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CUNHA DE LEIRADELLA
 

APONTAMENTOS PARA UM
TEATRO DE QUESTIONAMENTO

 

O questionamento como forma de conhecimento

1

Na Natureza, a perfeição é sempre inversamente proporcional ao Absoluto. Quanto mais eu penso, quanto mais eu raciocino, quanto mais eu pergunto, quanto mais eu questiono, mais a minha consciência me torna relativo e mais o Absoluto se distancia.

2

O maior progresso do ser humano sempre foi a velocidade. Durante milênios o padrão foi o andar. As distâncias eram grandes e os homens esperavam chegar ao fim da vida, chegando ao fim dos caminhos. A Humanidade caminhava lentamente e percorria devagar as terras descobertas.

3

Hipócrates e Galeno não curavam resfriados e Aristóteles também não sabia que, se todos os metais conhecidos eram sólidos, nem todos os metais a conhecer teriam que ser sólidos. E se Protágoras desconhecia que o Universo se expandia entre cinco e dez por cento em cada bilhão de anos e tinha alguns buracos negros (1), sabia, pelo menos, que o homem era a medida de todas as coisas.

4

Hoje, eu vôo pelo Cosmo e meço todas as distâncias, e a Terra ficou menor do que o menor dos caminhos que Protágoras percorria em Abdera. Mas nada mais conheço de mim do que ele conhecia de si mesmo. E também não curo resfriados. Sei, apenas, que nem todos os metais são sólidos e presumo que o Universo é composto por 100 bilhões de galáxias e atinge a massa de 316 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 quilogramas (2).

5

Configuro o Universo numa equação matemática e imagino que a velocidade a ser atingida pelos taquíons, quando forem descobertos (3), será maior do que a da luz. Mas, na contrapartida, também destruo tudo que faço na razão direta da velocidade dos meus cálculos.

6

Da machadinha acheuliana do homo erectus à espada e ao fuzil foram milênios e milênios de lento caminhar. Já do fuzil aos engenhos nucleares decorreram apenas alguns anos. O que milhões de homens fizeram com clavas, com espadas e com fuzis, eu faço, sozinho, com uma bomba. E em segundos.

7

Fissuro o átomo e esquadrinho quasares a 14 bilhões de anos-luz, e a clonagem humana já não é mais ficção. Mas a mim mesmo nada de positivo acrescentei. Apesar da minha pompa e circunstância apenas consigo estar presente. Como estão presentes as pedras que piso nos caminhos. Só que essas pedras existem desde o começo do tempo e continuarão existindo até ao fim do tempo, e eu desaparecerei quando morrer. Cada vez mais só e com mais medo, e muito mais angustiado. Porque, a cada dia que passa, apesar do que me dizem que sou, mais e mais sou obrigado a justificar que ainda sou. Ou na solidão do suicídio ou no divã do analista.

8

Apesar de todas as certezas e de todas as afirmações categóricas, tudo continua como era. A não ser eu, nada, na Natureza, sabe que nasceu para morrer. Os que sobrarem do próximo inverno nuclear morrerão como morria o meu bisavô das cavernas. Só que muito mais maciça e muito mais prosaicamente. Se não forem desintegrados ou envenenados pela atmosfera poluída, morrerão por falta de água ou por deficiência imunológica. E com a desvantagem de ter carregado a vida inteira, dentro de si, o seu medo, a sua angústia e a sua solidão. Na era do bilionésimo de segundo o meu próximo não existe. Não há tempo de encontrá-lo.

9

Dizem-me que sou a mais perfeita criação da Natureza. Mas eu sei que não sou. Eu sou, apenas, a mais iludida criação da Natureza. Um simples mosquito pousa no meu ombro e viaja de graça o tempo que quiser. E eu nem de graça posso viajar. Se entro num táxi, ou num ônibus, tenho que pagar. Ou, então, mato o motorista e tomo o lugar dele.

10

Na verdade, apesar de dizer que sei o que aconteceu no primeiro segundo após a grande explosão do Universo (Big Bang)(4) e esquadrinhar quasares a 14 bilhões de anos luz, cada vez menos sei de mim. Se há mais de dois mil anos me disseram, o homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são e das que não são enquanto não são (5), hoje apenas me sabem dizer, acerca daquilo de que se não pode falar, tem que se ficar em silêncio (6).

11

Eu existo como tudo existe. E, além de existir, também sou. Mas nem por isso permaneço. Quem permanece são as coisas que me cercam. E sem precisarem justificar-se. A sua própria eternidade as justifica. Além de comporem o espaço ainda existem no tempo. E eu não. Por isso, eu sou o que sou. O carregador dos mosquitos que pousam no meu ombro e viajam de graça o tempo que quiserem. Apesar de me dizerem que sou a mais perfeita criação da Natureza, além de carregador de mosquitos eu sou apenas um prisioneiro do volume. Se não fosse, viveria só no tempo. Seria eterno e não precisaria justificar-me.

12

Neste momento, a distância entre a minha janela e o topo da montanha que vejo na linha do horizonte delimita, exatamente, o meu campo de visão. Se eu subir a montanha, aparecerão outras montanhas e o meu campo de visão aumentará na razão direta da altura em que subi. Se eu pudesse subir infinitamente o meu campo de visão também aumentaria infinitamente. Entretanto, o alcance do meu olhar não dependeria da altura em que subi. Ele é finito. É como eu. Mesmo que eu pudesse aumentar, infinitamente, o meu campo de visão, isso não significaria que eu pudesse ver infinitamente.

13

Considerada a distância entre a machadinha acheuliana do homo erectus e os engenhos nucleares dos nossos dias, eu poderia dizer que abri as portas da perfeição. Passeio pelo Cosmo e revolvo o núcleo dos elementos com o mesmo desembaraço com que o meu bisavô das cavernas bebia nas fontes ou caçava nas florestas. Mas, apenas, a velocidade nos diferencia. Eu desapareço, como ele, a cada geração.

14

No início era a força e a distância do além. O pensamento não ultrapassava o próprio homem e a montanha limitava o fim do horizonte. O ato de viver reduzia-se a matar e a morrer. Sobreviviam os mais fortes e a morte era a recompensa dos vencidos. Mas a montanha foi escalada e o homem, nada mais tendo que olhar à sua frente, olhou à sua volta. E não viu nada e teve medo.

15

Foi, então, que o mundo se fendeu, e os mais medrosos criaram os ideais e os mais crédulos morreram em nome deles.

16

Um fosso separou as duas partes e, em cada margem, orgulhosos, os sobreviventes se proclamaram verdadeiros. Uns afirmando que a verdade pertencia ao indivíduo e outros afirmando que a verdade só poderia ser determinada pelo grupo. Mas o objetivo não era a verdade. Nem o indivíduo, nem o grupo. Era o poder. Atravessar o fosso e esmagar o inimigo.

17

No estágio em que se encontra a Humanidade (as afirmações cada vez mais categóricas e o ser humano cada vez mais solitário) só um fator permanece inalterado. A angústia do fim de tudo. A existência depende, apenas, de um botão. Que alguém, algum dia, apertará em nome da paz. Portanto, ou se fortalece a parte para fortalecer o todo, ou o todo sucumbirá.

18

A única forma de fortalecer o homem é dar-lhe consciência. Fazer dele um ser-definido . A consciência do homem é o seu conhecimento. O que ele conhece ele não teme.

19

Com os engenhos nucleares já em contagem regressiva e os clones já invadindo a Natureza, não importa mais que o ato de fazer Arte seja um ato individual ou um ato social. Ele terá que ser um ato de conhecimento ou será inócuo. Ou o homem conhece e questiona os seus limites, ou jamais ultrapassará as fronteiras do seu medo. Na aceitação ou na revolta não existe conhecimento. Existe, apenas, passividade ou negação.

20

Só no questionamento existe conhecimento. Para questionar é necessário, antes de tudo, conhecer. E, conhecendo, o homem pode transformar. A si mesmo e à realidade que o cerca.

 

 

(1) Stephen W. HAWKING, Uma breve história do tempo, 1988, pp. 75 e 138.

(2) Isaac ASIMOV, A medida do universo , 1986, p. 179.

(3) Ibid , p. 331.

(4) Stephen W. HAWKING, ibid , pp. 165-168.

(5) PROTÁGORAS, Verdade, transcrito por JOSÉ AMÉRICO MOTA PESSANHA, Sócrates, 1996, p.14.

(6) Ludwig WITTGENSTEIN, Tratado Lógico-Filosófico, 1995, p. 142.