CUNHA DE LEIRADELLA

A SOLIDÃO DA VERDADE

ROMANCE

II PARTE - A SOLIDÃO

Vinte e um

Andréa dorme, deitada de bruços, e o cabelo espalha-se no travesseiro, e os braços estendem-se ao longo do corpo e tapam os seios, comprimidos no colchão. As pernas estão abertas e os pêlos do sexo aparecem entre as coxas e sobem pelas nádegas, como penugem, e nas costas brilham gotas de suor. Já dorme há algum tempo e eu estou recostado na cabeceira da cama e fumo o terceiro cigarro desde que Andréa adormeceu. São cinco e quarenta e oito da manhã e, apesar de cansado, não tenho sono. Se tivesse apagado a luz e o cigarro, talvez também já tivesse adormecido. Mas não quero dormir. Vamos ficar aqui só mais algumas horas e, adormecer agora e acordar na hora da saída, seria como roubar felicidade de mim mesmo. Entramos neste quarto sexta-feira à noite e quase não saímos. Mas foi bom. Fizemos tudo que pudemos e, de uma forma ou de outra, construímos o nosso mundo. Não sei se as fundações agüentarão, mas cavamos o mais fundo que pudemos. Se foi suficiente ou não, não sei. Mas Andréa está dormindo e a tranqüilidade do sono já é uma resposta. Na contrapartida, eu estou acordado e pensando, e a minha insônia também é uma resposta.

Não sei o que ainda poderá acontecer. A minha vida sempre foi um constante andar-à-volta e os meus pés estão até redondos de tanto caminhar ao meu redor. Estou com 57 anos e nunca fiz uma opção. Nunca tive motivos. Sempre escorreguei no tempo como quem sobe uma ladeira. Ansiando chegar ao cimo só para descansar do outro lado. Nunca cheguei, mas também nunca recuei. Nunca pude recuar. Se a cada passo que dava mais caminho tinha para subir, atrás de mim só ficavam boqueirões. E continuava. Cada vez mais cansado e com mais medo, mas sabendo que não poderia retornar. Então, Andréa apareceu e tudo mudou. De repente, estava no cimo da ladeira e já podia descansar. Atrás de mim, os boqueirões tinham sumido e, à minha frente, o caminho era plano. Já tinha um motivo e a opção estava feita. Ser ou não ser, não é a questão. A questão é poder ser. E, com Andréa, eu sei que poderei.

Andréa vira de costas e os seios estão úmidos, e a pele brilha na luz crua da lâmpada da mesa-de-cabeceira. O cabelo parece uma teia espessa, colada na testa e no nariz, e ela respira fundo e acomoda-se no colchão. Estende os braços sobre o corpo e a mão direita aninha-se entre as coxas e tapa os pêlos do sexo. Os seios unem-se e ficam salientes, e os vergões por baixo do direito ficam mais amarelados e mais fortes. O rosto está cortado de vincos e as olheiras parecem pinceladas de grafite. A pele do pescoço continua vermelha, e a mordida por cima do seio esquerdo escureceu e ficou cor de violeta. Mas a respiração é compassada e tranqüila, e ela parece, realmente, descansar. Apago o cigarro e fecho os olhos, e recosto a cabeça na cabeceira da cama. Sei que ainda tenho muito que mudar, mas já não tenho medo da mudança. O importante foi ter chegado ao cimo da ladeira. E, desde que Andréa permaneça do meu lado, não quero nem saber quanto tempo ainda gastarei para andar o resto do caminho. Junto de Andréa o tempo não existe. Os ponteiros do meu relógio são apenas enfeites e olhar para eles é como olhar a paisagem. Ela só existe porque olho para ela.

Os pássaros contam os ovos dos ninhos como os índios velhos contam os pés das centopéias. Um, dois, três, muitos. Foi assim, também, que sempre contei os anos da minha vida. Um, dois, três, muitos. E todos obrigatórios. A minha vida, apesar de rodar sempre à minha volta, nunca foi, sequer, um círculo vicioso. Para círculo, sempre lhe faltou plenitude. Para vicioso, sempre lhe faltou profundidade. E esta foi a tragédia. Nunca tive coragem para nada. Nem, sequer, para me suicidar.

Quando era menino gostava de ficar só. Ia para os montes com os outros, mas não acamaradava com eles. Enquanto as cabras e as ovelhas pastavam e eles deitavam com as namoradas debaixo dos silvedos, eu subia pelas encostas. Eles gostavam de contar o que faziam e queriam que eu também contasse. Mas eu não tinha o que contar. A minha mãe era só minha. Às vezes, as moças me chamavam, mas nunca fui com nenhuma. Nunca precisei. Preferia olhar as águias, planando lá no alto. E, quando os olhos cansavam e fechavam, eu não via mais as águias. Via os seios da minha mãe. Por isso, gostava de ficar só. Nunca estava só.

Sinto a mão de Andréa deslizar na minha coxa e abro os olhos. Andréa sorri e tira o cabelo do rosto, e tapa a boca com a mão. Acaba de bocejar e espreguiça-se, e os seios esparramam-se no peito. Abre as pernas e estende-as, e os pêlos do sexo aparecem por entre as coxas e somem no lençol.

- Não dormiu, não?

- Tava sem sono.

 
 
 

Cunha de Leiradella
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