca de correspondência via e-mail

entre escritor e caça-fantasmas

para a definição rigorosa dos sujeitos a abater

no lugar onde ambos tinham, vieram depois a concluir,

passado as passas do Algarve na meninice agreste

em coincidente percurso,

divergências de critério emergiram logo aos primeiros contactos

graças ao operacional achar muito débeis

as propostas do candidato a biógrafo

a seu ver produto de apenas ressentimento

e não possuído do ódio intrínseco

que faz correr os caça-fantasmas profissionais

para quem a vingança é parte da ordem natural das coisas

e sempre uma questão de vida ou de morte.

 

Prentendia o pistoleiro sanear o professor primário

da sua memória infeliz

por causa dos maus tratos infligidos pelo mestre

cana-da-índia em punho

que à custa de porrada e de vergões de sangue nas nádegas

lhe traçara o perfil assassino,

no que se apercebeu de certa resistência por parte do escritor

em levar as coisas tão longe

quando desse lado julgara poder encontrar incondicional apoio

tão consensual parecia a noção

de que o professor os tratava com sádico requinte

naquelas aulas escaldantes onde perante

um público dócil e amedrontado

fazia o seu número de barbárie ansioso por dar nas vistas

e colher forte ovação nos prantos dos miúdos.

Pôs-se o outro com evasivas do estilo

O gajo era bera mas saíamos das suas mãos preparados para a vida

além disso levou-me a assistir, por dar sempre zero erros no ditado,

ao meu primeiro jogo de futebol de alta competição no Estádio Nacional.

A então selecção das quinas apanhou quatro da França

mas ao menos vi jogar em carne e osso o Araújo,

meu conhecido dos cromos.

Sugiro: preguemos-lhe para já um grande susto.

Não é preciso liquidá-lo.

Ainda me pode ser útil para vilão de um par de novelas.

O operacional começou a ficar desconfiado

do generosa encomenda do padrinho ao dar-lhe por parceiro

aquela encomenda de escritor, supostamente sua alma gémea,

para não estar sozinho na operação

e a lengalenga de colaborar com um autor de romances

ser sempre de considerar nos tempos que correm.

Para pôr à prova a sua determinação enviou-lhe um e-mail

em termos muito ásperos

dando conta da intenção, se não visse inconveniente,

de abater o fantasma do velho, gordo, cura,

que na confissão lhe sacava segredos incríveis

sobre o vício solitário e outros pecados

e hoje só de pensar nisso se lhe apertava o estômago

com a violência própria da animosidade ilimitada.

 

Ao que o escritor redarguiu por idêntica via

sim, claro, por mim tudo bem, pois vejamos

um tiro no coração do padre livrar-nos-ia deste grande peso

às costas da memória,

dá-se é o caso de o referido membro do clero, não sei se te lembras,

ter rodeado de afecto dois preciosos sobrinhos

e hoje ser lícito interrogarmo-nos

se alguém capaz de defender das armadilhas do mundo

com entranhado amor, por assim dizer paternal, os sobrinhitos

cuja paternidade biológica em boa verdade no geral se ignorava,

não mereceria ao menos o benefício da dúvida.

 

O caça-fantasmas revolveu-se de cólera

só não reagindo totalmente à bruta por recear

incorrer na ira do padrinho a quem o escritor enredara

num candonblé qualquer

porquanto as instruções de cima eram categóricas:

só estava autorizado a matar

mediante consentimento da alma gémea.

Ainda assim manifestou ao outro a aflição reinante em si

dando até mostras de alguma cultura literária:

Porquê poupar a vida virtual a um tio de sotaina

se depois de O Crime do Padre Amaro

o tema do cura sedutor está pela hora da morte ?

perguntou o assassino profissional

dando a entender com esta economia de caracteres

insinuações porventura infundadas acerca da paternidade

dos sobrinhitos amorosos, enraizadas no pensamento

qual ideia fixa. E avisou: se te mingua a coragem

vale mais quedarmo-nos por aqui.

Ficas tu lixado e eu idem, aspas, pois bem sabes que o padrinho

não me quer sozinho nestes assados por razões de segurança

além de jamais poder ajudar-te a escreveres a autobiografia
[ livre de fantasmas,

tendo eu de esperar por outro “doador”, sabe-se lá de onde,

sabe-se lá quando, e ele por outro escritor disposto a colaborar

no seu projecto de eternidade. .

Por este andar, rematou o assassino, qualquer dia ando a viver

do subsídio de desemprego e abichas mais um fantasma

a ladrar-te às canelas na hora da insónia: eu.

 

Tens razão, respondeu, conciliatório, o escritor, vistas as coisas

assim à superfície. Mas a superfície das coisas está longe de ser

o dentro das coisas; é preciso relativizar a dimensão dos agravos

até se chegar à fronteira do não retorno

e aí, sim, saberemos qual a exacta extensão da ofensa:

se esta era um verdadeiro crime de lesa-biografias

ou tão só um ilícito exorbitado pela leitura que dele possam ter feito

os que interpretam o tempo e as pessoas segundo
[ as suas próprias escolhas.

 

O caça-fantasmas quase rebentou o teclado ao retorquir no auge da ira:

Já percebi: perdes-te em fintas cuja finalidade é bastante discernível:

reprovas a morte do tio-pároco. Preferes a continuidade da sua presença nos teus pesadelos andropáusicos

sem levares em apreço a importância da personagem

no contexto da repressiva moral sexual

que te envenenou a mocidade. Sabia-te masoquista, mas não a ponto tal.

Dispões de oportunidade única para te libertares da obesa criatura

sem fazeres o trabalho sujo e atira-la para a sargeta.

Francamente, nem chego a perceber por que carga de água foste pedir batatinhas ao padrinho. Irritadíssimo com a alma gémea, o operacional avisou sem rodeios: Se te esquivas a autorizares-me

a mandar desta para melhor os fantasmas da nossa tormentosa infância

ficas já avisado: serás um escritor sem biografia

e um escritor sem biografia, por muitoque se esfalfe, não existe

veja-se o Moura, o que seria dele se não fosse a muleta da biografia.

A escrever poemas ainda vá, agora romances, minha nossa!

 

O outro sentiu nas palavras do interlocutor o desejo

de lhe chamar cobarde com todas as letras

sem no entanto levar a ousadia até ao fim, na esperança, talvez,

de haver ainda algum espaço de manobra, entregar, por exemplo,

a carta a garcia antes de chegar ao extremo de baixar os braços

e confessar-se, ao padrinho, impotente para cumprir os serviços mínimos

quanto mais a parte atractiva da complexa operação - presenciar até ao último suspiro a agonia dos alvos selectivos depois dos disparos fatais.

Estava mesmo a ouvir o padrinho, a quem dedicava o temor reverencial

devido aos reis, verberando a sua incompetência para dar a volta ao texto:

As almas gémeas andam, acaso, aí aos pontapés? Não percebes o milagre que foi termos tropeçado nesta? Onde acharás tu, cretino, do pé para a mão, uma alma gémea que conheça tão bem como tu os fantasmas a abater?

Assim, dirigindo-se-lhe, falaria em tom rude o padrinho

fechando-lhe as portas e porventura retirando-lhe a confiança

até despromovendo-o da categoria de caça-fantasmas de alto escol

e obrigando-o a regressar ao pelotão dos caça-fantasmas anónimos,

carne para canhão, guarda-costas ousimilar,

padrinho no fundo alarmado com a possibilidade

de ver gorada a ocasião de alguém de nível acima da média

escrever a história da sua vida que dava um romance

ou quanto muito uma biografia com todos.

O operacional ponderando nestas boas razões, deciciu-se a engolir

mais um sapo e a reatar o diálogo, oferecendo ao escritor
[ nova oportunidade

de se abrir o activo, desta vez apresentando o trunfo

de um fantasma irrecusável, diga-se:

E a Nani? Desfaçamo-nos da Nani! – disparou, metaforicamente falando,

o ás do gatilho, já meio descoroçoado; o poder de esquiva do escritor

dilatando equívocas hesitações que sabotavam drasticamente a execução

do plano conjunto de eliminação dos entes responsáveis

pelo seu alegado mal estar ontológico, punha-lhe os nervos em crista.

À simples evocação daquele nome no e-mail assinado pelo caça-fantasmas

o escritor estremeceu. A sua resposta foi ambígua: É uma hipótese a ter em conta. O matador rejubilou mas o regozijo foi de pouca dura.

O futuro provável biógrafo do padrinho rectificou: via-a há tempos num transporte colectivo, na capital.

Está uma velha carcaça imprópria para consumo.

A vida puniu-a com severidade atroz.

Olhei-a, espantado. Compreendeu. O meu alarme provinha

do espectáculo proporcionado pela senectude ostensiva.

Ora não me sinto grande coisa a bater em mortos

e em mortos-vivos, podes crer, ainda fico pior.

Mas ela, especificou o assassino, avivando a memória do cliente,

punha-te a cabeça em água quando no Verão habitava

aquela parte de casa no edifício dos Correios

desdenhava de ti e chamava-te sopeirão por frequentares

o baile da verbena dos Bombeiros, insistiu o algoz, pressentindo tocar

num dos pontos fracos do plumitivo. Tu não vias outra coisa senão

a caramela, rondavas-lhe a casa sem descanso

e mandavas-lhe bilhetes pela criada

até um dia esta deixar entreaberto o portão do quintal

para observares bem observada

a cena de marmelada com o namorado oficial de visita

e então, lembro-me bem da tua desgraçada figura,

desejaste com todas as forças o imediato fim daquele merdoso Verão

ainda mal começado e curtiste um enorme desgosto

até ao desmanchar da feira estival nos fins de Setembro.

 

Não te sabia tão por dentro da lamentável ocorrência, admirou-se o escritor.

Ainda assim, aquele meu intenso olhar comiserativo

no transporte colectivo

é castigo bastante. Que a beleza é bem efémero decerto não o ignorava

a morta-viva dificilmente reconhecida à primeira, tanto que, ao ver-me, baixou de imediato os olhos, contristada.

A bela até ao sufoco metia agora medo ao susto:

pele pregueada, os dentes esporádicos, cabelo ralo,

sombra da menina que em cada Verão

morava na parte de casa do edifício dos Correios

e nas minhas fantasias e anseios não correspondidos.

Não! A Nani está virtualmente morta. Mortificado ficava eu se autorizasse

o tiro de misericórdia. Em assunto de amores, a vida foi-me confortável,

não me queixo. Nem me lembraria da Nani como alvo se não fosse a tua memória de elefante ter vindo acordar esse fantasma em mim.

Na Nani não se toca! É conversa acabada.

 

Desta vez, espantou-se o operacional: a reacção enérgica

da alma gémea ao descartar um alvo de primeira linha como a Nani.

trazia algo de inédito à conversa electrónica.

A atitude decidida de alguém que até aí só dera mostras

de um suspeito défice de capacidade beligerante

surpreendeu o homem da acção directa

quase levando este a arrepender-se de ter forçado

a comparência da pequena

no tribunal dos dois decisores, o juiz e o carrasco,

sendo, como parecia ser, território ainda resguardado

no imaginário sentimental do primeiro como quem não quer a coisa.

E passou rapidamente a outro alvo-fantasma.

 

Temos ainda aquele político tipo cacique local

pretenso sabedor das vidas das pessoas da comunidade uma por uma

que um dia te bateu à porta de casa

depois de “assoprado” por vizinhos invejosos

para perguntar aos pais atarantados onde parava o avô

a quem pela Junta de Freguesia era mensalmente atribuído

um pequeno subsídio de velhice então abono de família chamado

e compungidos tiveram de declarar

que o velhote não suportava viver enclausurado

e tornara ao sul colorido para ali acabar os seus dias

inebriado pela brisa marítima e pelo cheiro da terra.

Foi-se o subsídio à vida, piorou a vida dos teus pobres pais

Dispondo agora de menos salário para tanto mês.

 

Tempos depois andou a espalhar o boato de que te tornaras comunista

só porque escrevias nos jornais coisas contra a Situação, e naquela altura

quem não era a favor da Situação espiava comprovadamente

a soldo da potência levantina que tirava o sono ao ditador,

por pôr em causa o direito à propriedade privada,

não se fazia a coisa por menos.

Não me digas que já deixaste de ser antifascista

e esqueceste o ultraje ao teu avô

como se o magro subsídio de velhice

fizesse perigar o equilíbrio do Orçamento do Estado,

insurgiu-se amargamente o operacional, prevendo o pior.

Uma bala no centro da testa desse fantasma

e tinhas o problema resolvido para sempre, repisou.

 

O interpelado de novo sopesou as vantagens e o seu oposto

relativamente a acções violentas

dirigidas a um fantasma sem dúvida incómodo,

fonte de agressões à sua coesão interior,

acção todavia legítima

vistas as coisas pela rama do esquematismo positivista,

por se tratar de alguém que merecia,

face ao comportamento descrito pelo matador,

um correctivo exemplar e correctivo mais exemplar que a morte não há,

assim o abona o desígnio do pai dos povos:

ficou-se de morte natural apesar de tanta mortandade espalhar

no decurso do longo consulado.

Mas alguns óbices provocadores de turbulência no seu subconsciente

levaram-no a considerar a morte um castigo excessivo

para quem afinal lhe arranjara o segundo emprego,

(quem sabe se por remorsos de ter feito aquilo ao avô)

e indirectamente lhe proporcionara bastos anos de alegria de viver

numa terra certificada por pessoas de bem

ser cópia autêntica do paraíso, o próprio,

onde namorara, casara e fora pai de duas raparigas adoráveis.

 

Como posso eu, assassino de um raio – defendeu-se o escritor –

dar-te luz verde para assinares a certidão de óbito

do bom fascista que me deu emprego

em localidade tão amigável e amena,

conquanto, ao fazer mais tarde aí constar

relacionar-me com o grupo do Ribamar

fosse o mesmo que dizer à pide: “Cuidado com esse!”

- sem que me roa os intestinos uma azia funesta

e chegue à superfície a espuma

dos dias felizes vividos no atrás mencionado paraíso

com mar (de amar) e tudo?, graças a um remorso, vamos,

que tivesse presidido à guinada benévola do referido situacionista?

deixou no ar o aspirante a biógrafo

do mais importante capo do país, de vísceras revolvendo-se

numa contradição incapacitadora ao ponto de fazer num oito

a paciência da alma gémea.

 

O assassino, com efeito, quase destruiu o teclado a escrever uma única palavra:

BASTA!

Pela primeira vez, descrendo completamente do antifascismo do escritor,

equacionou a possibilidade de apresentar ao padrinho o pedido de demissão

por sistemática e escandalosa obstrução a sugestões consideradas

perfeitamente cabais no quadro referencial comum a ambos

porquanto a coeva vivência tornava os respectivos alvos

de tal maneira indiscutíveis que não se percebia como é que o indivíduo

movido por anseios de desforra

e que fora pedir batatinhas ao padrinho para que lhe resolvesse

o dilema existencial, a troco de lhe escrever a biografia

ou mesmo um romance sobre a sua vida,

se perdia em dúvidas quando tinha a faca e o queijo na mão

para resgatar todas as injúrias dos tempos difíceis

contando com a colaboração de um operacional do melhor calibre

e da mais fina reputação na praça celerada

ainda por cima informado conhecedor dos factos.

 

A grande justificação que daria ao padrinho era a de que o homem

desejava mas não queria ajustes de contas sangrentos,

atitude incompreensível para ele, pistoleiro afamado,

pois onde já se viu um verdadeiro ajuste de contas

sem sangue, suor e lágrimas, sem carpideiras e funerais

assistidos por multidões ululantes clamando por vingança? Onde?

E onde já se viu alguém mover montanhas para chegar à fala

com uma pessoa tão incontactável e remota como o padrinho,

convencê-lo da urgência de um ataque letal que pussesse cobro

a vastos ódios fantasmáticos de estimação

e depois de tudo acertado ao mais alto nível

baldar-se sem se lembrar que o seu caso era também o dele, operacional,

por isso fora escolhido para a missão de lana caprina

transformada subitamente em missão impossível

por mor da estranhíssima tineta do escritor em querer armar em porreiraço

não obstante os passos dados para levar a sua avante,

como se em vez de correr os fantasmas a tiro

apenas pretendesse admoestá-los com repreensão registada.

 

O capo mais importante do país

já um bocado chateado devido às reclamações do matador de elite

e ao facto de o escritor ser um bate e foge de primeira apanha

chamou outra vez os conselheiros chegados e pediu-lhes

com o à vontade dos padrinhos no trato concedido

aos afilhados de confiança

que o aconselhassem quanto ao que havia a fazer

para não hostilizar o operacional de raça

e salvaguadar, ao mesmo tempo, a ocasião única

de passar à História em letra de forma.

Noutra situação, já teria furado o céu da boca ao escritor

e mandado o caça-fantasmas recolher às boxes

mas tinha-se chegado tão longe

e as circunstâncias aconselhavam tanta prudência

que era todo ouvidos à espera do rasgo

capaz de iluminar capacidades e formas de acção

oriundo de algum dos notáveis convocados

para apresentarem sugestões coerentes com o gabarito do assunto.

 

Foi então que alguém disse sem grande convicção

a debitar arroz fingido: A final do Europeu

era um bom ponto de partida e excelente ponto de chegada.

Se ganhassem os gregos, o escritor ficava livre de fazer

o que lhe desse na real gana quanto a mortes, embora

não lhe fosse consentido abandonar o processo à papo-seco

isto, é deixar de escrever o que se tinha comprometido a escrever

a respeito do mafioso número um de Portugal

nos seus interesse e segurança

porquanto este e os membros mais qualificados do seu staf

tudo haviam feito no sentido de ele se libertar dos fantasmas odiosos

a atravancarem-lhe a progressão na carreira,

impedindo-o mesmo de redigir a própria biografia

e quiçá de atingir a almejada obra-prima.

Não se pode pôr em marcha a máquina da Organização

para a execução de crimes de sangue sem cobrar um preço muito alto.

 

Então ficou assim:

Se ganhassem os Portugueses, o caça-fantasmas

ficava com as mãos livres para se infiltrar à vontade

entre os manifestantes, que no final do jogo se entregariam,

obviamente, a fantásticas – previsíveis e previstas - celebrações de regozijo,

sendo-lhe facultado premir o gatilho ao seu belo talante

e mandar desta para melhor

os “alvos” referenciados, sem ter de dar cavaco ao escritor

ainda que este fosse acometido, à última hora, de qualquer reacção precipitada

com vista a evitar o banho de sangue.

A Organização garantiria o álibi perfeito

caso a polícia se atrevesse a incomodar.

 

O padrinho, ouvinte atento da proposta formulada

por uma das mais lúcidas cabeças do Conselho restrito de consultores

achou a ideia genial, premiando o autor dela com um elogio

do tamanho do mundo: É desmedido o orgulho que sinto

por haver nesta sagrada “família” mentes tão brilhantes. Está decidido.

Vamos já pôr as almas gémeas ao corrente da deliberação do Conselho.

Ai delas se resmungarem.

 

E assim o caça-fantasmas se fez à Vila

óculos escuros, sombrero negro à Zorro,

artilharia pesada disposta em éle no interior do capote de couro

à direita e à esquerda,

naquela tarde de ruas desertas e ecos

da angústia do povo de olhos colados ao televisor

confiante ou nem tanto na vitória da equipa de todos nós

que lhe daria a possibilidade de consumar o massacre

no pico dos festejos

à sua maneira assassina

sem a alma gémea a travar-lhe a mão no último instante.

 

Percorreu toda a Vila à espera dos golos salvadores

da sua honra e da do padrinho

de micro-auscultador no ouvido, ligado ao transistor

sem que as estrelas portuguesas achassem modo de contrariar

o anti-jogo das “ratazanas” gregas

até que o inesperado aconteceu:

na sequência do pontapé de canto

a “ratazana” grega mais corpulenta elevou-se como um peso-pluma

ao primeiro poste

“apoiou” o dedo mindinho da mão esquerda, qual agulha de ferro,

no ombro do inocente Ricardo,

impedindo o nosso guarda-redes de “subir”,

cabeceou para dentro da baliza das quinas

sempre de dedo mindinho espetado no cândido adversário

e o anti-jogo, a partir de então ainda mais apertado,

consumou a tragédia.

 

Por alturas de se preparar para a matança

o caça-fantasmas era um homem desolado.

Deixou a Vila pela esquerda baixa

e foi chorar no regaço do padrinho

lamentando a triste sina

de não poder dar cabo dos fantasmas odiados

num abrir e fechar de olhos

por causa do dedo mindinho da “ratazana” grega

cravado no ombro do pató do Ricardo

como uma agulha de ferro.

 

O escritor, claro, respirou de alívio e, propenso ao perdão,

desapareceu do mapa sem ter morto ninguém

enviando mais tarde ao padrinho mafioso uma carta

expressando fundo arrependimento e a lamentar-se

da sua queda para o porreirismo, esclarecendo que presentemente

os fantasmas continuavam a infernizá-lo

e nem era já a sua dele escritor biografia o que estava em causa,

pois dessa já desistira, mas a do próprio padrinho

por não sentir qualquer motivação / inspiração

para a escrever, só lhe restando agradecer as atenções,

pedir desculpa pelo incómodo

e refugiar-se em parte incerta no mais completo anonimato

à espera de melhores dias.

 

Veio nos jornais e a televisão deu.

 

O corpo do escritor foi encontrado,

de nuca baleada,

na sua praia favorita (talvez na maré-baixa)

por dois pescadores desportivos que vinham de apanhar polvos nas rochas.

Aberto, a tapar-lhe o rosto,

o exemplar de um dos seus livros

com uma inscrição recente, na capa verde-mar,

a tinta preta de caneta de ponta de feltro:

Agora, és um escritor com biografia .

Assinado: Caça-Fantasmas

Julho, 2006