LAIO OU O PODER
Cunha de Leiradella
www.triplov.org 16-01-2005
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CENA IX

APOSENTOS DE LAIO

Coro, Laio, Fâmulo, Creonte e Intendente

CORO

Senhores, a nossa felicidade ainda é, infelizmente, proporcional ao grau de intensidade das nossas convicções. Os deuses conhecem os homens do nascimento à morte. Mas não crêem, nem sentem. Por isso, são deuses. Os homens não conhecem os deuses. Mas crêem e sentem. Por isso, são homens. E, por isso também, acreditam que podem ser felizes.

Entra o Fâmulo, seguido de Creonte.

FÂMULO

Senhor, eis Creonte, como mandaste.

Sai o Fâmulo.

LAIO

Foi-me dito que tinhas viajado a Delfos, com Tirésias.

CREONTE

Se tivesse viajado a Delfos como poderia estar aqui?

LAIO

Há muito não te vejo no palácio.

CREONTE

Tenho cuidado da minha casa.

LAIO

Jocasta, tua irmã...

CREONTE

Jocasta foi minha irmã, mas em casa de Meneceu. Agora, não é mais minha irmã. Agora, é a rainha de Tebas.

LAIO

Não a visitas mais, me têm dito.

CREONTE

Eu não sou o rei de Tebas. A ele é que compete visitá-la.

LAIO

De que me acusas agora?

CREONTE

De nada. Apenas constato fatos e penso.

LAIO

Pensas?

CREONTE

Meu cunhado, se os homens têm medo e tu és homem, por que não deverás tu também ter medo? Mas mandaste que me chamassem para quê?

LAIO

Mandei hoje novas ordens aos Nobres de Tebas.

CREONTE

Eu soube. Os teus guardas estiveram na minha casa.

LAIO

Quero que os tebanos saibam quanto eu os amo.

CREONTE

Tu queres que os tebanos saibam quanto são amados. (Ri. Pausa.) E quando o trigo acabar? De que maneira os tebanos medirão o teu amor? Começaste dando uma medida e, agora, já dás quatro. E amanhã? Darás dez? Ou nem por dez os tebanos se venderão?

LAIO

Eu não quero comprar os tebanos. Eu só quero que os tebanos se sintam satisfeitos e felizes.

CREONTE

E quem te assegura que é trigo que os tebanos mais desejam?

LAIO

Que mais podem eles desejar? Há paz em Tebas.

CREONTE

Mas não dizem que Tebas espera há dez anos por um herdeiro?

LAIO

Estou disposto a mandar um novo mensageiro a Delfos.

CREONTE

Fazer o quê?

LAIO

Consultar o oráculo.

CREONTE

E confirmar o que já foi confirmado?

LAIO

Tirésias confirmou. E Tirésias odeia-me.

CREONTE

Se assim é, não mandes um mensageiro. Vai tu pessoalmente.

LAIO

Ainda há tebanos em quem posso confiar. Nicias...

CREONTE

Meu cunhado, meu cunhado, tu não vais a Delfos, não é porque ainda tens amigos em quem podes confiar. Tu não vais a Delfos porque, se fores, na volta não poderás dizer que o oráculo foi mal interpretado. É esta a certeza que te apavora, meu cunhado.

LAIO

Nada apavora o rei de Tebas.

CREONTE

Mas apavora Laio. E Laio é o rei de Tebas.

Entra o Fâmulo.

FÂMULO

Nicias, o nobre, deseja falar-te, ó ilustre.

LAIO

Que deseja Nicias de mim?

FÂMULO

Falar-te pessoalmente, ó rei.

LAIO

Que desejará Nicias de mim?

CREONTE

Possivelmente, que lhe pagues o trigo que o abrigas a dar aos tebanos.

LAIO

Depois o chamarei.

Sai o Fâmulo.

CREONTE

Por que te preocupas com Nicias?

LAIO

Nicias não me preocupa. Jocasta, sim. Jocasta é que me preocupa. Por isso, te mandei chamar.

CREONTE

E por que Jocasta te preocupa? Jocasta é a rainha.

LAIO

Jocasta quer um filho.

CREONTE

Tebas inteira quer um filho, meu cunhado!

LAIO

Que pensas disso? Acaso Tirésias...

Entra o Fâmulo, correndo.

FÂMULO

Senhor...

LAIO

Sai.

FÂMULO

Mas, senhor...

LAIO

Sai!

Sai o Fâmulo, correndo.

LAIO

Que farias tu no meu lugar?

CREONTE

Eu?

LAIO

Sim, tu. Não és irmão de Jocasta e meu cunhado?

CREONTE

Sou teu cunhado, mas não estou no teu lugar. Tu é que és o rei de Tebas.

LAIO

Não haverá em Tebas quem me dê um conselho? Por que vives junto de mim, se não sabes sequer aconselhar-me?

CREONTE

Pelos deuses! Que é que achas que eu fiz todos estes anos, meu cunhado?

CORO

Senhores, infelizmente, um homem nunca é nada ele sozinho. Nem livre, nem verdadeiro. (Sai Laio, bruscamente. Creonte segue-o.) Quando eu era menino gostava de ficar só. Deitava-me na cama e ficava olhando o teto do quarto. E quando os olhos se cansavam, o teto começava balançando, balançando, e, pouco a pouco, ia baixando, baixando, até quase eu lhe poder tocar com um dedo, se levantasse um braço. Nunca levantava. Mas só a idéia que podia tocar-lhe já me deixava feliz. E, às vezes, o teto baixava tanto, que eu falava com ele como se fosse um amigo. Mas me chamavam de menino bobo. Todos me chamavam de menino bobo. Quando eu tinha dez anos, tinha até medo de adormecer à noite, só de pensar que poderia acordar no inferno. O inferno, todos me diziam, era o lugar para onde iam os meninos bobos, que tinham tetos amigos e conversavam com eles como se eles fossem gente. Eu não gostava de ser menino bobo. Mas ninguém acreditava em mim e só o teto do meu quarto era meu amigo. Hoje, senhores, eu não consigo mais falar com o teto do meu quarto. A minha liberdade não existe. Hoje, senhores, eu sou, apenas, um prisioneiro de mim mesmo. (Entra Laio.) Do meu medo, da minha angústia e da minha solidão.

LAIO

Quem, aqui, fala de mim?

CORO

Ninguém, aqui, fala de ti.

LAIO

Então, por que falavas vós em medo, em angústia, em solidão?

CORO

Falava de mim.

LAIO

Mas sou eu que sou assim.

CORO

Todos os homens são iguais. As diferenças são os motivos.

LAIO

E, acaso, conheceis vós os meus motivos? Só a Laio foi dito: Vive a tua vida da forma que quiseres, mas o primeiro filho que fizeres te matará.

CORO

A outros homens são ditas outras coisas. A cada um é dita uma verdade.

LAIO

Mas impuseram ao rei coisas que um homem não pode aceitar, nem suportar.

CORO

Tu aceitaste.

LAIO

Eu nasci rei. Não tive escolha.

CORO

Mas tens agora.

LAIO

Agora, ó sábios, eu reino em Tebas.

CORO

Então, reina de verdade.

LAIO

Os deuses amaldiçoaram o rei e eu, Laio, tenho que suportar a maldição.

CORO

Todos nós, um dia, morreremos. Tudo que nasce morre, tu sabes.

LAIO

Mas sem saber como, nem quando. E eu sei. Eu morrerei às mãos do primeiro filho que fizer. Eu amo Jocasta e Jocasta quer um filho, eu amo Tebas e Tebas quer um herdeiro. E eu? Como posso eu matar esta angústia que me sufoca? Como posso eu conviver com os outros, sendo cobrado de atos que não posso praticar? Os homens se queixam de não saber o seu destino e muitos procuram até adivinhá-lo. Eu também procurei. Mas, agora, vos digo, nada mais terrível para o homem saber o que lhe vai acontecer.

CORO

O homem deseja sempre alcançar o que não tem. Tu próprio consultaste...

LAIO

Eu só queria saber se poderia ser feliz, ó sábios. Mas, até hoje, amaldiçôo esse dia.

CORO

Se um escravo te perguntar se lhe darás a liberdade, que lhe dirás?

LAIO

Ele nunca perguntará.

CORO

Ele é mais sábio do que tu.

LAIO

Vós, a quem, Minerva parece abençoar, dizei-me, ó sábios: A quem posso eu confidenciar a minha angústia e o meu medo, se até Jocasta, a minha própria esposa, me cobra uma dívida que eu não posso pagar? Nada mais horrível, ó sábios, ser homem e ser rei. Por isso, todas as vezes que me cobram eu fujo, eu desconverso, dou respostas nas quais não acredito e faço coisas que, eu sei, nada resolverão. Mas, eu tenho medo, ó sábios. Eu sou um homem. E, o que é pior, um homem só. Não tenho ninguém a quem possa confessar este medo, alguém a quem possa confiar esta angústia, alguém com que possa partilhar esta solidão. Eu sei que todos morreremos. Mas eu sei também quando e como morrerei. E é, justamente, esse conhecimento, ó sábios, que apavora o homem que veste este manto e, em nome dele, reina em Tebas. Eu não posso fabricar, voluntariamente, o instrumento que irá matar-me. Não é justo.

CORO

São, realmente, terríveis os teus sofrimentos. Mas uma coisa te digo: Feliz daquele que conhece o princípio dos seus males.

LAIO

Feliz, como, se não tenho quem me ajude? Na minha guerra, ó sábios, sou eu só comigo mesmo.

CORO

Sei que nada posso fazer por ti. Mas te digo: Se a água corre e inunda os campos, não adianta deixar de semeá-los. Importa, sim, parar a água.

LAIO

Mas como pode um homem ajudar-se a si mesmo, ó sábios, se os deuses estão contra ele?

CORO

Se os deuses escutassem os mortais não seriam deuses. Mas não esqueças: Se Cadmo fundou esta cidade com ajuda da divina Palas, outro deus, pai de sua própria mulher, o desgraçou. Por isso, te digo: Os deuses são assim mesmo. Só existem porque os homens os inventaram.

LAIO

Que conselho me dais, então, ó sábios?

CORO

Eu não posso aconselhar-te porque só tu próprio te conheces. Mas sempre te direi: Ou vive como homem e age como homem, ou vive como rei e age como rei. A escolha é tua.

APAGA A LUZ