COR LOCAL
Cunha de Leiradella
19-02-2005 www.triplov.org

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CENA I - UM ANO ANTES

Ao escurecer. D. Helena entra pela porta da cozinha, com uma sacola de compras, e acende a luz. Deixa a sacola em cima da mesa, abre a janela, pega o vaso de plantas e coloca-o em cima do peitoril. Volta à mesa e tira frutas da sacola. Entra Juca, pela porta da rua.

D. HELENA

         Olá, Juca, como vai? Já chegou?

JUCA (Rindo)

         Claro que não, D. Helena.

D. HELENA (Ao mesmo tempo)

Chegou cedo hoje. (Juca pega uma banana, senta-se na cama e come.) Quer maçã? O Eduardinho gosta muito de pêras e eu trouxe pêras e maçãs. (Juca faz menção de jogar as cascas da banana pela janela.) Me dê. Me dê, que eu jogo no lixo. (Pega as cascas.) Eu trouxe um quilo de carne que é uma beleza. Seu Honorato é uma pessoa muito distinta e muito inteligente (Juca deita-se.) e gosta muito do seu irmão, sabe? Ainda hoje ele me disse (Entra na cozinha.) D. Helena, aquele seu genro, o casado com a sua filha, é um rapaz muito distinto e muito inteligente.

JUCA

         Todo mundo é muito distinto e muito inteligente, né, D. Helena?

D. HELENA (Entrando, com uma vassoura)

Eu sempre digo à minha filha, minha filha, você casou com um rapaz muito distinto e muito inteligente.

JUCA (Acendendo um cigarro)

         E agora é por toda vida.

D. HELENA (Começando a varrer)

Ah, é! Eu sou uma pessoa de muita educação e de muita vergonha, e sempre digo à minha filha, minha filha, agora é por toda vida.

JUCA

         E ela, ó, aí firme, firme!

D. HELENA (Ao mesmo tempo)

Fiquei viuva com a idade de trinta anos, grávida desta minha filha, e todo mundo me dizia, D. Helena, a senhora é uma pessoa de muita educação e de muita vergonha. Por isso, eu sempre digo à minha filha, minha filha olhe o exemplo do seu irmão. Seu irmão tá na Prefeitura, tá muito bem, e é um homem muito distinto e muito inteligente. Você é que precisa se arrumar. Você é moça, minha filha, e precisa arrumar um marido. E ela sempre me dizia, mamãe, a senhora fique tranqüila, que eu vou arrumar um marido.

JUCA

         E arrumou logo meia dúzia.

D. HELENA

Ah, mas agora é por toda a vida! O seu irmão é um rapaz muito distinto e muito inteligente.

JUCA

         Só distinto. Que, inteligente...

D. HELENA (Ao mesmo tempo)

E, quando a minha filha me disse, mamãe, a senhora vai conhecer o Eduardo, eu disse a ela, minha filha, você é uma moça muito distinta e muito inteligente, e eu tenho certeza que, desta vez, você vai ser feliz, viu, minha filha?

JUCA

         E é mesmo, né, D. Helena?

D. HELENA (Ao mesmo tempo)

Quando a minha filha era mocinha e começou a trabalhar, todas as freguesas do salão me diziam, D. Helena, a senhora tem uma filha muito distinta e muito inteligente. E ela só saiu daquele salão por muita inveja das colegas, sabe? Eu até quis falar com o dono, mas ela não deixou. Bobagem, mamãe. Não foi nada, não. Eu até tava precisando de umas férias. A minha filha sempre foi uma moça de muito trabalho, sabe? Em todos os salões que trabalhou, foi sempre a mesma coisa. (Limpa o cinzeiro da banca.) Só saía por causa das colegas.

JUCA

         E dos maridos das freguesas, né, D. Helena?

D. HELENA

Ah, mas agora é por toda vida! (Arruma as ferramentas em cima da banca.) O seu irmão é um rapaz muito distinto e muito inteligente, e eu tenho certeza que ele vai tirar o alvará e abrir a oficina, se Deus quiser. (Juca levanta-se e apaga o cigarro no cinzeiro que D. Helena acaba de limpar.) Quer alguma coisa, Juca? Eu trouxe um quilo de carne que é uma beleza. Seu Honorato é uma pessoa muito distinta...

JUCA

         E muito inteligente.

D. HELENA (Ao mesmo tempo)

         E muito inteligente e também gosta muito do seu irmão.

JUCA

         Também, né, D. Helena?!

D. HELENA

Por isso, eu sempre digo à minha filha, minha filha, quando a gente encontra um homem como seu marido, a gente deve estimá-lo, minha filha. Fiquei viuva com a idade de trinta anos... (Escutam-se latidos de cachorro nos fundos. Juca senta-se na cama.) Deve ser o Eduardinho.

D. HELENA pega a sacola e a vassoura e corre para a cozinha.

VOZ DE HOMEM

         Sai. Sai, Bolinha. Sai pra lá, sai. Olha que eu te piso sem querer.

D. HELENA (Entrando na cozinha)

         O seu irmão é um rapaz muito inteligente, sabe?

JUCA (Recostando-se na cama)

         Só ele é que não sabe.

Eduardo entra pela porta da cozinha, carregando a pasta das ferramentas. Vem cansado.

D. HELENA (Tentando pegar a pasta)

         Me dê. Me dê, Eduardinho.

EDUARDO

Precisa, não, D. Helena. Precisa, não. (Coloca a pasta em cima da mesa, olha em redor e, depois, abre a porta do quarto.) A Marcinha saiu?

D. HELENA

Foi no armazém. Mas eu disse a ela, minha filha vá e volte logo, que seu marido deve tar chegando, ouviu, minha filha? (Eduardo anda em direção à cozinha.) Tá com fome, Eduardinho?

EDUARDO

         Não. Não. Ainda é cedo.

Eduardo entra na cozinha.

D. HELENA (Entrando na cozinha)

         Quer que passe um bife, Eduardinho? Eu trouxe um quilo de carne que é uma beleza.

EDUARDO (Na cozinha)

Não. Não. Obrigado, D. Helena. Ainda é cedo. (Entra com um copo de água na mão e pára junto da banca.) Cadê a minha planta? (A Juca) Você...

JUCA

         E eu sei?

D. HELENA

         Fui eu, Eduardinho. Fui eu. Coloquei na janela. Precisava refrescar.

Eduardo rega o vaso e leva-o para a banca.

EDUARDO (A Juca)

Não é uma beleza? (D. Helena aproxima-se. A D. Helena.) Igualzinha às de mamãe.

D. HELENA (Pegando o copo)

         Você é um rapaz muito inteligente.

EDUARDO (A Juca)

         Veio cedo hoje. Aconteceu alguma coisa?

JUCA

         Nada. Fechei um bom negócio e vim mais cedo.

D. HELENA

         Você também é um rapaz muito inteligente.

EDUARDO

Hoje, eu tive um dia desgraçado. Fui receber de três fregueses e nenhum me pagou.

JUCA

         Eu já disse a você o que você tem que fazer. Eu não fio de ninguém.

EDUARDO (A D. Helena)

         Será que a Marcinha vai demorar?

D. HELENA

Ela só foi buscar arroz, Eduardinho. E eu disse a ela, minha filha, não demore, não, que seu marido já deve tar chegando, ouviu, minha filha? Quer que passe um bife, Eduardinho? Eu trouxe um quilo de carne que é uma beleza.

EDUARDO

         Não. Não. Obrigado, D. Helena.

Eduardo começa a trabalhar. JUCA pega uma revista e deita-se.

D. HELENA (Entrando na cozinha)

Eu sempre digo a ela, minha filha, seu marido é um rapaz muito distinto e muito inteligente, e você deve estimá-lo como ele merece, ouviu, minha filha? Quando a gente encontra um homem como seu marido, minha filha...

Escutam-se latidos de cachorro nos fundo.

VOZ DE MULHER

         Vem, Bolinha. Tadinha da minha filhinha. Vem com a mamãe, vem.

D. HELENA (Na cozinha)

         Você demorou, minha filha.

VOZ DE MULHER (Na cozinha)

         Vem cá, Bolinha. Deita aqui, deita.

D. HELENA (Na cozinha, ao mesmo tempo)

         Minha filha, seu marido...

VOZ DE MULHER (Na cozinha)

         Mamãe, a senhora quer me chegar esse cobertor?

D. HELENA (Na cozinha)

         Minha filha, você demorou.

VOZ DE MULHER (Na cozinha)

         No Seu Nacib não tinha arroz. Tive que ir no Seu José.

D. HELENA (Na cozinha)

         Você foi no Seu José, minha filha?

VOZ DE MULHER (Na cozinha)

Quieta aí, Bolinha. Deita aí, diabo! A senhora não viu o arroz aí, mamãe?

Márcia entra na sala.

MÁRCIA

         Claro que eu fui no Seu José.

Márcia entra no quarto.

D. HELENA (Entrando no quarto)

         Mas, minha filha...

MÁRCIA (No quarto)

Mamãe, será que a senhora é boba? Comigo é D. Márcia isto, D. Márcia aquilo. Não tem dessas intimidades, não. Comigo é assim. Gostou, gostou, não gostou, dane-se.

D. HELENA (No quarto)

         Você é uma moça muito inteligente, minha filha.

MÁRCIA (No quarto, em voz mais alta)

         Com a minha cara só se engana quem quer.

JUCA (A Eduardo, em voz alta)

         Você não tá com fome, não?

Márcia entra e arruma a mesa. D. Helena entra na cozinha.

MÁRCIA

         Mamãe, a senhora, hoje, fica aqui, viu?

D. HELENA (Na cozinha)

         Não fico, não, minha filha.

MÁRCIA

         Mamãe, a senhora não precisa...

D. HELENA (Na cozinha)

Preciso, sim, minha filha. Você sabe que eu sou uma senhora de muito respeito e nunca deixei a minha casa só. Fiquei viuva...

MÁRCIA

         Mamãe, a senhora, hoje, vai ficar aqui. Eduardo. Ô Eduardo!

EDUARDO

         Fica aqui, D. Helena.

D. HELENA (Na cozinha)

         Eu nunca deixei a minha casa só, Eduardinho.

EDUARDO

         Janta com a gente.

D. HELENA (Na cozinha)

Eu já deixei o jantar pronto, Eduardinho. (Entra na sala, com a bolsa.) Eu sempre deixo o jantar pronto.

MÁRCIA (Tirando a bolsa da mão de D. Helena)

         Ora, mamãe, que bobagem. Parece até que a senhora tem filha moça.

EDUARDO

         Fica, D. Helena.

D. HELENA (Pegando a bolsa)

         Não fico, não, Eduardinho.

EDUARDO

         Eu levo a senhora.

D. HELENA

         Precisa, não, Eduardinho. Eu já tou indo.

EDUARDO (Levantando-se)

         Eu levo a senhora depois.

D. HELENA

         Não. Não, Eduardinho. Eu já tou indo.

MÁRCIA

Eduardo, será que você não tá vendo que mamãe não quer ficar? Que mania a sua de sempre obrigar as pessoas! (Eduardo senta-se.) Mamãe, eu levo a senhora depois do jantar.

Márcia entra na cozinha. D. Helena entra também.

D. HELENA (Na cozinha)

Minha filha, o seu lugar é aqui, ao lado do seu marido. (Na porta.) Ouviu, Eduardinho? O lugar dela, agora, é aqui.

JUCA

         E por toda a vida, né, D. Helena?

D. HELENA

Ah, é! Agora é por toda a vida! (Entra na cozinha) Não é, minha filha?

MÁRCIA (Na porta)

         Juca, quer fazer o favor de não amolar a minha mãe?

D. HELENA (Na cozinha)

Deixe, minha filha. Deixe. Ele é um rapaz muito distinto e não tá me amolando, não.

MÁRCIA (Entrando na cozinha)

         Mamãe, a senhora...

D. HELENA (Na cozinha)

Minha filha, lembre-se, sempre, do exemplo da sua mãe. Fiquei viúva...

MÁRCIA (Na cozinha)

Vamos, mamãe! (Entra com a bolsa de D. Helena na mão e abre a porta da rua.) Mamãe!

D. HELENA (Entrando)

         Eu vou, minha filha. Eu vou. Boa noite, Eduardinho.

MÁRCIA

         Mamãe!

D. HELENA

         Boa noite, Juca.

EDUARDO

         Boa noite, D. Helena.

JUCA

Boa noite, D. Helena. (Márcia e D. Helena saem.) Só você mesmo, meu irmão.

Um tempo. Márcia entra e fecha a porta.

MÁRCIA

Ora veja! Ir, agora, lá pros cafundós do Judas, eu, hem? Nem que tivesse em casa filha moça, quanto mais. (Entra na cozinha.) E você, sua boba? Tá com fome? Tá com fominha, tá? Eduardo, você já deu comida à Bolinha? Eduardo! (Entra.) Você não escutou o que eu falei?

EDUARDO

         Eu tou trabalhando, Marcinha.

MÁRCIA

E eu? Será que eu tou brincando? (Indo para a cozinha.) Quer fazer o favor de largar isso aí, que já não são mais horas de ninguém trabalhar? (Juca ri, com deboche. Márcia pára na porta.) E você? Quê que tá rindo aí, feito um palhaço? Hem?

JUCA

         Tou rindo da palhaçada.

MÁRCIA

Infeliz! Se você tivesse um pingo de vergonha nessa cara, viu? (Juca ri de novo. Márcia corre para ele.) já tinha ido embora daqui há muito tempo. (Tropeça numa caixa junto da banca e quase cai.) Merda de casa! Nunca que se tem sossego aqui dentro! (Entra na cozinha.) Quieta aí, diabo! Ou você também pensa que aqui tem empregada? Aqui não tem empregada, não!

         APAGA A LUZ