CUNHA DE LEIRADELLA - FRACTAL EM DUAS LÍNGUAS



FRACT I

Eduardo da Cunha Júnior morreu em dezembro do ano que passou. Foi encontrado num quarto do Colégio do Caraça, a pouco mais de cem quilômetros de Belo Horizonte, num domingo de manhã.

Não deixou nenhuma carta, nenhum aviso, nenhuma despedida. Apenas, em cima da mesa-de-cabeceira, um frasco vazio de Frontal, um isqueiro e um maço de cigarros, e uma carteira de identidade. E, enrolada debaixo da nuca, como servindo de travesseiro, uma jaqueta velha de jeans.

Nenhum parente se apresentou no necrotério e os jornais também trocaram os dados da notícia. Oficialmente, Eduardo da Cunha Júnior morreu com outro nome.


FRACT II

1

Se são necessários mil e nove ziguezagues para decompor uma galinha e mil e doze galinhas para deletar um coração, quantas estrelas serão precisas para encontrar uma mulher e quantas mulheres para formatar um paraíso?

1

Opshuny op opshunyo opsh opshunyo opshuny o opshun ops opshunyop opsh o opshunyo opshu opshunyo opshun ops o ops opshuny, opshunyo o opshu opshunyo opsh opshunyop ops opshun o opshu opshunyo opsh o opshunyo op opshuny?

2

Seria ótimo escrever em duas línguas. Além de ser um biglota, numa escreveria o que pensasse e, na outra, o leitor leria o que quisesse. Ou nem leria. Mas, aí, ler ou não ler, já não seria mais uma questão. Seria uma opção. To be or not to be ainda é uma questão porque Shakspeare não foi um biglota. Se tivesse escrito em duas línguas, ser ou não ser também não seria mais uma questão. Seria só uma opção. Não precisaria tradução e o traduttore, traditore, seria igual ao Big Bang. Uma cultura inseminal. Mas, como Deus não joga na roleta e os números nunca mentem, a solução foi formatar um Big Crunch e navegar no Infinito. Agora, com o telescópio Hubble esquadrinhando os quasares a 14 bilhões de anos-luz, que importância tem ser ou não ser? Ou ler ou não ler? Contados os 100 bilhões de estrelas de cada uma das galáxias e medida a profundidade do buraco negro do quintal do vizinho, o homem sabe tudo. E, mesmo que não soubesse, saberia sempre o que seria. Deduzidos os impostos e os resultados negativos, o futuro é somente um corolário. Determinado o Big Bang, o Big Crunch nem precisa traduttore. Se explodiu no começo só poderá ranger no final. Que nem a arte pós-moderna ou o sensualismo marsupial dos cangurus. E, de big em big, implodidos os mistakes mais bigs, lá vão os wises e as declarações peremptórias jogar amarelinha nas galáxias ou golfe nos buracos negros de Cygnus X-1. Desde que as afirmações sejam categóricas, a verdade será somente um pormenor. Mas, por menor que seja o efeito, há sempre que atentar para a largura do buraco. Aquila non capit muscas. E se capit, foda-se, sempre foi assim que on écrit l'Histoire: Os outros que se fodam Après moi le déluge. Decidida a verdade, o ergo sum virará um erga omnes e a liberdade um quadrilismo. Como o cogito virou circo ao engendrar-se o Big Bang. Tudo graças aos quasares esquadrinhados a 14 bilhões de anos-luz e aos biglotas assumidos. E, de assunção em assunção, os ólogos reinarão sobre os istas e os eiros, e a felicidade será vendida nas galáxias como, hoje, se vendem comprimidos de Prozac nas farmácias. A contração será apetência dos silícios e a expansão do Universo (entre cinco e dez por cento em cada bilhão de anos, de acordo com as medidas mais recentes) não só facilitará o entendimento do leitor como beneficiará também a minha criação: quando não souber mais o que dizer poderei calar em duas línguas e o silêncio será duplo. E sem mais afirmações categóricas, e argumentos baculinos, o leitor poderá dormir em paz. Ou não dormir e ser também um biglota, ou sair por aí e curtir até um desejo inconfessável. Isto, si parva licet componere magnis e ninguém reclamar ou inventar mais big-bigs.

3

Só que não são necessários mil e nove paraísos para decompor um ziguezague, nem mil e doze estrelas para deletar uma galinha. Nem um coração para encontrar uma mulher e nem todas as mulheres para formatar uma estória. Eu não sei escrever em duas línguas.

4

Eduardo da Cunha Júnior morreu em dezembro do ano que passou. Gostaria de começar a minha estória com esta frase. Eduardo da Cunha Júnior morreu em dezembro do ano que passou. É uma frase concisa. E, além de concisa, verdadeira. Todos os anos têm dezembros e, na vida de qualquer um, há sempre um ano que passou. Mas eu não posso começar a minha estória dizendo que Eduardo da Cunha Júnior morreu em dezembro do ano que passou. Eduardo da Cunha Júnior sou eu e não pode haver estória se não houver personagem. Mesmo que tudo seja fábula.

5

Esta garrafa, que está na minha frente e que o garçom diz que está vazia, não está vazia. Hoje, não está vazia. Está cheia. Faz uma semana que venho ao Belas Artes Liberdade e, todos os dias, o garçom diz a mesma coisa. Doutor, a garrafa está vazia. Nunca me importei e sempre pedi outra. Mas, hoje, a garrafa não está vazia. Está cheia. Ontem, Lúcia terminou o nosso caso e hoje... Mas esse não é o problema. O problema é que, hoje, a garrafa está cheia. Olho o garçom e puxo uma tragada, e ele estende o braço, pronto para pegar a garrafa se eu fizer, hum, hum, ou acenar com a cabeça. Mas eu não faço, hum, hum, nem aceno com a cabeça. Puxo outra tragada e solto o fumo devagar, e digo, não, a garrafa está cheia. O garçom olha-me e arregala os olhos, espantado. Para ele, a garrafa está vazia. Eu bebi a cerveja e a garrafa está vazia. Debruço-me na mesa e sorrio, como sorri ontem, quando Lúcia disse, ou você fica comigo de uma vez, Eduardo, ou eu vou arrumar outro, entendeu? Sorrir é fácil. O difícil é fazer com que os outros entendam os sorrisos. O garçom encolhe o braço e olha-me, e eu aponto um carro estacionado junto da calçada. Se esta garrafa está vazia, por quê que os pneus daquele carro estão cheios? Não é o mesmo ar que enche os pneus e a garrafa? O garçom olha o carro e parece assustar-se. Como se só naquele instante tivesse descoberto a verdade. Lúcia também me olhou e também pareceu assustar-se. Como se também só naquele instante tivesse descoberto a verdade. O garçom volta-se e olha-me, e os olhos estão ainda mais arregalados. Ele só esperava que eu fizesse, hum, hum, ou acenasse com a cabeça. Lúcia também só esperava que eu fizesse, hum, hum, ou acenasse com a cabeça. Mas eu não podia fazer, hum, hum, ou acenar com a cabeça. Fazer, hum, hum, ou acenar com a cabeça é fácil. O difícil é acreditar que os outros dizem a verdade. O garçom continua me olhando e os olhos piscam, como se não soubesse entender. Lúcia também piscou os olhos, como se também não soubesse entender. Bebo o último gole e coloco o copo ao lado da garrafa. Veja. Se é o mesmo ar que enche esta garrafa e enche os pneus daquele carro, por quê que aqueles pneus estão cheios e esta garrafa está vazia? Ou ambos estão cheios ou ambos estão vazios. Os olhos do garçom param de piscar e fixam-se nos meus. Lúcia também fixou os olhos nos meus, esperando que eu dissesse alguma coisa. Você não acha? O garçom não responde. Recosto-me na cadeira e olho-o. Hem? O garçom desvia os olhos e continua sem responder. Puxo outra tragada e sorrio, e esmago o cigarro no cinzeiro. Não concorda comigo, não? Se os pneus daquele carro estão cheios, por quê que você diz sempre que esta garrafa está vazia? Onde é que está o seu bom senso? Lúcia também tinha perguntado onde é que estava o meu bom senso, quando eu não respondi. Acendo outro cigarro e puxo uma tragada, e coloco-o no cinzeiro. Você sabe o que é que nos faz distinguir o que é verdadeiro do que é falso? O garçom não responde. Estende o braço, como se fosse pegar a garrafa, e, de repente, encolhe-o, num gesto brusco. É o bom senso. O garçom olha-me e respira fundo, e só então parece perceber-me. Lúcia também me tinha olhado assim, como se só também naquele instante me tivesse percebido. Quando a gente diz o que todo mundo também diz, a gente não usa o bom senso. Usa o senso comum. O garçom olha-me e abana a cabeça, como se não acreditasse. Lúcia também me olhou e também abanou a cabeça, como se também não acreditasse, quando me levantei e andei até à porta. Pego a garrafa e levanto-a. Veja. Se o senso comum diz que esta garrafa está vazia e o meu bom senso diz que ela está cheia, você sabe o que é que aconteceu? Aconteceu que o meu bom senso virou aberração. Só que o meu bom senso não é aberração. Se fosse, como é que só os pneus daquele carro poderiam estar cheios, se é o mesmo ar que enche também esta garrafa? Coloco a garrafa na mesa e olho o garçom. Ele parecia uma estátua, me olhando como se eu fosse um fantasma. Lúcia também me olhou assim, quando abri a porta e saí do apartamento. Pego o cigarro e puxo uma tragada. Sabe? Você está certo. Pensar é fácil. O difícil é fazer com que os pensamentos traduzam alguma coisa. O garçom continua, imóvel, calado, só me olhando. Lúcia também ficou imóvel, calada, só me olhando, quando entrei no elevador. Recosto-me na cadeira e aponto a garrafa. Me traz mais uma, vai. Discutir senso, rneu caro, é como discutir sexo de anjos. Todo mundo fala nele, mas ninguém consegue praticar. O garçom olha-me ainda durante alguns instantes e, de repente, esfrega as mãos e sorri. O senhor sabe por quê que esta garrafa está vazia? Porque já a botei na sua conta. Pega a garrafa e afasta-se, rindo, e eu não sei o que dizer. Como também não soube quando Lúcia me disse: Adeus, Eduardo. Não me procura nunca mais. Agora, eu vou viver a minha vida.

6

Não. Eduardo da Cunha Júnior não morreu em dezembro do ano que passou. Eu conheço Eduardo. Meu pai me disse, certa vez: André, um homem com fé é muito mais perigoso do que um homem com fome. Um homem com fome só precisa de comida. Um homem com fé é insaciável. Nunca soube por que meu pai me disse aquilo. Eduardo era meu amigo e visitava a nossa casa, mas, que eu saiba, nunca teve fé, nem nunca passou fome. Tinha sonhos. Como eu também tinha e acho que todos têm. Até Renata, apesar de fazer questão de dizer que só acredita no que pode demonstrar.

Conheci Eduardo ainda na escola. Sempre arredio e sentado pelos cantos, no recreio, e calado, na sala de aula. Eduardo não gostava de falar. Nem de aceitar o que a professora ensinava. Eu também não. Mas aceitava. Meu pai dizia que eu tinha que ser advogado e eu aceitava tudo que a professora ensinava. Eduardo, não. Eduardo não decorava as lições e, quando era chamado ao quadro-negro, questionava tudo que tinha que responder. Por quê que dois vezes dois têm que ser quatro? Dois vezes dois são quatro, porque assim foi dito e é assim que tem que ser. Mas, se foi dito, foi alguém que disse. Claro que foi alguém que disse. Então, se foi alguém que disse, podia dizer de outra forma. Não podia dizer de outra forma, não, senhor. Podia, sim, senhor. Portugal não diz que Tiradentes era bandido e a gente não diz que é herói? A verdade não é o que se diz. Mas, se a verdade não é o que se diz, então por que é que dois vezes dois têm que ser quatro, se também foi alguém que disse? Naquele dia a professora não riu e Eduardo passou a aula inteira de castigo. Mas ganhou um amigo. E somos amigos até hoje, apesar de Renata nunca ter gostado dele.

Não sei, mas ainda hoje penso que Eduardo não é químico pela mesma razão que me obrigou a não ser advogado. Meu pai é que queria que eu fosse advogado. Por isso, Eduardo ainda escreve no Plano Inclinado e eu acho que deve continuar. Renata não gosta. Mas Renata também não gosta de Belizário e Belizário não discute com ninguém. Nem escreve no Plano Inclinado.

7

Marianinha nunca foi minha namorada. Gostava de me beijar e de meter as mãos nas minhas calças, mas nunca foi minha namorada. Troquei-a por um estojo de química quando tinha treze anos.

Minha mãe me queria médico e meu pai advogado. Ou militar. Eu tinha doze anos e nem escutava o que diziam. Marianinha gostava de me beijar e de meter as mãos nas minhas calças, e eu queria mais é que ela me beijasse e metesse as mãos nas minhas calças. Meu padrinho era irmão da minha mãe e morava na nossa casa, e era o único que não brigava comigo, nem me chamava de bobo. Era casado, mas minha madrinha morava no Rio de Janeiro. Dizia minha mãe que ela não prestava e que tinha sido até milagre não ter acabado com a vida do meu tio. Não conheci minha madrinha, mas pensei muito nela. Como uma pessoa pode acabar com a vida da outra se a outra não quiser? Muitas vezes perguntei isto a minha mãe, mas ela nunca respondeu. Minha mãe era assim. Também não gostava de Marianinha e também dizia que ela não prestava. Nunca entendi minha mãe. Como Marianinha podia não prestar, se gostava tanto de me beijar e de meter as mãos nas minhas calças?

Meu tio não me queria advogado, nem médico. E, muito menos, militar. E sempre brigou com meu pai e minha mãe por minha causa. Era o único que dizia que eu só devia ser o que quisesse. Eu gostava muito dele. Muito mais do que do meu pai e até da minha mãe. Foi ele que me deu o estojo de química quando fiz treze anos.

Meu pai não gostou e não me deixou brincar dentro de casa. Ameacei fugir se ele quebrasse o meu estojo e minha mãe teve que pedir ajuda ao meu tio. Ele enfrentou a raiva do meu pai e construiu um barraco no fundo do quintal, debaixo da mangueira, ao lado do poleiro das galinhas. Eu mal falava com meu pai. Mas não me importava. Não gostava dele e tinha certeza que ele me odiava, de tanto que queria me obrigar. Meu tio não. Garoto, ele dizia, cada um deve fazer sempre o que acha que é certo. Se eu não me tivesse abaixado tanto, ainda hoje poderia ter tua madrinha. E ela a mim. Mas nunca teve. Menos de um ano depois suicidou-se.

Formei-me na Federal. Tinha vinte e quatro anos e certeza absoluta de ser um grande químico. E saí por Belo Horizonte, satisfeito, procurando um laboratório onde pudesse começar as minhas descobertas. Mas, o máximo que o meu diploma conseguiu foi fazer-me manipulador de uma farmácia homeopática. Das descobertas com que sonhei, nenhuma descobri. Não fosse André conhecer o dono deste colégio, e nem a merda destas aulas eu teria descoberto. Como nada descobri até hoje. A não ser que a memória, a cada dia, pesa mais, e o horizonte, cada vez, fica mais longe.

8

Mas de jeito nenhum. Eduardo da Cunha Júnior não morreu em dezembro do ano que passou. Eu conheço Eduardo muito bem. Renata, que nunca gostou dele, me disse logo que eu o conheci: Lúcia, esse sujeito não presta. É um reaça. Você sabe como é que ele classifica as mulheres? Divide-as em três categorias. As putas, que dão para todo mundo, as filhas da puta, que só dão para os outros, e os bofes, que só dão para ele. Não é por nada, não, mas na classificação dele, eu sou a maior filha da puta. E com muita honra, entendeu? Não. Não entendi. Não entendi mesmo e aposto que Renata bem que gostaria de ser bofe. Aliás, bofe ela já é. Sempre foi. Só que não é, e nunca vai ser, um dos bofes que só dão para Eduardo. E, enxerida como é, não sei nem como é que André consegue agüentar. Ô mulherzinha sem moral.

Conheci Eduardo na Sala Humberto Mauro, no Palácio das Artes, num filme de Costa-Gavras, já faz mais de oito anos. Eu não entendo de cinema, mas tanto me falaram desse tal de Costa-Gavras, que fiquei até curiosa. E corri para a Sala Humberto Mauro, quando soube que ia passar um filme dele. Comprei a entrada e fui beliscar um sanduíche, e, quando voltei, estava a maior confusão. A lotação estava esgotada e a sessão ia começar. Aliás, já devia ter começado, mas falta de respeito é o que mais tem por aí. Fazia um calor danado e eu estava tomando água no bebedouro, e vem alguém por trás e me empurra, e a água espirra na minha cara. Fiquei furiosa com a falta de respeito. Fiquei mesmo. Se tem coisa que não admito é falta de respeito. Seja de quem for.

Mas nem tive tempo de xingar. Quando me voltei, o sujeito, imediatamente, pediu desculpas e perguntou se me tinha machucado. Não era nem alto, nem bonito, mas tinha um olhar assim, sabe como?, triste mesmo. Não. Não machucou nada, não. Ainda bem, disse ele. E ficou calado, olhando para mim. Vai assistir? Não. Não vou, não, disse ele. Eu queria ver o filme, mas aquele olhar dele, sabe como?, foi a conta. Eu também não. Diz que esgotou a lotação. Ele não respondeu, só olhando para mim. Passou não sei nem quanto tempo e, aí, ele baixou os olhos. Como se, sei lá, talvez achasse que eu estava mesmo aborrecida. Bem, disse ele de repente. Foi a conta outra vez. Mas, desta vez, definitiva, sabe como? Vamos tomar um chope? Podemos ir, disse ele. Então vamos, disse eu, antes que ele arrependesse e fosse embora.

Fomos para a Cantina do Lucas, ali no Edifício Malleta, e ficamos lá a noite toda. Mas ele quase não falou. E, sempre que falava, não falava, perguntava. Por isso, foi que eu falei o tempo todo. E disse-lhe tudo. Aliás, quase tudo. Só não lhe disse, mesmo, foi que não tinha ido ao cinema por causa dele. O resto, disse tudo. Que era médica, da Secretaria Municipal de Saúde, que tinha trinta e sete anos e era separada há quase quatro, e que era totalmente independente. Quando eu falei que era totalmente independente, foi a única vez que ele não perguntou nada e disse que era muito difícil encontrar alguém totalmente independente. Mas que era ótimo a gente ser independente. Mesmo que não fosse totalmente.

Pedimos o jantar, frango grelhado com arroz à grega, me lembro como se fosse hoje, e foi aí que eu falei das minhas metas. Das três que tenho na vida. Escrever um livro sobre medicina social, acho importantíssimo, a medicina social no Brasil não existe, fundar um grupo de teatro, também acho importantíssimo, chega de as novelas da TV Globo mostrarem que a única diferença entre ricos e pobres, no Brasil, é os ricos morarem numa casa de vinte quartos e os pobres morarem numa casa de dez quartos, e a coisa mais importante, fazer do Partido dos Trabalhadores a maior força política do Brasil.

Não sei, não, mas parece que ele gostou das minhas metas. E olha que, quando eu tomo cerveja, dano de falar. Falo mesmo. Você sabe o que é que mais faz falta no Brasil? Hem? É vergonha. Responsabilidade, entendeu? E respeito. Respeito pelos direitos de cada um. Por isso, é que a gente tem que botar lá em Brasília gente nova, trabalhadora, não essa cambada da Fiesp e da Fiemg, que só sabe o venha a nós, você entende? Estava tao empolgada, que parecia até que estava num comício. Mas eu sou assim mesmo. Quando me empolgo, não quero nem saber. Digo o que penso e o que não penso, e não estou nem aí. Troço que vem lá dos meus avós, cruza de português com espanhol. E continuei por aí, metendo o pau nessa cambada.

Ele não dizia nada, só me olhando. Mas tanto, que parecia até que me queria comer. Como eu gesticulo muito quando falo e o meu busto é muito grande, os meus seios balançavam que balançavam, sabe como? E era neles que o danado tinha os olhos. E tão pregados, mas tão pregados mesmo, que, quando eu me calei, ele nem percebeu que eu me tinha calado. Mas eu também não me importei. Desde menina que os meus seios são assim e, quando eu vejo alguém que gosta deles, já viu. Não que eu tenha complexo, não. É só uma questão de bom senso. Qual é a mulher que não gosta de ser admirada? Tem algumas que dizem que não gostam, mas é frescura. Aliás, eu sei de uma que diz até que detesta. Mas Renata diz que detesta porque é mais lisa do que cama de hospital. Se não fosse, duvido que detestasse.

Mas aí, sabe como?, quando ele percebeu que eu tinha parado de falar, ficou até encabulado. Mas eu fiz de conta que nem vi. Enchi os copos outra vez e acendi um cigarro. Com aquela empolgação toda tinha até esquecido de fumar. Não fumo muito, não. Mas, às vezes, um cigarro até que ajuda. Ele acendeu também um e ficamos assim, sabe como?, calados que nem bobos. Até que eu resolvi botá-lo na roda de verdade. Afinal, ele ainda não tinha dito nada e eu já tinha dito tudo. E você? Até agora, você não falou nada. Ele encolheu os ombros. E quê que você quer que eu diga? Sei lá. 0 seu nome, por exemplo. Ele riu. Eduardo. Eduardo de quê? Da Cunha Júnior, ele respondeu e calou-se. E a sua vida? O quê que você faz? Ele olhou-me e encolheu os ombros. Nada de importante. Não sei nem se foi a forma como ele disse, mas, o caso é que me senti, sabe como?, como se ele fosse um menino que precisasse de colo e tivesse medo de pedir. Aí, estendi a mão e peguei na mão dele. Sabe? Gostei de não ter ido ao cinema. Eu também, disse ele. Meteu a mão no bolso e tirou uma entrada igual à minha. Aí, eu tive que rir. Não me diga que você não foi ao cinema por minha causa? Ele só acenou com a cabeça. Mas foi a conta. Peguei a bolsa e mostrei também a minha entrada. Foi aquela gargalhada. Mas foi bom. Ele dormiu no meu apartamento naquela noite e foi ótimo. Nunca dormi na casa dele, mas também nunca me importei. O importante, para mim, não era dormir na casa dele. Era saber que podia ter uma companhia, sabe como?

9

Na terça-feira passada entrei, pela primeira vez, no Belas Artes Liberdade sem saber que era um bar. Sabia que na Rua Gonçalves Dias, quase esquina com a Rua da Bahia, tinham sido inaugurados três cinemas, e que, na Sala Belas Artes, estava passando O Marido da Cabeleireira. Embora não seja um cinéfilo, gosto de cinema. Mas são os diretores que me interessam. Se vejo e revejo os filmes de Fellini, de Visconti ou de Ford, nem por isso assisto tudo de Marcello Mastroianni, Alain Delon ou John Wayne.

Não conhecia Patrice Leconte, o diretor de O Marido da Cabeleireira, mas a sinopse do filme fascinou-me. Um menino deslumbra-se com a dona do salão de beleza da sua cidade e decide, quando crescer, casar com uma cabeleireira. E casa. Parecia um argumento de novela mexicana, mas a firmeza daquela decisão tocou-me fundo. Quando era menino, eu também decidia a minha vida, apesar de meu pai e minha mãe dizerem que eu era bobo. Mas eu não era bobo. Tinha decidido ser um químico e só queria ser o que tinha decidido. Depois da morte do meu tio larguei Marianinha e vivi, cada vez mais, no meu laboratório. Trancava-me lá dentro e ficava olhando as prateleiras. E quando os olhos cansavam, os frascos balançavam, balançavam, até que eu tinha certeza que poderia pegá-los, se quisesse. Nunca peguei, claro. Mas só a certeza que poderia fazê-lo já me deixava feliz. E eles saíam das prateleiras e aproximavam-se tanto, que eu falava com eles como se falasse comigo. Contava-lhes todos os meus segredos e eles não riam, nem me chamavam de bobo. Antes pelo contrário, diziam que eu estava certo e que poderia ser o que quisesse, se quisesse. Conversávamos horas e, a cada dia que passava, mais eu tinha certeza que poderia ser o que quisesse. Foram os anos mais felizes da minha vida. Eu sabia o que queria e os outros não contavam. Nem sequer Marianinha.

Mas os outros existiam. Se, aos quinze anos não precisava de ninguém e tinha certeza de que, aos vinte, seria tudo o que tinha decidido, aos vinte e quatro verifiquei que estava só, e sem os outros nada poderia conseguir. Estava formado, mas estava numa ilha. Cercado de realidades que nunca tinha percebido. E foi aí que todas as minhas certezas aluíram, e, de tudo, apenas restou uma verdade. Um homem nunca é nada, ele sozinho. Nem livre, nem verdadeiro. A liberdade e a verdade, quem determina são os outros.

Às vezes, nas horas de mais silêncio, ou de mais medo, ainda penso nos meus sonhos. Mas não tenho mais a quem contá-los. O meu laboratório acabou, apodrecido, e troquei Marianinha por nada.

10

Antes de Lúcia houve outras Lúcias. Wanda foi a primeira e durou menos de um verão. Parecia como eu, mas não era igual a mim. Gostava de cinema e de livros, mas só falava no futuro. Dormiu na minha casa algumas vezes, mas tudo acabou quando quis ficar de vez.

- Eduardo, eu não te entendo. Como é que você pode ser assim?

- Assim, como, Wanda? Eu sou igual a qualquer um.

Wanda xingava.

- Prá merda, tá? Você não sabe viver é com ninguém. Você só sabe é viver com a merda desse seu passado, e olhe lá.

Depois de Wanda aconteceu Marilize. Sentou do meu lado no Pathé, num filme antigo de Fellini, e saímos do cinema de mãos dadas. Marilize falando de "Oito e Meio" e eu contrapondo "Os Boas Vidas". Não me lembro nem do filme, de tanto que desejei Marilize. Acabamos a noite com dois chopes e, no dia seguinte, dormimos num motel. Marilize não queria compromissos, mas todas as noites nos encontrávamos. Ou num motel ou num cinema.

- Sabe, Eduardo? Enquanto der pra eu viver assim, eu prefiro. Pode ser que, um dia, até me junte ou case com alguém. Mas, por enquanto, prefiro viver a minha vida, você entende?

Eu entendia e, no início, até gostei. Mas, com o passar do tempo, talvez até porque a idéia fosse de Marilize, quem queria compromissos era eu.

- Marilize...

Marilize ria.

- Ah, Eduardo...

- Mas, Marilize...

- Ainda tem muito filme prá gente ver, Eduardo.

- A gente podia ver junto.

- E a gente não tá vendo junto, não?

Ficamos assim alguns meses. Eu querendo e insistindo, e Marilize desconversando. Até que, um dia, ela aceitou. Mas, em comum, só tínhamos o gosto por Fellini. Três meses depois, se era bom deitar na mesma cama, já era insuportável conviver na mesma casa. E separamo-nos. Não sei se Marilize ainda gosta de Fellini ou se ainda mora só. Nunca mais a vi nas portas dos cinemas.

Depois de Marilize vieram outras Marilizes. Veio Pepa e veio Rê, e vieram Linda e Violeta. Pepa e Rê em quinze dias, e Linda e Violeta em três semanas. Mas não ficaram. Não gostavam de cinema, nem de livros, e eu não gostava de boates.

11

Por isso, Eduardo da Cunha Júnior morreu em dezembro do ano que passou. Mas se mil e nove galinhas formatassem uma estrela e mil e doze corações encontrassem um paraíso, um ziguezague poderia decompor uma mulher e as estórias não precisariam de personagens. E Eduardo da Cunha Júnior não teria morrido em dezembro do ano que passou. Teria escrito uma estória verdadeira.

12

Mas claro que Eduardo da Cunha Júnior não morreu em dezembro do ano que passou. Eu conheço esse homem. E conheço tão bem, que nunca precisei que me dissessem como ele era para que eu soubesse quem ele é. É um idiota. E, além de idiota, é um elemento pernicioso. Mais até. Um sujeito que diz, todo homem tem direito de ter razão, é mais do que pernicioso. É perigoso. Nenhum homem tem direito de ter razão, a menos que a comunidade lhe dê esse direito.

Por isso, esse homem é um elemento perigoso. Além de nada fazer em proveito da coletividade, ainda se arroga o direito de julgar. E, o que é ainda pior, acha sempre que está certo. Mas a culpa não é só dele. Aliás, a culpa maior é de quem lhe dá atenção. Se André tomasse uma atitude, por mim, há muito tempo esse sujeito estaria fora da nossa vida.

O que esse indivíduo escreve, e muito mal, no PLANO INCLINADO, só tem par no Mein Kampf. Mas, ainda assim e guardadas todas as distâncias, com inúmeras desvantagens. O pintor de paredes, pelo menos, apesar de louco e genocida, era real. E esse senhor Eduardo da Cunha Júnior não passa de um personagem de si mesmo.

Conheci esse homem na faculdade. André e eu, ainda estudantes de direito, mas já iniciando a luta contra a ditadura, e ele, quimicozinho de merda, teorizando a liberdade. Como se um indivíduo que não tem objetivos pudesse ter opiniões. Mas André parecia hipnotizado e nunca conseguiu cortar o cordão umbilical. Se eu não conhecesse bem André e não tivesse confiança, às vezes, daria até para ter dúvidas.

O que diz aquela pobre coitada, que o mau caráter tem enganado todos estes anos, não tem a menor propriedade. Se tivesse, há muito dormiriam na mesma cama. Gostar de seios, como ela diz que o sujeito tanto gosta, não abona o caráter de ninguém. Antes pelo contrário. Fazer dos seios um fetiche só demonstra falta de caráter. Nenhuma mulher pode ser culpada pelo corpo que tem ou que não tem. Mas é bem feito. Se a infeliz não sabe nem enxergar o que tem debaixo do nariz, merece mesmo ser tripudiada e enganada.

A mim, o cafajeste nunca conseguiu enganar. Nem sequer no momento em que me foi apresentado: uma cambada de idiotas babando e ele, superior, pontificando. Como se aquela espelunca do Calhambeque fosse um Dome ou um Flore, e ele fosse o arauto de uma nova humanidade. E, isto, no exato momento em que os imperialistas assassinavam inocentes com bombas de napalm.

André, pontificava o idiota, com aquele ar professoral que mantém até hoje, ser ou não ser, não é a questão. A questão é poder ser. Por mais que cada um de nós queira fazer, fará somente o que os outros deixam que ele faça. Um homem nunca é nada ele sozinho. Nem livre, nem verdadeiro. A liberdade e a verdade, quem determina são os outros. Por isso, a minha única liberdade se restringe ao suicídio. Mas nem para me suicidar eu sou livre. O medo de morrer me mantém prisioneiro.

E o filho da puta falava, falava, como se fosse um oráculo. Ou um vidente idiota.

André, sempre que eu acreditei que alguma coisa podia ser mudada, quem mudou fui eu. Quem mandava, continuou mandando, e quem obedecia, continuou obedecendo. Quem está na mó de cima não vai querer, nunca, ficar na mó de baixo. Só vai ficar na mó de baixo se for obrigado. Se as bases se inverterem. Em 1789, na França, e em 1917, na Rússia, as bases inverteram-se. Mas as mós continuaram, André. Só mudaram os moleiros. A guilhotina substituiu a forca, mas as cabeças continuaram rolando em nome da liberdade. E, na Sibéria, os corpos continuaram congelando em nome dessa mesma liberdade. Aqui no Brasil, quem obedecia no tempo de Getúlio, continuou obedecendo no tempo de Goulart, e continua obedecendo no nosso tempo. Em pouco mais de trinta anos, por três vezes mudaram os moleiros. Mas só mudaram os moleiros, André. As mós continuaram. E, enquanto houver moleiros na mó de cima, haverá sempre alguém sendo moído na mó de baixo.

Filho da puta. Até hoje, eu não consigo entender como é que André, um perseguido político e um jornalista de renome, pode considerar um sujeito como este. E, inexplicavelmente, ainda o deixa colaborar no PLANO INCLINADO. Mas, o pior, não é só isso. O pior, é que André ainda briga comigo, quando lhe digo a verdade. Como brigou naquela noite, no Calhambeque, quando mandei o filho da puta à puta que o pariu.

13

Na semana passada aceitei uma imposição que, agora tenho certeza, não devia ter aceito. E o resultado foi péssimo. Lúcia telefonou para o colégio segunda-feira de manhã e disse que me queria ver naquela noite. Estranhei. Como sempre, tínhamos passado a tarde de domingo no motel e nada me pareceu diferente. Lúcia, também como sempre, só parou de reclamar quando se despiu e se deitou, e eu me encaixei nas pernas dela. Mas, na segunda-feira, Lúcia insistiu tanto, que me confundiu e acabei concordando. Quando cheguei ela já me esperava impaciente.

- Eduardo, eu chamei você aqui, hoje, pra decidir. Ou você fica comigo de uma vez, ou eu vou arrumar outro.

Não respondi e Lúcia continuou.

- Ou você fica comigo de uma vez, Eduardo, ou eu vou arrumar outro, entendeu? Te ver uma ou duas vezes por semana, e só pra dar uma trepada, não tá mais pra mim, não. Aliás, se você quer saber, nunca teve. Só que eu pensei que você ia enxergar, e você nunca enxergou. Mas, agora, pra mim, chega. Pra mim, chega, entendeu? Tou com quarenta e cinco anos e não tou mais a fim de tar como tou. Não tou mesmo. Agora, ou você fica comigo, ou eu vou arrumar outro. Agora, é sério. Sério mesmo, Eduardo. Ou você resolve agora, ou eu resolvo, entendeu?

Eu não respondia. Nunca respondia. Acendia um cigarro e esperava que Lúcia se despisse e se deitasse. Logo que me encaixasse nas pernas dela, as reclamações acabariam. Acendi um cigarro e esperei que Lúcia se despisse e se deitasse, mas ela não se despiu, nem se deitou.

Lúcia sempre reclamou, mas sempre continuamos. Há oito anos que Lúcia reclamava e eu escutava, e sempre continuamos. As noites de Lúcia ocupadas com o grupo de teatro, que ainda não montou nenhuma peça, ou com a pesquisa do livro de medicina social, que ainda não iniciou, ou com as reuniões do partido, que também nada resolveram, e as minhas noites também ocupadas com filmes e com livros. Como nunca gostei de teatro, nunca me interessei por medicina social e também não gosto de políticos, e Lúcia também nunca gostou de livros, nunca se interessou por cinema e nunca conseguiu ficar calada muito tempo, sempre nos equilibramos nas nossas diferenças. Lúcia reclamando, mas despindo-se e deitando-se, e eu escutando, mas sabendo que as reclamações terminariam logo que me encaixasse nas pernas dela. Mas, na segunda-feira, Lúcia não se despiu, nem se deitou.

- Eduardo, ou você dorme aqui hoje e amanhã traz as suas coisas, ou eu vou dormir na sua casa e levo as minhas coisas. Agora.

Levantou-se e abriu a porta, e ficou olhando para mim.

- Decide, Eduardo. Ou você fica aqui, ou me leva com você. Ou, então, pode ir embora.

14

O Marido da Cabeleireira estreou no dia 1º de setembro, mas só fui ao Belas Artes no dia 22. Passei todos aqueles dias pensando o que teria feito aquele menino para cumprir o que tinha prometido. Manter uma decisão a vida inteira não é fácil. É tão difícil que, para mim, foi impossível.

Foram três semanas fodidas. Por mais que forçasse não pensar, não conseguia esquecer aquela decisão. Até lendo ou vendo filmes, não deixava de pensar. E não era curiosidade. Era medo. Ao pensar naquele menino era em mim que pensava. No que tinha sido e no que era. E não gostava do que pensava. Por isso, todas as vezes que decidia, recuava. E justificava o meu recuo com os argumentos mais bobos. Ou assistia filmes que, em outra situação, jamais assistiria, ou lia livros que, em outra situação, também jamais teria lido.

Não gosto de suspense. Me sinto conduzido, manipulado. A realidade é transformada em aparência e as causas são, sempre, condicionadas aos efeitos. Mas, naquelas três semanas, até o suspense me serviu de argumento. A TV Minas ia iniciar, no dia 5, um ciclo de 10 filmes de Hitchcock, realizados entre 1929 e 1939, e, embora não gostasse, decidi assistir todos. Pelo menos, enquanto estivesse preso em casa não poderia estar no Belas Artes. Um raciocínio perfeitamente lógico e condizente com os fatos. Se O Marido da Cabeleireira tinha inaugurado a nova sala, não sairia tão cedo de cartaz. Por quê, então, correr, se havia tempo para tudo?

O argumento era correto. Só que não era verdadeiro e eu sabia. O que me afastava da Sala Belas Artes não era o fator tempo. Era o fator medo. Eu tinha medo de confrontar a firmeza da decisão daquele menino com a minha covardia.

15

Quem que disse que Eduardo da Cunha Júnior morreu em dezembro do ano que passou? Só se o mataram. Mas, se o mataram, André já saberia e já me teria avisado. Ou, então, a Maria dos Melões. A Maria dos Melões conhece Eduardo há muito mais tempo e pode confirmar o que eu digo. Eduardo da Cunha Júnior morreu em dezembro do ano que passou, porra nenhuma. Que ele sempre foi um camarada meio estranho, meio fechadão, isso é verdade. Mas, daí a ter morrido, isso eu não acredito. Não acredito mesmo. Quem pensa como Eduardo pensa, só pode morrer se Deus der um cochilo. E, que eu saiba, Deus não cochila. Se cochilasse, hoje eu seria economista.

Quis muito ser economista. Quis mesmo. E ralei pra caralho, pra conseguir entrar na faculdade. Mas, graças a Deus, me livrei da tentação. Graças a Deus e à Maria dos Melões, que Eduardo, praticamente, botou na minha cama.

Conheci Eduardo ainda no vestibular. Ele dava aulas no cursinho e, naquele tempo, eu ainda pensava que os valores da ordem constituída eram sagrados. E tinha tanta certeza, que me filiei ao Partido Democrata Social e assinei a Gazeta Mercantil. Não bebia, não fumava, nem andava com mulheres. Meu pai, lá no interior, acreditava que eu podia vencer na capital, e eu também acreditava. E acreditava tanto, que comprei um terno jaquetão quando consegui entrar na faculdade. O que Eduardo riu daquele terno, puta que o pariu! Mas eu não me importava. Só ficava puto era quando aquela porra daquela mulher de André cagava opinião. Mas eu gostava daquele jaquetão. Gostava mesmo.

Eu sempre acreditei nos motivos. Tudo que acontece com a gente, acontece por um motivo. Se não fosse a Maria dos Melões eu seria economista. Ou um besta. Que era o que eu era naquele tempo. Um filho da puta de um besta, que estudava economia e acreditava no governo, puta merda. Por isso, agora posso dizer, aprendi muito com Eduardo. Isto, apesar de, no começo da nossa amizade, quando ele me dizia que a única coisa de valor que o ser humano possuía, era a sua liberdade, eu achar que ele era ainda mais idiota ou mais burro do que eu. Ou, então, que era doido. Pense bem, Belizário, ele dizia, ninguém pode destruir um ser humano. Pode-se vencê-lo, pode-se até matá-lo, mas não se pode destruí-lo. Mas ele se destruirá a si mesmo se abjurar a sua liberdade. Eu discordava. A porra dos valores constituídos era foda. Eduardo, o importante não é o que se pensa. O importante é o que se deve pensar. Se não fosse assim, não haveria ordem e tudo seria permitido. Mas tudo é permitido, Belizário. Se eu abjurar a minha liberdade, os outros podem fazer tudo que quiserem. Tudo fica permitido. Aí, eu apelava. Tinha que apelar. Se não apelasse, não tinha jeito. Você tá esquecendo os motivos, meu irmão. Eduardo ficava puto e acabava a discussão. Ah, pra merda, Belizário.

Naquele tempo, eu tinha começado no Banco da Lavoura e levava uma vidinha de merda. Era do banco prá faculdade e da faculdade pra casa. Mas Eduardo e André tanto insistiram que, uma noite, fui com eles ao Calhambeque. E foi lá mesmo, na porra do Calhambeque, que conheci a Maria dos Melões. Um par de seios e de coxas que eu vou te contar. Do caralho. Eduardo pediu que ela sentasse do meu lado e ela sentou e encostou em mim, e foi a conta. Bebi feito que nem gambá e tive que vomitar. E se não fosse a Maria dos Melões ter me levado, puta merda, não sei nem o que teria acontecido. Mas valeu a pena, puta que pariu. No dia seguinte cancelei a assinatura da porra da Gazeta, rasguei a merda do cartão do partido, e mandei a economia prá puta que a pariu. E sempre que Eduardo ficava puto, quando eu falava dos motivos, eu mostrava pra ele os seios da Maria dos Melões. Tá vendo, meu irmão? Se eu não tivesse arrumado estes motivos, ainda hoje taria lendo a porra da Gazeta Mercantil.

Era brincadeira, mas é verdade. Quando a gente arruma um bom motivo, a gente faz o caralho. Eduardo é que nunca arrumou um bom motivo. Porque, no dia em que arrumar, vocês vão ver, ninguém segura esse homem. Não segura mesmo.

16

A decisão de Lúcia deixou marcas. Se, por um lado, me libertou, por outro, também me coagiu. Não por pensar que Lúcia pudesse recuar. Lúcia não recuaria. Tinham sido oito anos invariáveis e eu sabia que a atitude era definitiva. Terminal.

Lúcia sempre repetia as mesmas reclamações, com as mesmas palavras e a mesma intensidade, e eu sempre tive certeza de que ela só falava por falar. Lúcia gostava de falar. Fazer de conta que o futuro ia acontecer, se dissesse que ele ia acontecer. Mas nunca me apresentou nenhum ator de teatro ou militante do partido, nem me mostrou nenhuma folha do rascunho do livro de medicina social. Nada disso existia e eu sabia, e Lúcia também sabia que eu sabia. Mas só naquela segunda-feira ela dissera: Adeus, Eduardo. Não me procura nunca mais. Agora, eu vou viver a minha vida.

Por isso, eu sabia que a decisão era definitiva. E o que me coagiu não foi o fato de Lúcia me impor uma opção. O que me coagiu foi, exatamente, a decisão. Aquele agora. Por causa dele eu também tinha que decidir. Se Lúcia tinha conseguido libertar-se, eu não podia continuar. O agora de Lúcia também era o meu agora. O medo que eu tinha do passado não podia ser maior do que o medo que Lúcia tinha do futuro.

17

As fotos de Anna Galiena deslumbraram-me. Com aquela bata justa e os seios sobrando no decote, não era de espantar que o menino Antoine se tivesse apaixonado e cumprisse o que tinha prometido.

Comprei a entrada e olhei outra vez Anna Galiena, debruçada no balcão do caixa e sorrindo para Jean Rochefort, sentado no sofá. Não sei por quê, mas aquele sorriso me lembrou Marianinha. Marianinha era menina, mas também sabia debruçar-se no muro do quintal e sorrir como Anna Galiena. Só que o meu sonho, naquele tempo, não era casar com qualquer Anna Galiena. Era ser o que quisesse.

Ainda era cedo e poucas pessoas sentavam pelo bar. E só uma olhava as prateleiras da livraria, no fundo do saguão. Não sabia que o Belas Artes Liberdade tinha bar e, muito menos, livraria, e fui olhar as novidades. Gosto de livros. Mas gosto de livros como gosto de filmes. São os autores que me interessam, não os gêneros. E não encontrei nenhuma novidade.

Voltei ao bar e sentei-me e acendi um cigarro, e chamei um garçom e pedi uma cerveja. Num dos cartazes internos, Anna Galiena continuava sorrindo e olhava para mim. Mas não era para mim que ela olhava. Olhava para Jean Rochefort, num cartaz ao lado, que também sorria e respondia ao olhar dela. Desviei os olhos. Aquele olhar feliz incomodava-me. Lúcia também sorria e olhava para mim, mas eu nunca conseguia responder ao olhar dela. Lúcia, Marilize, Wanda, até Pepa e Rê, e Linda e Violeta. Todas sorriram e olharam para mim, mas eu nunca consegui responder ao olhar delas.

Puxei uma tragada e olhei as mesas vazias, e uma sensação de frio me fez estremecer. Mas não era frio, eu sabia. Quando saísse do cinema poderia sentar outra vez naquela mesa ou ir direto para casa. Só que, em qualquer das hipóteses, ninguém pensaria mais em mini. O erro não era de Lúcia, como não tinha sido de Marilize, nem de Wanda. Nem sequer de Pepa e de Rê, ou de Linda e Violeta. O erro era meu. Tinha trocado Marianinha por nada e nunca mais conseguira destrocar.

Um homem nunca é nada ele sozinho. Nem livre, nem verdadeiro. Só que se julga, cada vez, mais sábio e mais inteligente. E muito mais verdadeiro. Hipócrates e Galeno não curavam resfriados, e Aristóteles também não sabia que, se todos os metais conhecidos eram sólidos, nem todos os metais a conhecer teriam que ser sólidos. E se Protágoras desconhecia que o Universo se expandia e tinha alguns buracos negros, sabia que o homem era a medida de todas as coisas. Da existência do que existe e da inexistência do que não existe. O que ele conhecia de si mesmo era proporcional ao seu mundo exterior.

Nós caminhamos pelo Cosmo e medimos todas as distâncias, e transformamos o nosso mundo numa aldeia. Só que nada mais conhecemos de nós do que Protágoras conhecia. E também não curamos resfriados. Apenas sabemos que nem todos os metais conhecidos são sólidos e fazemos tudo com maior velocidade. Conseguimos até bilionesimar os 86.400 segundos de cada dia. Porém, também destruímos tudo que fazemos na proporção direta da velocidade dos nossos cálculos. O que milhões de homens fizeram, no passado, com clavas, com espadas e com fuzis, hoje, apenas um faz com uma bomba. E em segundos.

Fissuramos o átomo e geramos seres humanos em provetas, e os clones humanóides já estão em produção. Mas, a nós mesmos, nada de positivo acrescentamos. Quanto mais nos aproximamos do Infinito, mais o Infinito se afasta. Mais relativos nos tornamos. Apesar de toda a nossa pompa e circunstância, apenas conseguimos estar presentes. Como estão presentes as pedras dos caminhos que pisamos. Só que essas pedras existem desde o começo do tempo e continuarão até ao fim do tempo, e nós desaparecemos a cada geração. Cada vez mais sós e com mais medo, e muito mais angustiados. Porque, a cada dia que passa, mais somos obrigados a justificar o que somos. Na era do bilionésimo de segundo o meu próximo não existe. Não há tempo de encontrá-lo.

O telescópio Hubble foi lançado no espaço. Afirmam os cientistas que, se o campo de visão a olho nu é de 600 mil anos-luz e o alcance máximo de um telescópio comum é de 2 bilhões de anos-luz, o Hubble poderá esquadrinhar os quasares a 14 bilhões de anos-luz. As declarações são tão categóricas e tão afirmativas, que não permitem que se duvide. Mas eu, que nunca pensei esquadrinhar um quasar ou me aproximar do Infinito, fico me perguntando, já que não posso perguntar a quem fez a medição: o que poderá acontecer se o Hubble só esquadrinhar os quasares a 13 bilhões, 227 milhões, 825 mil, 430 anos-luz, 7 meses, 15 dias, 8 horas, 6 minutos, 56 segundos, 83 centésimos, 941 milésimos, 7.012 milionésimos e 1 bilionésimo? A minha vida continuará sendo o que sempre tem sido ou eu verei a Deus e não morrerei mais resfriado, nem aidético?

Afirmam-me que sou a mais perfeita criação da Natureza. Não sou. Sou a mais idiota e iludida. Um mosquito pousa no meu ombro e viaja de graça o tempo que quiser, e eu nem de graça posso viajar. Se entro num ônibus tenho que pagar. Ou matar o motorista e tomar o lugar dele. Na verdade, apesar de tudo que me afirmam, eu só tenho uma certeza. Que, um dia, morrerei. Na minha cama ou na cama de alguém, ou assistindo um filme em Plutão ou na Sala Belas Artes. Com ou sem Big Bangs, com ou sem Big Crunchs, ou buracos negros, sugando qualquer força, a 1 bilionésimo de segundo ou a 14 bilhões de anos-luz. O resto, diga eu o que disser ou afirmem os outros o que queiram afirmar, nada do que somos mudará. Todos continuarão sendo como são e eu continuarei sozinho nesta mesa. Só esperando que Antoine me mostre como se pode ser feliz.

Nem vi quando o garçom trouxe a cerveja. Quando olhei a mesa, a garrafa estava aberta e o copo transbordava. Bebi um gole e puxei uma tragada, e levantei os olhos até Anna Galiena. Mas nem a vi. Parada na minha frente, era Marianinha Galiena que sorria e olhava para mim.

18

Coitado de Seu Eduardo. Tem hora que eu não entendo nem como é que pode. Esse troço de estrela pegar mulher e galinha virar não sei o quê, coitado de Seu Eduardo. Bem que ele precisava era dar um jeito na vida, sabe?

19

Encontrei André por acaso, ontem à noite. Não queria ir para casa e não tinha mais para onde ir. Belo Horizonte não é a maior cidade do mundo. Mas é a maior cidade do mundo quando a gente não tem para onde ir. Ou não quer ir para onde pode.

À meia-noite o Calhambeque sempre está cheio. As mulheres e os homens rindo e bebendo, e os cafetões conversando na calçada. O Calhambeque é um dos muitos botecos da Rua da Bahia, depois da Avenida Afonso Pena, e sempre foi o nosso ponto de encontro desde os tempos da faculdade. Só tem uma porta e parece um corredor, e, quando enche, os garçons colocam mesas na calçada. Os cafetões sentam sempre nas mais próximas da porta e fiscalizam as saídas das mulheres. Os quartos ficam na Rua Guaicurus e cada mulher tem duas horas por freguês. Se ficar a noite inteira paga três saídas. André não parecia bem e bebeu quase metade da garrafa de conhaque.

- Você já tá pensando que eu tou bêbado. Mas eu não tou bêbado, não, viu?

Não respondi. André sempre dizia aquilo quando bebia, depois de ter brigado com Renata. Acendi um cigarro e puxei uma tragada, e olhei-o. Gotas de suor escorriam pela testa e pela cara. André baixou a cabeça e olhou a toalha da mesa. Ficou assim alguns instantes e olhou-me.

- Vou casar com a Renata.

Continuei calado. André bebeu mais um gole e puxou uma tragada, e jogou o cigarro no chão, num gesto brusco. Tinha um ar infeliz e olhava-me como se eu pudesse ajudá-lo. Mas eu não podia ajudá-lo. Renata já tinha decidido e André só podia justificar-se.

- Eduardo, eu tou com a Renata desde que fundamos o Plano Inclinado, você sabe, e...

Calou-se e pegou o copo, e ficou olhando para ele. Ficou assim algum tempo e bebeu dois goles, e colocou-o ao lado do cinzeiro.

- Sabe? No fundo, no fundo, a gente só faz é burrada.

Bebeu o resto do conhaque e ficou olhando o copo vazio.

- Sabe o quê que acontece, agora, quando a gente vai prá cama?

Encheu o copo e abanou a cabeça, devagar.

- Não acontece mais nada, Eduardo. Agora, se você quer saber, a gente só trepa. Mais nada.

Calou-se e olhou-me, e passou as mãos no rosto.

- Às vezes, sabe o quê que eu penso? E quando acabarem as trepadas? Quê que a gente vai fazer?

André suava. A pele parecia um pedaço de cartolina amarrotada, cortada de rugas e brilhante de suor

- É uma merda, sabe? Mas se a gente não casar agora, a gente vai fazer o quê? Só continuar com o Plano Inclinado? Os tempos mudaram, Eduardo, você sabe.

Continuei sem responder. Não sabia o que dizer-lhe. Lúcia também, muitas vezes, me perguntava a mesma coisa e eu também não sabia o que dizer-lhe. Sabia que o futuro era o que menos importava. No fim do futuro só a morte existia. Mas só eu pensava assim. Esmaguei o cigarro no cinzeiro e bebi o último gole.

- Quando quiser, a gente vai.

André encolheu os ombros e não respondeu. Bebeu o resto do conhaque e olhou-me durante alguns instantes.

- Lúcia também tá sempre te perguntando o que vai ser da vida de vocês?

- Tá. Quer dizer, tava. A gente separou já faz uma semana.

André passou as mãos no rosto e abanou a cabeça com força.

- Então, é a mesma merda. É sempre a mesma merda.

20

Naquela noite, Maria dos Melões sabe que Eduardo não vai trepar com ela. Mas, mesmo assim, deita-o e despe-o, e despe-se também e deita-se junto dele. Tinha-o encontrado no Calhambeque, sozinho, já passava das duas horas da manhã.

Eduardo deixa-se despir, sem uma palavra e sem um gesto, e Maria dos Melões também não fala. Nem apaga a luz. Ela sabe que Eduardo não gosta de deitar na escuridão. Deita-se de lado, voltada para ele, a cabeça apoiada num braço e o outro estendido sobre o corpo. Ela sabe que Eduardo gosta de olhar os seios naquela posição. Um por cima do outro, caídos no lençol. Coitado de Seu Eduardo. Tomara que dê um jeito e largue desses troços. Estrela não pega mulher e galinha não vira não sei o quê, não, gente.

Um carro sobe a rua devagar e faz a volta, e a luz dos faróis bate na janela. Eduardo olha Maria dos Melões. Já faz tempo que ela adormeceu, mas ainda continua na mesma posição. Deitada de lado, a cabeça apoiada num braço e os seios, um por cima do outro, caídos no lençol. Eduardo toca, de leve, no de cima, e a mão de Maria dos Melões sobe pelo corpo e coça no lugar. Os dedos afundam na carne mole e o seio abana, e o sexo de Eduardo começa a latejar.

Os seios de Lúcia eram menores, mas Lúcia também sabia que Eduardo gostava de vê-los naquela posição. Só que Lúcia não parava de falar. Só parava quando Eduardo se encaixava nas pernas dela. Mas, aí, os seios já não caíam no lençol.

Maria dos Melões pára de coçar o seio e a mão fica caída em cima dele, comprimindo os dois ainda mais. Eduardo sente um calor úmido subir pelas coxas e espalhar-se pelo ventre, e deita-se também de lado. Muitas vezes já deitou assim com Maria dos Melões. Só olhando os seios caídos no lençol. Com cuidado, afasta a mão e encosta a cara neles. Respira fundo e fecha os olhos, e deixa o corpo relaxar. Quando Maria dos Melões acordar saberá o que fazer. Lúcia, às vezes, também fazia. Mas era raro. Lúcia só se calava quando Eduardo se encaixava nas pernas dela. Mas, aí, os seios já não caíam no lençol.

Maria dos Melões recosta-se na cama e olha Eduardo. Eduardo, o corpo ainda coberto de suor, puxa uma tragada profunda e deixa o fumo sair, devagar, pelo nariz e pela boca. Maria dos Melões sorri, satisfeita.

- Pôxa, Seu Eduardo. O senhor hoje, hem?

Eduardo não responde, os olhos fixos no fumo do cigarro, subindo até ao teto. Maria dos Melões cruza os braços no peito e os seios unem-se e parecem dobrar de tamanho. Coitado de Seu Eduardo. Tomara que largue logo desse trem bobo das estrelas e das galinhas.

O dia já nasceu e o barulho da rua entra pela janela. O ar do quarto está quente e abafado, e cheira a fumo e a suor, mas nenhum dos dois parece perceber. Ainda estão nus e estão imóveis, mas há muito que não falam. Maria dos Melões sentada na cama e Eduardo com a cabeça deitada no colo dela. Um carro passa na rua e buzina, e um gato rnia no corredor. Maria dos Melões respira fundo e olha os corpos refletidos no espelho manchado da porta do guarda-roupa.

- Seu Eduardo, aq...

A voz sai baixa e rouca, e ela pigarreia.

- Aquilo que o senhor falou das estrelas...

- 0 q...

A voz de Eduardo também sai baixa e rouca, e ele também pigarreia.

- O quê?

- Ah, aquele trem de estrela pegar mulher e galinha virar não sei o quê, o senhor não pode falar mais isso, não.

- Mas quem que...

- Ah, Seu Eduardo, isso não é verdade, não.

Eduardo olha os seios suspensos por cima do rosto e fecha os olhos.

-.Você sabe o que é a verdade, Maria?

- Ah, Seu Eduardo, a verdade é o que a gente tem, ora. O resto.

Maria dos Melões cala-se e Eduardo também não diz mais nada. A verdade é o que a gente tem. Só que a mentira não é o que a gente não tem, não, Maria. O gato volta a miar no corredor e arranha a porta, mas nenhum dos dois presta atenção.

21

Marianinha Galiena sorriu e olhou para mim, e o garçom e o Hubble dançaram ao som do Big Bang, cantando o Big Crunch. As breves e as mínimas rolaram pelo chão e caíram sobre mim, e esquadrinharam os quasares por baixo da toalha. O garçom plantou duas bananeiras e bateu quatro continências, e eu pedi-lhe que trouxesse uma cerveja Galiena. Mas o eco do Big Bang engoliu o Big Crunch e o Universo não se expandiu e afogou-se. Marianinha Galiena sorria e olhava para mim e Deus abençoou-me e vomitou em cima da toalha. O relâmpago do milagre escorreu pelas paredes e escondeu-se no banheiro, e a luz do eclipse explodiu dentro da garrafa. Não havia movimento, nem palavras, e o campo de visão asfixiou o velho Hubble e cavalgou 14 bilhões de anos-luz. Marianinha Galiena sorria e olhava para mim e Eva chamou Adão e ofereceu-lhe um John Huston construindo a Arca de Noé em Hollywood. Jean Rochefort pediu um sanduíche e um maço de cigarros e Patrice Leconte despiu Lúcia e encaixou nas pernas dela, e Anna Galiena fez a barba e o cabelo e deitou com Antoine. Adeus, Eduardo. Agora vou andar a minha vida e viver sem sutiã. Marianinha Galiena sorria e olhava para mim e Protágoras ensinava a bilheteira a medir buracos negros, e 14 bilhões de anos-luz engoliram as entradas e cagaram nas saídas. Aristóteles não acreditou na medição e foi embora, e deletou um silogeu e formatou um silogismo. Marianinha Galiena sorria e olhava para mim, mas não foi Deus que bebeu a minha sede, nem foi Protágoras que engoliu o meu soluço. Foi a lógica. Se um silogeu não é um Big Bang, um silogismo também não é um Big Crunch. Nem um telefone celular. Dicere dicendo discunt. DDD. D de dado, D de dedo, D de dido e bem-aventurados os que discam à distância e não aprendem a falar, mesmo falando. Marianinha Galiena continuava sorrindo e olhando para mim e eu era Antoine e tinha cumprido a minha decisão. Que se fodesse Anna Rochefort e o marido, e a cabeleireira e o caralho. Parada na minha frente, Marianinha Galiena ainda sorria e olhava para mim.

22

Ah, minha Nossa Senhora Aparecida, quem disse que Seu Eduardo morreu nesse tal de dezembro do ano que passou? Não morreu, não, gente. Como que podia morrer, se até teve aqui ontem e perguntou se eu tava a fim de ir nesse tal de Caraça? Seu Eduardo não morreu, não, gente. Vai ver, tá só perdido por aí.

23

Se estivesse lá fora, agora, não teria nada que fazer. Provavelmente, talvez quisesse até voltar. Mas, se estivesse lá fora, agora, pelo menos, estaria lá fora. Não estaria aqui dentro, sentado numa cadeira que não é minha e debruçado numa mesa que também não é minha. E cercado de olhos que não param de me olhar.

Se estivesse lá fora, agora, pelo menos, já teria saído daqui e poderia fazer o que quisesse. Poderia andar, poderia correr, poderia meter as mãos nos bolsos e assobiar ou até me encostar nas paredes. Aqui dentro também posso fazer qualquer coisa. Mas é diferente. Não estou lá fora e todos estão olhando para mim. Fixamente, sem sequer pestanejar. Como se só eu fosse diferente. Mas eu não sou diferente. A única diferença é que eu gostaria de estar lá fora, agora, e eles não. Senão já teriam saído. Ou, pelo menos, já teriam arrumado um bom motivo. O Belizário sempre acreditou nos motivos. Mas nunca acreditou em mim, mesmo quando eu lhe dizia que a única coisa de valor que o ser humano ainda possuía era a sua liberdade.

- Belizário, esta mesa é de ferro e você sabe que é de ferro. Se eu disser que é de madeira, você aceita?

- Depende só de eu ter um motivo. Se eu tiver um bom motivo, esta mesa será de ferro, por que não? Eduardo, vai por mim. o que importa são os motivos. Enquanto você não arrumar um bom motivo, meu irmão, você será sempre um infeliz.

O Belizário acreditava mais nos motivos do que em mim. Mas ele estava certo. Os ideais são só idéias.

Talvez eu já tenha um motivo. Mas detesto que me olhem e, por isso, vou embora. Tenho certeza que nenhum deles me seguirá e, lá fora, ninguém me olhará. E se escutar algum ruído, será apenas um ruído. A gente tem sempre que escutar algum ruído. Ou os nossos passos estalando nas calçadas ou o silêncio estalando nas esquinas. Ou a merda das idéias estalando na cabeça.

Vou embora. Agora. Quando voltar, se voltar, eles já esqueceram a minha cara e eu serei, outra vez, igual a eles. Sei que todos vão pensar que vou levar uma mulher. Mas não vou. Se sair acompanhado, terei que ficar acompanhado, e não quero ficar acompanhado. Quero fazer o que quiser.

24

Belizário vive, agora, com a Maria dos Melões na Rua Guaicurus. Moram nos fundos, num quarto sem janelas, e o banheiro fica dois andares acima, no corredor do quarto da senhoria. Maria dos Melões já não faz ponto no Calhambeque e Belizário também não trabalha mais no banco. Faz biscates com seguros e aprendeu a fumar. E diz que é feliz.

- Tá vendo? Tá vendo só? Antigamente, eu nem fumava.

Deve ser feliz. Mas, mesmo que não seja, eu o invejo. A nossa felicidade é sempre relativa ao grau de intensidade das nossas convicções.

25

Às vezes, eu me comparo a um deserto imenso, que não tem nenhuma razão plausível e justa para existir, porque dele ninguém tira proveito e nem ele sabe para que existe, realmente. Mas não adianta comparar. Nem a merda de um deserto eu posso ser. Se fosse, pelo menos, não precisaria justificar-me. Fosse, colecionando ideais ou coisas velhas ou dinheiro, fosse, assassinando semelhantes ou cometendo suicídio. Ou deitando nos divãs dos analistas ou fazendo cópias perfeitas da Catedral de Colônia com palitos de fósforos. Queimados.

Existir não é só estar presente. E necessário que a presença se justifique. Presentes, só presentes, estão as coisas. Mas elas não precisam justificar-se. A sua própria eternidade as justifica. Além de comporem o espaço ainda permanecem no tempo. E eu não. Por isso, sou o que sou. O carregador fodido dos mosquitos que pousam no meu ombro e viajam de graça o tempo que quiserem.

Apesar de me dizerem que sou a mais perfeita criação da Natureza, eu sou apenas um prisioneiro do volume. Eu só existo em função do que me cerca. Se o chão que sustem o peso do meu corpo não existisse eu também não existiria. Se eu não fosse um simples prisioneiro do volume, viveria só no tempo. E seria eterno. Se não nascesse, vivesse e morresse em função das coisas, seriam elas que precisariam de mim, não eu delas. Mas, de tudo que existe, só elas ficarão. Eu sou apenas o que pensa. E o que morre. E não há fuga. Mesmo dentro do foguete que vai a Marte ou a Saturno, eu só consigo escutar a explosão da grande bomba. Caindo sobre a cidade indefesa como se caísse sobre mim. E, mesmo que não escutasse, continuo sem saída. Ou morro resfriado dentro do foguete ou a fissão me matará.

Sabe, André? Eu gostaria de ser como você. De acreditar, de crer fosse no que fosse. Até no que, às vezes, escrevo no Plano Inclinado.

Não sei nem por que me lembrei agora do teu jornal. Mas é como se ele estivesse aqui na minha frente e eu pudesse ler o que você escreveu naquele primeiro número, faz mais de trinta anos. Eduardo, quando nós nascemos troavam os canhões e as bombas arrasavam as cidades. E, na idade em que devíamos acreditar em Papai Noel, a bomba que acabaria com as guerras explodiu e matou todas as nossas crenças e todas as nossas ilusões. Por isso, agora, não podemos somente discutir. Não há mais tempo, Eduardo. Não há mais tempo, nem há mais que discutir. Agora, nós temos que lutar. Porque, no dia em que os nossos filhos olharem para nós e descobrirem que nos omitimos, eles terão vergonha e escreverão nos nossos túmulos: "AQUI JAZ UM HOMEM QUE, POR MEDO, ENGANOU SEUS FILHOS!'

26

Eu nunca me omiti, André. Mas também nunca acreditei. Nunca consegui acreditar. E esta tem sido a contradição maior do meu estar-no-mundo. Eu sou o que pensa, mas sempre duvidando do que pensa.

27

Numa hora como esta, diante deste conhaque e sem ninguém me olhando, talvez eu fosse até capaz de me suicidar. Numa hora assim, se ninguém me olhasse, tenho certeza que até a mim a minha própria morte passaria despercebida. Mas eles não param de me olhar e eu não posso deixar de vê-1os. Nem esquecer que me olham. Se ninguém me olhasse, seria fácil. Bastaria beber o resto do conhaque, fechar os olhos e não pensar. Nem precisaria tapar os ouvidos. A escuridão das minhas pálpebras seria a dimensão do meu silêncio. Mas eles não se importam. Continuam me olhando e não me dão alternativa.

28

André casou com Renata e foi morar na casa dela.

- Os tempos mudaram, Eduardo, você sabe.

Eu sei que os tempos mudaram. Mesmo que não mudem, os tempos sempre mudam.

29

Chamei um garçom e pedi uma mulher, como quem pede um conhaque num fim de noite. Sem olhar a idade e a marca. Tinha as mãos espalmadas na mesa e o ferro estava mais quente do que as polpas dos meus dedos. E os meus olhos também já não olhavam. Apenas viam. Estava exausto, cansado de escutar aquele relógio velho, sempre pendurado na parede e batendo sempre as mesmas horas, e eu sentindo o tempo passar por mim como uma rajada de vento numa manhã de inverno. Zunindo nos meus ouvidos.

Lúcia estava certa. Eu nunca soube agir no tempo certo. Ou me antecipava e nada conseguia, ou me atrasava e também nada conseguia. Lúcia estava certa. O meu tempo nunca acertava com o tempo. De nada ou de ninguém. Marianinha se fora e Lúcia também já tinha ido. Mas por quê que você é assim, Eduardo? A gente bem que podia ser feliz e se entender, você entende? Se você olhasse mais pra mim, você sabe muito bem que a gente podia se entender. Mas, do jeito que você faz, parece até que eu nem existo. Mas eu sei que é mentira, sabe? Eu sei que eu te interesso e que você não gosta de ser do jeito que você é. Só que você nunca fala, nunca diz nada e, por causa disso, nunca aprende, você entende? Ou sempre você chega antes e espanta todo mundo, ou parece que você nunca quer chegar e fica indiferente. Por quê que você é assim, hem, Eduardo? Será que você nunca pensou que ainda pode ser feliz ou será que você tem medo que os outros te conheçam? Mas eu não sou os outros, não, Eduardo. Eu sou Lúcia.

30

Dezesseis de novembro. Fiz, hoje, cinqüenta e dois anos e talvez já tenha um motivo.

31

A mulher despiu-se. Devagar e sem sorrir. Como se já me conhecesse há muito tempo ou já estivesse cansada de tanto se despir. Abri a janela e olhei a rua. Ninguém passava na calçada e as lâmpadas pareciam pirilampos. Mas não me importei. Às quatro horas da manhã todas as ruas são iguais. As lâmpadas sempre parecem pirilampos e o silêncio sempre estala nas esquinas.

A mulher chamou. Voltei-me. Estava deitada e olhava-me, e o corpo era branco e parecia frio como o ferro das mesas do Calhambeque. E eu não queria mais aquele ferro colado na polpa dos meus dedos. Encostei-me na janela e acendi um cigarro. A mulher abriu as pernas e sorriu, e a sombra dos pentelhos pareceu um ninho de baratas. E se aquelas baratas pulassem na minha pele e aquele corpo grudasse no meu e eu tivesse de andar sempre com ele, mesmo quando adormecesse ou voltasse ao Belas Artes? A mulher estendeu os braços e acariciou o ninho das baratas.

- Vem, amor.

Joguei o cigarro na calçada e fechei a janela.

- Quanto que é?

A mulher pulou da cama e vestiu-se. Calada. Pelo menos, não era como Lúcia, que só parava de falar quando eu me encaixava nas pernas dela. No Calhambeque ninguém nos olhou, quando entramos. Mas eu também já não tinha mais frio. E, quando sentei e olhei o relógio velho, ainda dependurado na parede, também já não tive mais medo. O tempo, agora, já não zunia mais nos meus ouvidos. Sentei e pedi dois conhaques, e a mulher sentou-se também.

- Você só precisa é quem lhe entenda, viu?

Não respondi. Entender ou não entender é com ser ou não ser. Quando se pode, é opção. O garçom trouxe os conhaques e deixou a garrafa na mesa. A mulher olhava-me e acenava com a cabeça.

- Eu também sou assim, sabe? Às vezes, também não posso nem falar. Mas não me importo, não. O que vier, pra mim, tá sempre bom.

Olhou as outras mesas e encolheu os ombros.

- Quê que eu posso fazer, né? Só se me matar.

Bebeu o resto do conhaque e levantou-se. Puxei-a por um braço.

- Senta.

A mulher encolheu os ombros.

- Quer ir agora, é?

- Senta.

A mulher sentou-se.

- Se quiser, nós vamos, viu?

Encheu o copo e bebeu um gole, e ficou olhando para mim.

- Você só precisa, mesmo, é quem lhe entenda, sabe?

Tinha os olhos encovados e a boca esborratada de batom, mas, pelo menos, sentava do meu lado. Mil e nove galinhas não formataram um paraíso, nem mil e doze paraísos deletaram uma estrela. Mas um ziguezague também não decompôs um coração, nem um coração encontrou uma mulher. Só há duas formas de ser feliz. Ou conseguimos ser o que os outros dizem que nós somos, ou conseguimos acreditar no que dizemos. Se mil e nove ziguezagues decompõem uma galinha e mil e doze galinhas deletam um paraíso, uma estrela formatará um coração e um coração encontrará uma mulher. E, aí, sim. Aí, já não serão mais necessários mil e nove paraísos para deletar um ziguezague, nem mil e doze estrelas para encontrar uma galinha. Uma mulher formatará um coração e eu, mesmo sozinho, serei livre e verdadeiro.

- Sabe? Acho que já encontrei um motivo.

A mulher riu e deu uma palmada na minha mão.

- Ah, é? Que bom. Então podemos ir.

32

Não tenho mais medo. Agora, não tenho mais medo. Estou no meu quarto, deitado na minha cama, e apaguei todas as luzes. E me sinto até bem, aqui deitado, nada enxergando à minha volta. Só a escuridão e o silêncio me rodeiam, e parece até que o corpo não tem peso e pode até flutuar, se eu quiser flutuar.

Não sei que horas são, nem há quanto tempo estou aqui, e também não tenho vontade de saber. Sejam que horas forem, agora, não importa. Pela primeira vez na minha vida não tenho medo do escuro. Nem do silêncio. Ninguém me acompanha, nem de perto, nem de longe, mas eu também não preciso de ninguém. Nem de nada. Agora, tudo que é meu está comigo. Agora, Marianinha está comigo.

Meu pai e meu tio ainda não chegaram, e minha mãe, como sempre, ciranda na cozinha. As galinhas já dormitam no poleiro e os pardais esvoaçam na mangueira, e Marianinha pula do muro e corre ao meu encontro. Abraça-me e beija-me, e as pernas começam a tremer, e Marianinha ri e aperta-me com força contra ela. Fecho os olhos e o chão parece estremecer, e Marianinha cruza as mãos na minha nuca e envolve as minhas coxas com as pernas. O meu sexo lateja e Marianinha aperta-me com força e morde a minha boca. O sangue e a saliva escorrem na garganta, mas nenhuma dor me faz gritar. Marianinha está comigo.

Marianinha empurra-me contra o muro e levanta a saia, e pega a minha mão e enfia-a na calcinha. Os meus dedos endurecem e somem entre as coxas, e Marianinha deita-me e cavalga-me, e o meu corpo flutua, implodido.

33

Marianinha era assim. Todas as tardes brincava no quintal, as tranças louras balançando e batendo na cintura, e o vestido sempre acima dos joelhos. Os galhos da mangueira passavam pelo muro e, do outro lado, um pneu velho servia de balanço. Marianinha varria o terreiro e jogava amarelinha, e eu jogava bola de gude, só esperando que ela subisse no balanço. Quando a corda rangia e os galhos abanavam, eu trepava, correndo, na mangueira e me escondia entre a folhagem. E olhava. Marianinha parecia adivinhar e abria as pernas, e balouçava com mais força. Enfunado pelo vento, o vestido arregaçava e mostrava as coxas nuas e a calcinha, repuxada no pneu. E eu olhava. Marianinha não ligava e ria e abria mais as pernas, e balouçava ainda com mais força. Marianinha era assim. Sabia que eu a via e queria que eu a visse.

34

Estou aqui. A montanha recorta o horizonte à minha frente e as sombras escorrem pelo vale. Flocos de nevoeiro flutuam junto das árvores e salpicam de branco o verde da folhagem. Perdido na distância, o Colégio do Caraça mal se vê.

Lambido pela brisa, o capim curva-se e ondula pela encosta, e, no alto da montanha, as estrelas somem no azul, esmaecidas pelo dia. Um gavião alça vôo e os pardais esvoaçam e chilreiam, e o vale se enche de ruídos. O nevoeiro dilui-se, batido pela luz, e os telhados do colégio aparecem e parecem aproximar-se. Marianinha aconchega-se na minha jaqueta e aperta o corpo contra o meu. O dia acaba de nascer.

- Já tinha vindo aqui?

Aceno com a cabeça e Marianinha continua olhando para mim.

-.Por isso que voltou?

Não respondo. Não há necessidade. Ambos sabemos a resposta. Marianinha encolhe as pernas e cruza as mãos em cima dos joelhos, e fixa os olhos nos meus. Uma lufada mais forte traz o cheiro da terra umedecida e gotas de orvalho caem sobre mim. Acendo um cigarro e puxo algumas tragadas em silêncio.

- Marianinha...

Marianinha não responde. Baixa a cabeça e encosta o queixo nas mãos.

- Marianinha...

Marianinha continua na mesma posição, sem responder.

- Preferia não ter vindo?

Marianinha cobre o rosto com as mãos e abana a cabeça, devagar.

- Não sei.

- Aqui, ou em outro lugar, que diferença vai fazer?

Marianinha estende as pernas e cruza as mãos no colo, e deixa cair a cabeça sobre o peito.

- Marianinha...

Marianinha abraça-me e aperta, com força, o corpo contra o meu.

- Eu não sei como vai ser, Eduardo.

35

Já é dia. Belo Horizonte ficou lá, esquecida na noite anterior e na memória, e, agora, só a quietude me rodeia. Dentro em pouco o sol vai dourar a torre da igreja e alguém tocará o sino, chamando para a missa. Mesmo que mil e nove ziguezagues pudessem decompor uma galinha e mil e doze galinhas pudessem deletar um paraíso, uma estrela não formataria um coração e um coração não encontraria uma mulher. Não existe forma de ser feliz. Nós só estamos e apenas somos passageiros. A mão de Marianinha encosta no meu rosto e os dedos deslizam, devagar, na minha pele.

- Pensando em quê?

Não estou pensando. São os pensamentos que nascem, sem eu querer.

- Tá pensando em André?

Abano a cabeça, devagar.

- Belizário? Na Maria dos Melões?

Abano a cabeça outra vez e fecho os olhos. Se pudesse, pensaria em todo mundo. Mas não posso. São os pensamentos que nascem, sem eu querer. Os braços de Marianinha me rodeiam e a cabeça deita no meu ombro.

- Eu tava pensando em nós.

36

Queria ser imortal. Em relação aos outros homens, todos mortais, não seria mais um homem, eu sei. Seria uma coisa. Mas, mesmo assim, queria ser imortal. Pelo menos, não precisaria mais justificar-me. Nem optar. A minha única finalidade seria existir, não somente estar-no-mundo e perguntar: se são necessários mil e nove ziguezagues para decompor uma galinha e mil e doze galinhas para deletar um coração, quantas estrelas serão precisas para encontrar uma mulher e quantas mulheres para formatar um paraíso?

37

O mugido de um boi soa ao longe, no curral do colégio, e o som repercute nas encostas. Um gavião plana em círculos, sobre as árvores, e a cabeça de Marianinha continua deitada no meu ombro.

- Eduardo...

Queria ser imortal.

- Eduardo...

Se eu fosse imortal...

- Eduardo, por favor.

- Hem?

- Quê que você mais queria ter?

- Quê que eu mais queria ter?

- É. Quê que você mais queria ter?

- Quando?

- Sempre.

A mão de Marianinha puxa a minha mão e comprime-a contra os seios.

- Marianinha...

A mão de Marianinha comprime a minha mão com mais força.

- Você sabe, Eduardo.

- Certeza.

- Só certeza?

Uma juriti canta no mato, lá em baixo, e o canto triste sobe pela encosta. Não respondo. O canto da juriti fecha a minha hoca.

38

O sol bate na cruz da igreja e cintila no telhado, e um sabiá canta à minha frente. A cabeça de Marianinha afasta-se do meu ombro e o sabiá pára de cantar.

- Eu não queria que você morresse nunca.

Os olhos de Marianinha estão fixos nos meus, mas parecem nem me ver.

- Sabe? Às vezes, eu acho que nunca servi pra nada, Eduardo.

Os olhos de Marianinha não me vêem.

39

Os olhos de Marianinha não me vêem.

- Marianinha...

Os olhos de Marianinha estão fixos nos meus, mas não me vêem. Um raio de sol infiltra-se na folhagem e faísca numa pedra, e as cores do arco-íris explodem nos meus olhos. Os olhos de Marianinha continuam não me vendo, mas as cores do arco-íris passeiam nos meus olhos.

- Sabe? Na Natureza, a perfeição é sempre inversamente proporcional ao absoluto. Quanto mais eu sei de mim, mais distante fico dele.

Um bem-te-vi pousa numa árvore e as penas matizadas confundem-se no arco-íris.

- Tá vendo aquele bem-te-vi?

Os olhos de Marianinha desviam-se dos meus.

- Ele não tá preocupado com isso, Eduardo.

Agora, Marianinha já me vê.

40

Um carro passa na estrada, atrás de mim, e o sino da torre chama para a missa. O som das badaladas marola pelo ar e ecoa na montanha. Dentro em pouco começará a cerimônia.

- Marianinha...

Marianinha não responde.

- Marianinha...

Marianinha continua imóvel, as mãos cruzadas em cima dos joelhos e o olhar perdido na distância.

- Marianinha...

- Quê que importa mais?

- O quê?

- Quê que importa mais? O momento ou o ato?

- Marianinha...

- Responde, Eduardo. Quê que importa mais? O momento ou o ato?

- Marianinha...

- Responde. Você sabe.

Não respondo. Sem o momento o ato não existe. Mas, sem o ato, o momento também fica incompleto. Marianinha fecha os olhos e a cabeça cai em cima dos joelhos.

- Você nunca pensou em mim, Eduardo.

41

Agora, o que importa é o silêncio. A imensidão e o silêncio. Agora, nada do que foi vai continuar. O movimento parou e a gravidade não existe. Agora, tudo está como se nunca tivesse sido. Sem volume e sem memória. Não há mais necessidade de opções, nem de motivos. Nem de momentos, nem de atos. Nem de justificativas, nem de fé. Nem de certezas. Agora, Marianinha, o que importa é o silêncio. A imensidão e o silêncio. Os meus passos já não estalam nas calçadas, nem o silêncio estala nas esquinas. Nem as idéias estalam na cabeça. Tudo é como se ainda estivéssemos no teu quintal e o balanço não pudesse balouçar ou ainda estivéssemos na montanha e o canto da juriti não pudesse mais parar. Agora, Marianinha, o que importa é o silêncio. A imensidão e o silêncio. As estrelas não brilham mais, nem a minha jaqueta te pode aconchegar.

42

Agora, eu sei que o homem não foi criado em função de. Foi causa. Mas de nada vale saber agora. Agora, não importa mais que mil e nove galinhas decomponham um ziguezague e mil e doze ziguezagues deletem uma estrela. Ou um coração encontre uma mulher e todas as mulheres formatem um paraíso. Agora, o que importa é o silêncio. A imensidão e o silêncio. Agora, as causas não produzem mais efeitos.

43

Troquei Marianinha por nada. Não há mais bolas de gude no quintal e o meu laboratório acabou, apodrecido. E, do outro lado do muro, também ninguém mais joga amarelinha, nem balouça no pneu. Ninguém mais me obriga a papaguear a tabuada, nem a abjurar a minha liberdade. Mas é uma vitória perdida. Dois vezes dois ainda continuam sendo quatro. E, mesmo mergulhando na memória, nem no tempo eu posso viajar. O máximo que o tempo me permite é andar junto. Acompanhá-lo. Só que, mesmo tendo companhia, a viagem é sempre solitária. Para o tempo, o caminho não tem fim, e, para mim, não tem retorno. O instante que passa já passou e não há como fazê-lo retornar. Recordá-lo não é vivê-lo. É só trocá-lo por outro. Que também já passou. Troquei Marianinha por nada e nunca consegui destrocar.

43

Amlutzi amlutziamlutz aml amlu. Amlut am aml amlutzia a am amlutzi amlutziamlutz amlut amlutzia, am a amlutzi. Aml, am amlutziam amlut amlutz, aml amlutziam aml aml a amlut amlutz, amlutzia amlutz aml. A amlutz amlutzia amlu amlutz am amlutz, amlutziamlutz am a amlutzi amlutzia. Amlu aml amlu a amlutzi. Amlutzi am aml amlut a amlu. Amlutzia aml amlu amlutz amlutziam. Am a, amlu am amlutzi amlutzia aml a amlutziamlutzi, am a amlutzi amlutz. Aml amlu amlutzia amlut am amlutzi. Amlu a amlut. A, amlutzia am amlut amlutz, amlutzi aml amlutzia a am. Amlu amlutz, a aml am amlutz amlutzia, am a amlutziamlut am aml, amlutzia. Aml aml amlutzia amlu am a amlutzia aml. Amlut am aml. Amlu amlutziamlut. Amlutzi amlutziamlutz aml amlu am amlutzia aml amlu a am amlut am amlutz.

44

É ótimo escrever em duas línguas. Pelo menos, posso calar em dois silêncios.

POST FRACTU

1

Eduardo da Cunha Júnior morreu em dezembro do ano que passou. Foi encontrado num quarto do Colégio do Caraça, a pouco mais de cem quilômetros de Belo Horizonte, num domingo de manhã.

Não deixou nenhuma carta, nenhum aviso, nenhuma despedida. Apenas, em cima da mesa-de-cabeceira, um frasco vazio de Frontal, um isqueiro e um maço de cigarros, e uma carteira de identidade. E, enrolada debaixo da nuca, como servindo de travesseiro, uma jaqueta velha de jeans.

Nenhum parente se apresentou no necrotério e os jornais também trocaram os dados da notícia. Oficialmente, Eduardo da Cunha Júnior morreu com outro nome.

2

Mas eu conheci Eduardo da Cunha Júnior. E ele não morreu em dezembro do ano que passou, com outro nome. Morreu agora.

CUNHA DE LEIRADELLA
Conto do livro Fractal em duas línguas