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RITO DE PASSAGEM
CUNHA DE LEIRADELLA
 
A importância do Suplemento Literário na divulgação de escritores brasileiros foi tamanha, que se criou o até o bordão Geração Suplemento. Aqueles autores que participaram da sua fundação em 1966 e foram lançados por ele. Eu não participei dessa geração. Infelizmente, só cheguei a Belo Horizonte na lua crescente da quinta-feira 29 de maio de 1980. Mas já cortava vento, há vinte e dois anos, no campanário das urtigas do Rio de Janeiro. Nada contra nem a favor, muito antes pelo contrário. Apenas cheguei atrasado. Que se fosse mineiro, não teria perdido aquele trem. Ah, não teria. De jeito maneira.

Peguei o Suplemento Literário já na sua segunda fase, mas ainda na regência da batuta de mestre Murilo Rubião, com a beleza eterna da Branca de Paula fotografando gregos e troianos, a provar aos de cá e aos de lá do muro de Berlim que não é só no cinema que uma boa imagem vale por mil e dez palavras. Na fotografia também. Também, assim, quando a legenda é legível e o conteúdo assimilável. Caso contrário, ficam elas por elas e cada um fala, ou gagueja, a sua própria linguagem.

Sou das serras. Nasci no norte de Portugal, quase fronteira com a Espanha, entre neve, águias, lobos e raposas, e contrabandistas, que ainda os havia naquele tempo, e descobrir Belo Horizonte, depois de pescar até minhocas no asfalto da Avenida Rio Branco, só entende o alívio que isso dá quem já pegou hepatite nos mangues poluídos das praias cariocas. Porque, descobrir Belo Horizonte não é só descobrir Belo Horizonte, que nem o Vasco da Gama descobriu o caminho marítimo para a Índia e mandou ver o primeiro concurso misse mundo em Calecute. Descobrir Belo Horizonte, além de surfar os olhos no capim da Serra do Curral e imaginar que a neve vai cair e os lobos vão uivar, foi sentar no bar Lua Nova, na mesa de mestre Murilo Rubião, que criou o realismo mágico em 1947 com a publicação de O Ex-Mágico , muito antes do Gabriel Garcia Marques dizer que ninguém escrevia ao coronel e magicar nos Cem Anos de Solidão , e foi também tomar um chope na Casa dos Contos com o Oswaldo França Júnior e perguntar: ô, França, me diz, por quê que há tantos olhos verdes passeando por aí, hem? E ele, que era doutorado no assunto, responder com a certeza das coisas feitas que merecem ser bem feitas: porque a Natureza é feminina, Leiradella.

E foi assim que descobri Belo Horizonte. Aos poucos, degustando cada esquina e cada chope, e, principalmente, abrindo caminho às amizades. Caminho vagaroso, que mineiro só abre a porta depois de espreitar pelo buraco da fechadura e ter certeza de quem vem. Mas, sinceramente, gostei da vagareza. Não porque devagar se vai ao longe, que de longe, muito longe, tinha eu vindo, mas por saber que, tão logo a porta abrisse, outras se abririam e nenhuma mais se fecharia. E não fechou. As únicas portas que, hoje, não mais se abrem são aquelas, felizmente poucas, cujas chaves São Pedro guardou no seu chaveiro. Na memória de dez mil quilômetros de distância, a saudade do Euclides Marques Andrade, do Owaldo França Júnior, do mestre Murilo Rubião, do Roberto Drummond e do Adão Ventura.

Quando cheguei, dizia-se que Belo Horizonte tinha a maior densidade de bares por milímetro quadrado de todas as Oropas, Franças & Bahias. Não sei. Nunca fui dado a cavalarias matemáticas e meditações milimétricas nunca foram o meu forte. Mas, e isso é verdade, mineiro sem praia faz o quê? Senta no bar e deixa a vida rolar pela calçada. E uma das coisas que mais me espantou nos dias que se seguiram à minha arribação às terras alterosas, foi a Branca de Paula e o Carlos Herculano Lopes, aquele (quase) menino que vendia as estórias da terra de Santa Marta de bar em bar pela Savassi, transformarem A Mulher Proibida e O Sol Nas Parede s em catecismos de leitura e conversa obrigatória antes e depois de um chope ou uma caipirinha bem gelada.

Outros livros apareceram naquele ano em que o papa João Paulo II visitou o Brasil e a cidade de Ouro Preto passou a ser considerada patrimônio mundial da humanidade. Jamais esquecerei, por exemplo, a noite de autógrafos de A Máquina de Fazer Amor , do Wander Piroli. Foi a primeira vez que tive que subir vinte e dois andares para pegar um autógrafo, o lançamento atravessava salas e corredores da sede do Teatro Universitário, no edifício Acaiaca, e o autor não autografava sentado. Cirandava no meio dos convidados como se, também ele, estivesse pegando autógrafos ou quisesse encontrar alguém com quem pudesse experimentar o funcionamento da sua máquina. Muitos outros autores escreveram bons contos e bons romances. Mas cito apenas a Branca e o Carlos Herculano, ambos estreantes, justamente porque foi deles que recebi o maior soco na boca do estômago. E muitíssimo bem dado e ainda melhor recebido. A Mulher Proibida e O Sol Nas Parede s são dois livros que têm lugar cativo na estante das minhas jóias literárias.

Mas não foi pela porta da ficção que entrei na catedral das letras alterosas. Foi pela porta do teatro. O fato de ter aparecido um conto meu, A Luz Amarela , entre os quinze melhores contos de 1980, selecionados pelo Prêmio Status de Literatura, na minha idéia, isso não me dava ainda o status de escritor. Era apenas um conto, e eu sempre soube que uma andorinha só não faz verão, faz cocô. Por outro lado, nos vinte e dois anos que cortei vento no campanário das urtigas do Rio de Janeiro, sempre estive metido nos palcos teatrais, ora como autor ora como diretor. Foi com o Teatro de Equipe do Estado da Guanabara que montei e dirigi as minhas primeiras peças, Inúteis Como os Mortos, Réquiem op. 1 e O Homem Calado. E fundei, em 1965, com Amir Haddad e Maria Helena Khünner, o TUCA-RIO (Teatro Universitário Carioca). Renata Sorrah e Roberto Bonfim, hoje atores consagrados no palcos teatrais e nas novelas de televisão, apareceram no espetáculo O Coronel de Macambira , dramatização do poema de Joaquim Cardozo, a primeira montagem do grupo.

Sempre fui um sujeito avesso a trombadas. Sejam dadas ou recebidas nas filas do cinema ou do gargarejo. Mas o fato é que, uma noite, alguém trombou comigo e me arrastou para o aniversário de uma proeminente figura do jet set belorizontino. Senti-me um peixe completamente fora de água, mas valeu o sufoco. A frase, que escutei de uma senhora num tom de definitivo conhecimento de causa e de certeza, você sabe que o que eu mais admirei naquela tal Capela Sistina, lá em Roma, foi os quadros estarem pregados nos tetos em vez de pendurados nas paredes, só veio confirmar que o Tio Patinhas tinha mais do que razão. Uma montanha de dinheiro pode comprar seja o que for. Até o direito de se pregarem quadros nos tetos dos banheiros. E a peça As Pulgas , que também tinha o direito de afirmar, infelizmente, hoje já não se fazem mais antigüidades como antigamente, e que já se coçou em vários sotaques portugueses e brasileiros, nasceu na noite daquela festa e por causa daquela frase. E tão bem soube coçar-se, que ganhou o I Concurso de Textos Teatrais Rede Globo de Televisão/APATEDEMG 1982.

E a festa continuou. Outras peças vieram, Laio ou o Poder , O Homem Sentado , Cor Local e Judas , todas interpretadas, dirigidas, produzidas ou xeretadas pelo espanhol Elvécio Guimarães. E, felizmente para mim, todas também criticadas pelo Jorge Fernando dos Santos e pelo Marcello Castilho Avellar. Dois dos maiores analistas da produção teatral das alterosas. O Jorge também excelente romancista e dramaturgo, e o Marcello, o diretor que fez uma das melhores interpretações subtextuais que vi de A Cantora Careca , do Eugène Ionesco. Mas os amigos do palco foram muitos e muitos créditos depositaram na minha conta bancária da amizade. Antônio Nadeo, Carlos Alberto Ratton, Elvécio Guimarães, Jair Razo, Jota D'Ângelo, Lorelay Schneider, Magdalena Rodrigues, Marcello Castilho Avellar, Mauro Alvim, Pedro Paulo Cava, Raul Belém Machado, Rodrigo Leste, Ronaldo Boschi, Sérgio Abritta, Soraya Hamdan, Waldir Luna Carneiro, Walmir José, Wilma Henriques, Wilma Patrícia, e tantos e tantos outros, sem os quais jamais eu e o meu teatro seríamos o que somos.

Mas há tempos para tudo, e o Eclesiastes está aí que não me deixa mentir. E num desses tempos, o tempo qualificado das intenções deliberadas, fiz uma pausa no teatro e voltei à penumbra onde A Luz Amarela tinha acendido a primeira vela. Apenas tinha esquecido que se o homem põe e Deus dispõe, a mulher a ambos compõe. Só que o esquecimento foi total e não houve composição que desse jeito. Aí, sempre influenciado pela sabedoria daquela resposta do Oswaldo França Júnior, porque a Natureza é feminina, Leiradella, dei uma de natureba e entrei de cabeça na criação do meu primeiro romance, Sargaços . E, embora digam que navegar no Mar de Sargaços é afundar navios e almas, até que naveguei muito melhor do que pensava. Foi um longo tempo de espera. Mas se (saber) navegar é preciso, (saber) esperar ainda é mais.

E valeu a pena a sentada na cadeira do vamos ver, pois consolidei o Eduardo da Cunha Júnior, aquele personagem/personagem que me vinha perseguindo desde o tempo em que cortava vento no campanário das urtigas. Ainda no Rio de Janeiro, ei-lo que aparece vendedor de livros na peça Inúteis Como os Mortos , e, já em Belo Horizonte , ei-lo que aparece executivo no romance O Longo Tempo de Eduardo da Cunha Júnior , dramaturgo no romance Guerrilha Urbana , jornalista no romance Cinco Dias de Sagração e engenheiro no roteiro de cinema O Circo das Qualidades Humanas . E em muitos mais textos. Na verdade, praticamente, um novo Eduardo para cada novo texto. Mas, em essência, apenas um Eduardo. Aquele que é exatamente como eu, apesar de eu não ser como ele. E eu não sou como ele porque ele consegue ser, ao mesmo tempo, tudo que eu não gosto de ser e sou, e tudo que gostaria de ser e não sou.

Me disseram, quando cheguei, que Belo Horizonte era uma cidade provinciana. Cheia de tiques e tabus e com mais muros, e gente em cima deles, do que pé de galinha em pau de galinheiro. Pode até ser. Para quem nasceu em Paris, Paris é apenas Paris. Mas de uma coisa tenho certeza e posso afirmá-la com a convicção dos penitentes. Se não foi em Belo Horizonte que me descobri escritor, foi em Belo Horizonte que me tornei escritor. Belo Horizonte foi o meu rito de passagem. Dez peças de teatro, oito romances, algumas dezenas de contos, roteiros de cinema e televisão, ensaios críticos, e, exatamente, quarenta prêmios literários. E se não participei da Geração Suplemento e, muito menos, puxei angústia nos bancos da Praça da Liberdade com os silêncios do Oto Lara Resende e a caladice do Hélio Pellegrino, foi no Lua Nova, na Casa dos Contos, na Cantina do Lucas e na Cozinha de Minas que aprendi a conviver. Comigo, com os outros e com os meus personagens. E a fazer da angústia, da liberdade e da incomunicabilidade a pedra toque de todos os meus textos. Por isso, os meus personagens disputam comigo o sufoco asfixiante da angústia, têm a liberdade como a sua maior riqueza e não conseguem comunicar-se.

Mas gosto de Belo Horizonte e da sua gente. Que é a minha gente. Que são os meus amigos e os meus personagens. Afinal, foram vinte e três anos de olha aí. E, assim como devo aos amigos da área de teatro o que sou como dramaturgo e como diretor, tenho certeza que a dívida do romancista, do contista e do roteirista a todos aqueles com quem cotiei fundilhos no Lua Nova, na Casa dos Contos, na Cantina do Lucas e na Cozinha de Minas é do mesmo tamanho e tem a mesma intensidade. Também foram muitos os que muitos créditos depositaram na minha conta bancária da amizade. Adão Ventura, Adriano Macedo, Alciene Ribeiro Leite, Alécio Cunha, Ana Cecília Carvalho, Antenor Pimenta, Antônio Barreto, Aparecida Simões, Branca de Paula, Carlos Herculano Lopes, Cristina Agostinho, Duílio Gomes, Euclides Marques Andrade, Geraldo Veloso, Guiomar de Grammont, Helena Jobim, Jaime Prado Gouvêa, Jeferson Andrade, João Batista Melo, Jorge Fernando dos Santos, Jorge Moreno, José Bento Teixeira de Salles, Júlio Borges Gomide, Lucienne Samôr, Luis Edmundo, Luis Giffoni, Luiz Vilela, Malluh Praxedes, Manoel Lobato, Mauro Martins, Murilo Rubião, Oswaldo França Júnior, Paulo Augusto Gomes, Régis Gonçalves, Roberto Drummond, Ronaldo Simões Coelho, Rui Mourão, Sandra Lyon, Vivina de Assis Viana, Wander Piroli, e tantos e tantos outros, sem os quais jamais eu, a minha ficção e o meu cinema seríamos o que somos.

Por isso, muito obrigado a todos. Aos que me ajudaram a fundar e a presidir, em 1985, o Sindicato dos Escritores do Estado de Minas Gerais, e aos que ainda hoje botam asa de morcego no caldeirão do fazer teatral, aos que ainda picam gelo no liquidificador da criação literária e aos que ainda plantam salsaparrilha nos microondas dos sets das filmagens, e que continuam a fazer na nossa Belo Horizonte aquilo que eu já não posso mais fazer. Afinal, a dez mil quilômetros de distância, resta-me preservar a memória do que todos juntos nós fomos e desejar a todos vocês o que desejo a mim. Que os nossos sonhos continuem a ser a pedra toque da nossa vida e continuem a transformar-se na realidade da nossa criação.

Cunha de Leiradella
mailto:leiradella@sapo.pt