:::::::::::::::::::::::::::::AMADEU BAPTISTA

Quinze Poemas de Amadeu Baptista - Index

O pintor aplaudido pela inspiração

sou a inspiração que o pintor procura
em lugares desabridos e raramente encontra.
ele procura-me onde ninguém suspeita,
e eu existo e não existo, sem que possa
revelar a minha presença imperscrutável.
às vezes nem uma sombra sou e o pintor
não pode mais fazer do que lançar o olhar
sobre os desígnios do mundo,
a decifrar a amplitude da luz
que reiteradamente lhe entrego
quando o vento e a memória reproduzem
os decisivos sinais do desvendamento.
ele prepara a tela, estica-a na madeira, cria
as condições para que o abismo funcione
e, com o olhar, arrisca procurar-me no mistério
em que a limpidez esboça uma formulação de vozes
e presenças complexas. inspiro-o, inspiro-o, sempre,
e o seu olhar é dramático e abrupto, a convergir
num julgamento sumário, uma ameaça
em que o sangue assume a dimensão de um incêndio,
uma devastação. onde estou? onde está a linguagem
que comigo vem?
onde estarei antes mesmo de, na sua nuca,
me tornar implícita no que quer que pense?
onde estarei na cabeça do pintor?
onde lhe inflijo o golpe para que tudo desvende
para nada desvendar, levando-o
a uma folha de nogueira e uma marca na carne como adivinhação
e indício seguro de um prodigioso esplendor?
essa marca lacera-o,
essa marca impele-o para um exercício
de hipóteses entre as escolhas inúmeras
e, num momento, o pintor decide-se por uma ideia simples,
cabendo-lhe aguardar que o rastilho magnífico se incendeie.
o meu rastilho, a inspiração, o confronto inevitável
com o clarão que lhe sitia as têmporas e ele sabe existir
quando opta entre este e aquele pincel de cerdas muitas espessas,
ou liberta o óleo na superfície danada que o mata em cadeia
e lhe coloca no coração insuperável
a última questão que a pintura levanta.
o pintor é bravio, evoca a distância, transpõe a agitação,
faz coincidir a incoincidência com o tumulto e o uso,
semicerrando as mãos, sentindo no pescoço
as forças avassaladoras e vitais que o entregam
à tarefa de dar corpo ao corpo da existência.
sem que me veja, o pintor pressente-me,
convoca-me, aceita-me,
e as cores soltam-se-lhe das mãos, remontam à inocência.
o pintor é um eremita a perscrutar
a pedra, sondando-lhe o interior, a ver
na escuridão uma seara povoada por infinitas
legiões de camponeses que mergulham as mãos na luz
e, como anjos,
vislumbram no horizonte imperfeito um mar de trigo a arder,
sempre a arder, na distância.
o pintor procura-me,
procura-me em lugares desabridos, procura-me
do início ao fim da vida, sempre a supor
que só me encontrará pela possibilidade perpétua
do desencontro, esta pedra, esta colheita, tudo quanto
irradia pelo centro nervoso do pintor
sempre que a inquietação sobrevem e a cegonha
e a garça cortam o ar irrespirável,
ou um fio de azeite flui na malga nacarada e azul,
ou o leite fumegante se derramada,
lentamente se derrama para que a visão prevaleça
e o latido de um cão negro, mais do que ouvir-se ao longe, possa ver-se.
o pintor sabe, ou suspeita, insidiosamente,
que a linguagem, qualquer linguagem, é um clarão.
e o meu assédio é total, brutal, eficaz.
entrego o poder de sonhar ao pintor e ele constrói
destruindo, e destrói, construindo,
sobrepondo as camadas de tinta numa organização
envolvente e transgressora, prefigurando no caos
a maciez do espanto e o orvalho da força.
não havia no mundo esta irrisão, não estava esta mão
a segurar o encarnado na tela omnisciente,
não podia esta asa reflectir na treva a indefectível
aventura, mas, de repente, a alguma coisa
qualquer coisa se acrescenta,
o lento corrupio emerge da criação,
a luz faz-se,
apartam-se as águas,
há o homem, há a mulher.
e eu a atormentá-lo sempre, a perseguir o artista,
a zurzir-lhe nos ombros a vara da aflição e do fascínio,
a prender-lhe aos cabelos a escuridão das casas
e dos lugares em que concebe um traço e outro,
um espaço e outro espaço.
ali está a árvore dos seus mortos,
aqui está a mãe a espevitar o lume,
naquele berço os filhos que há-de ter
e há-de ver crescer,
ali está, no exacto lugar em que a luz oscila,
a figura subtílima que só em sonhos pode ver,
o quadro.
o quadro, ainda,
com todas as suas ramificações obscuras
e os seus lados brilhantes.
inspiro-o, inspiro-o sempre.
e o pintor recomeça,
a obra há-de fazer-se. a boca solta
vários sentidos nesse único sentido, a boca
regurgita o negro e a alegria.
de novo o levo a preparar a tela, de novo prende e liga
as coisas entre si, esta tesoura apara,
aquele grampo une, segura
esta travessa os paus duma jangada que o pintor quer
encontrar para rumar ao sul.
é agora um jovem e vai-se enamorar.
no ar incendiado a rapariga passa e o pintor
perscruta-a com o coração.
a uma janela, penteia-se, a mulher,
e sente-se o seu perfume a invadir o ar.
tens nome, rapariga? e o pincel responde com a densa
intrepidez de quem está no incêndio para morrer
e pôr o corpo todo na pincelada breve.
eis os cabelos negros, essa camisa branca.
e um seio desenha-se. na farta cabeleira
alastra a luz perfeita, como se a luz soltasse,
naquela zona escura, toda a paixão que assiste
a quem desvenda a terra.
tens nome, rapariga? e o pintor procura-a,
procura-me o pintor,
e não sabe se existo ou se não existo,
e como assim o induzo à maldição de sempre,
ou lhe segredo ao ouvido o que não quer ouvir.
encontram-se no real todos os vestígios
com que se armam as cenas, os sinais poderosos
que há nos gritos dos homens.
os símbolos que utiliza são do chão que lhe chegam,
anota na vertigem a vertigem dos dias.
os homens que conhece possuem um vigor
que a si mesmo ultrapassa.
um deles é um amigo, morreu assassinado.
morreu por pouca coisa.
quando matam alguém porque tem fome apenas
e é pão que reclama , morre-se sempre
por muito pouca coisa. de madrugada o mataram,
à queima-roupa o mataram,
com um tiro na nuca, porque pedia pão
e era pintor também.
o pintor interpreta esta morte como se lhe tivessem
disparado o revólver na boca,
o sangue cai em flocos como se estivesse a nevar
e a neve em presença fosse uma pintura vermelha,
extensa, obsessiva, aterradora.
o pintor amplia a verosimilhança dos temas,
procura e procura-me, procura
e encontra-me,
e eu inspiro-o a que aja.
havia um animal numa certa casa antiga,
tantas vezes o viu que acabou por esquecê-lo.
até que, ali onde trabalha, entregue a pensamentos
que não pode explicar, o viu surgir do nada, a voar
sobre os quadros. então aconteceu
que impôs à tela branca o animal acossado
e o pintou assim, num duplo encantamento
de o estar a ver ali e onde o vira quando,
não mais que um menino, representava a noite
com pequenas estrelas traçadas a carvão.
esse animal, sou eu, obviamente,
que em várias noites venho por montanhas
e vales a inspirar,
a conspirar,
para despertar no pintor o que em si dorme há séculos
e em pura fúria persiste sob o eterno interdito
ou essa lâmpada,
a balbuciante lâmpada da tristeza.
a linguagem, qualquer linguagem, é um clarão.
e eu instigo o pintor a que me procure
para que sobre as coisas outra coisa perdure.
algumas destas figuras são o pintor a sonhar.
algumas destas figuras são o pintor a sofrer.
aqui, ali, onde quer que me encontre e te encontre
o pintor não pode esmorecer. talvez
seja possível entre a penumbra ver. a inspiração,
a pintura, são uma revelação incerta,
sem limites,
onde os vendavais circulam.
e não há refúgio para sobreviver.
nesse clarão, às vezes, os sinais luminosos
que estão em toda a parte,
mas permanecem invisíveis porque não sabemos,
ou porque não podemos, ainda, procurar,
aparecem,
tal como acontece ao espírito do artista,
visível a olho nu,
nas obras que executa.

de O Som do Vermelho, 2003

Amadeu Baptista nasceu no Porto, a 6 de Maio de 1953.
Obras publicadas, poesia:
As Passagens Secretas. Coimbra, Fenda Edições, 1982
Green Man & French Horn (in A Jovem Poesia Portuguesa/2, em col.), Porto, Limiar, 1985
Maçã [Prémio José Silvério de Andrade – Foz Côa Cultural, 1985], prefácio de Maria da Glória Padrão, Porto, Limiar, 1986
Kefiah, prefácio de Floriano Martins, Viana do Castelo, Centro Cultural do Alto Minho, 1988
O Sossego da Luz, Porto, Limiar, 1989
Desenho de Luzes (edição galaico-portuguesa), Corunha, Amigos de Azertyuiop, 1997
Arte do Regresso (pelo primeiro capítulo deste livro, Cúmplices, recebeu o Prémio Pedro Mir, na categoria de Língua Portuguesa, promovido pela revista Plural, da Cidade do México, em 1993), Porto, Campo das Letras, 1999
As Tentações, Santarém, Edição “O Mirante”, 1999
A Sombra Iluminada (in Douro: Um Percurso de Segredos, em col.), S/l, Instituto Navegabilidade do Douro e Campo das Letras, 2000
A Noite Ismaelita, Guimarães, Pedra Formosa, 2000
A Construção de Nínive, Porto, Edições Mortas, 2001
Paixão (Prémio Vítor Matos e Sá, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2001 e Prémio Teixeira de Pascoaes, 2004), Porto, Afrontamento, 2003
Sal Negro (in Sal Negro Sal Branco) Almada, Íman Edições, 2003
O Som do Vermelho – tríptico poético sobre pintura de Rogério Ribeiro, Porto, Campo das Letras, 2003
O Claro Interior [Prémio de Poesia e Ficção de Almada – 2000/poesia], Almada, Íman Edições, 2004
Salmo, Porto, ASA, 2004
Negrume, Lisboa, Edições & Etc, 2006
Antecedentes Criminais (Antologia Pessoal 1982 – 2007), V. N. de Famalicão, 2007
O Bosque Cintilante, [Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama– 2007], V. Nogueira de Azeitão, Edição das Juntas de Freguesia de S. Lourenço e de S. Simão, 2007 (fora do mercado)

Organização de antologias:

Quanta Terra!!! - Poesia e Prosa Brasileira Contemporânea, 2001;
Álbum de Acenos – Antologia de Poesia e Fotografia, 2001.
Poesia Digital – 7 poetas dos anos 80, em col. Com José-Emílio Nelson, prefácio de Luís Adriano Carlos, Porto, 2003
Colaboração dispersa em jornais, revistas, livros colectivos e antologias nos seguintes países: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, E.U. A., Espanha, França, Grã-Bretanha, Itália, México, Portugal, Roménia e Uruguai.
Poemas seus foram traduzidos para castelhano, catalão, francês, italiano, inglês, romeno, neerlandês e hebraico.