CUNHA DE LEIRADELLA

A SOLIDÃO DA VERDADE

ROMANCE

II PARTE - A SOLIDÃO

Vinte e oito

Ontem foi um dia fodido. O mais fodido da minha vida. Sexta-feira, 6 de dezembro de 1991. Também foi numa sexta-feira que deixei a minha mãe e tive que vir para o Brasil, e tenho certeza que também disse a mesma coisa. Ontem foi um dia fodido. O mais fodido da minha vida. Só que havia uma diferença. Naquela época eu tinha quinze anos e hoje tenho cinqüenta e sete.

Andréa entrou no Mangabeiras no dia 5 de agosto e, até ontem, só não estivemos juntos duas noites. Na terça-feira, dia 3, e na quinta-feira, dia 5 de dezembro. Na terça-feira, porque o diretor comercial chegou do Rio de Janeiro e me prendeu numa reunião até de madrugada, e, na quinta-feira, porque Andréa disse que tinha que sair com a mãe e não sabia a que horas voltariam. Nem me deixou, sequer, levá-la em casa. Avisou-me por telefone, pouco antes do almoço. Ainda tentei dizer-lhe que as levaria e esperaria o tempo que fosse necessário, mas não adiantou.

- Eduardo, entende. A minha mãe pediu pra eu ir com ela, e eu não posso chegar e dizer, o Eduardo vai com a gente, viu, mãe? Por favor, Eduardo, não é por mim, não, é minha mãe. Mas, amanhã, a gente se vê, tá?

Andréa está cada vez mais diferente. Continua não usando sutiã, continua adorando os presentes que lhe dou, continua jantando na Casa dos Contos ou na Brunella, continua dizendo que me quer, mas eu não sei mais se me quer. Se soubesse, mesmo que ela me mentisse, nenhuma mentira me faria duvidar. Mas não sei e não consigo acreditar.

Passei o dia trancado na sala e pedi a D. Beth que comprasse todas as revistas que encontrasse. Pelo menos, teria com que passar a noite. Ou o que sobrasse dela. D. Beth trouxe mais de meia dúzia e um chá de camomila. Agora, sempre que me vê tenso, D. Beth traz chá de camomila.

- Quem gosta de verdade, é assim mesmo, Sr. Eduardo. Às vezes, a gente sofre muito. Mas vale a pena, o senhor sabe? Se a gente fosse feliz o tempo todo, não ia nem saber o que era ser feliz.

Deitei cedo, mas só adormeci de madrugada, com dois Lexotan. Não tomava calmantes desde agosto, desde que saía com Andréa, e não acordei bem. Não tomei café e não fiz a inspeção diária do hotel. Fui para a minha sala e fumei dois cigarros, e D. Beth chegou e trouxe chá de camomila. Tomei dois goles e acendi outro cigarro, e a cabeça pareceu explodir. Não tinha passado na Recepção e Andréa também não tinha telefonado. Telefonei, mas ela não estava. Ainda não tinha chegado.

Desliguei e pensei no que poderia ter acontecido. Não era a primeira vez que Andréa chegava atrasada, mas foi a primeira vez que não quis sair comigo. E tudo por causa da mãe. Filha da puta. Não fosse Andréa ter saído com ela e eu não estaria deste jeito. Filha de uma puta.

- Alô?

- Andréa tá?

- Quem deseja falar com ela?

- Eduardo.

- Bom dia, Sr. Eduardo. Quem tá falando aqui é a mãe dela, e Andréa pediu pra avisar que teve que sair. Uma amiga bateu o carro e ela teve que ir prá casa dela. Mas disse que já tá tudo bem e que liga pro senhor logo que puder, viu?

- A senhora sabe onde ela tá?

- Não sei, não. Mas ela disse que...

- A senhora sabe o nome dessa amiga?

- Também não sei, não. Mas Andréa disse que é pro senhor não se preocupar, não, que ela liga logo que puder.

- A que horas foi o acidente, a senhora sabe?

- A hora certa, certa, eu não sei, não. Mas foi de madrugada. Mas Andréa disse que é pro senhor não se preocupar, não, que ela liga logo que puder, viu?

- Obrigado.

Se, pelo menos, soubesse o nome da amiga, D. Beth descobriria nos hospitais. Mas não sabia e o jeito era esperar. D. Beth trouxe mais chá, mas não tomei. O que eu queria era Andréa não era chá de camomila. Fumei até a boca amargar e a cabeça estourar, e, ao meio dia, Andréa telefonou.

- Oi. Sou eu.

- Tá onde?

- Tou aqui, na casa da Bia. Mas já tá tudo bem, viu? Preocupa, não.

- Onde que...

- A Bia ainda tá com muita dor e eu ainda vou ficar mais um pouco. Mas, depois, vou pra casa e te ligo, tá?

- Andréa...

- Preocupa, não, bobo. Logo mais eu ligo, tá? Tchau.

Chamei D. Beth e pedi um comprimido de Anador. D. Beth trouxe dois e mais chá de camomila, e, meia hora depois, a dor de cabeça abrandou. Mas só a dor. O mal-estar continuou. Subi para o apartamento e deitei. Mas não consegui descansar. Andréa não ligava por quê? Por quê, puta que pariu? Tomei um Lexotan e peguei uma revista, mas nem as fotos enxergava. Por quê que Andréa não liga, puta merda? Ligou, mas eram quase duas horas.

- Oi. Sou eu. Ainda tou aqui. A Bia ainda tá com muita dor e pediu pra eu olhar o negócio do seguro.

- Me dá o endereço que eu...

- Eduardo, eu já falei. A Bia pediu...

- Andréa...

- Preocupa, não. Às seis eu ligo. Tchau.

Filha da puta. Desci para a minha sala e mandei D. Beth bloquear todas as chamadas, e tentei concentrar-me no trabalho. O tabuleiro dos despachos estava cheio e quanto menos pensasse, melhor. Mas não valeu de nada. Não deixei de pensar e não consegui trabalhar. Tudo me incomodava. O fumo do cigarro, o barulho do ar refrigerado, a lycra da cueca, o botão de rosa no solitário, tudo. Até o sol que entrava pela janela eu queria que não entrasse. Não estava bem, nem estava calmo, e, a cada segundo que passava, piorava. Quanto mais pensava em Andréa mais olhava para o relógio, e quanto mais olhava para o relógio mais pensava em Andréa. E quanto mais pensava em Andréa menos os ponteiros andavam. D. Beth trouxe mais chá de camomila e quase a mandei à puta que pariu.

O tempo é uma merda. Não tem passado, nem futuro, mas eu só falo do tempo que passou ou do tempo que há de vir. Por isso, gostaria de criar o meu tempo. Pelo menos, poderia mudar o meu presente. Mas não posso e fico péssimo. Quero Andréa e não sei se a tenho, e a minha vida é só isto. Esperar que ela me queira e sonhar que ela me quer.

Pedi a D. Beth que me chamasse pelo bip, caso Andréa telefonasse antes das seis, e saí. Tinha quatro horas pela frente e a cidade inteira à minha volta. Mas o que eu queria, realmente, é que já fossem seis horas e Andréa telefonasse. Atravessei a praça e parei na esquina da Avenida Alvares Cabral com a Avenida João Pinheiro. Qual delas? O sinal abriu e todos correram, e eu fui no meio deles. Avenida João Pinheiro. E se um daqueles carros não tivesse freado? Será que Andréa iria ao meu enterro?

Tudo isto é bobagem e eu sei que é bobagem. Mas também era bobagem estar ali e não estar na minha sala. Tudo é bobagem. Quero Andréa e não sei se ela me quer, e estou na Avenida João Pinheiro como poderia estar em qualquer outro lugar. A vida é isto. Quero saber sempre o que não sei e só penso no que não tenho.

Cheguei à Praça da Liberdade e tudo continuou. Outro sinal abriu e todos correram, e eu fui, outra vez, no meio deles. Não tinha nenhum lugar para onde ir mas, pelo menos, gastava tempo. Andréa tinha dito, às seis eu ligo, e o importante era estar no hotel antes das seis. O resto... Mas que resto? Se metade do mundo morresse e Andréa se salvasse, alguma coisa mudaria na minha vida? E se eu morresse, que importância teria a minha morte para aqueles merdas que passavam por mim e não me viam, mas me empurravam se eu parava, sem querer, na frente deles?

Parei na porta do cinema Pathé e olhei os cartazes, e duas moças me olharam e riram. Não me importei. Pelo menos, alguém olhava para mim e me notava. Pensei aproximar-me, mas as moças entraram e não deu tempo. Pensei entrar também e sentar ao lado delas, mas também não deu tempo. Uma mulher trombou comigo e os embrulhos rolaram na calçada. Pedi desculpas e apanhei os embrulhos, e a mulher xingou um palavrão e fez sinal para um táxi. O táxi parou e ela entrou, e eu continuei na calçada.

Voltei a olhar os cartazes e lembrei das duas moças. Mas não entrei no cinema. Provavelmente, não haveria mais lugar ao lado delas. Ou, então, elas não lembrariam mais de mim. Andei até junto do meio-fio e olhei as duas pistas da avenida e a calçada do outro lado. Na esquina ficava a Toulon e, na minha frente, a Status e uma banca de jornais. Poderia olhar roupas nas vitrines da Toulon ou folhear livros e revistas na Status. Ou não fazer nada e apenas andar pela calçada. O importante era não pensar em Andréa, nem no tempo que faltava. O sinal abriu e todos correram, e eu fui, mais uma vez, no meio deles. Mas nem cheguei ao outro lado. Quando parei no canteiro que divide as duas pistas Andréa saía da Toulon, com Érika e com Vanini, rindo e carregada de sacolas. Como se eu não existisse. Filha da puta.

Não sei se morrer é assim. A gente fica tonto e parece que vai sufocar e desmaiar, e se agarra a qualquer coisa. Agarrei o tronco de uma árvore, mas não sufoquei, nem desmaiei. Só fiquei oco. Ainda bem que morrer não é assim.

Deixei-os atravessar a Avenida Getúlio Vargas e fui atrás. Não sabia se queria ir, mas nem parei para pensar. Apenas fui. Na esquina da Rua Antônio Albuquerque, Vanini pegou as sacolas de Érika e Érika abraçou Andréa. Já não lembro o que pensei. Aliás, nem sei se pensei. Estava ali só porque tinha subido a Avenida João Pinheiro por acaso e se estivesse em qualquer outro lugar teria sido a mesma coisa. O que estava acontecendo teria acontecido do mesmo jeito e o fato de eu ter visto nada mudaria.

Eles seguiram até à esquina da Rua Rio Grande do Norte e atravessaram a trincheira. Andréa sempre rindo, como se eu não existisse. Filha da puta. Passaram a Rua Professor Morais e mudaram de calçada, e Vanini parou junto de um carro branco, conversível. Érika encostou-se no capô e puxou Andréa e abraçou-a, e Vanini guardou parte das sacolas. Depois, continuaram. Mas não pude segui-los. O sinal da Avenida do Contorno abriu e os carros e os ônibus pularam na minha frente. Quando pude atravessar tinham sumido.

A rua terminava numa praça. Olhei todos os cruzamentos e as calçadas, e voltei. Não podia fazer mais nada. O que estava acontecendo continuaria acontecendo e, por mais desesperado que eu ficasse, de nada valeria. Agora, só me restava voltar para o hotel. Pela Avenida do Contorno ou pela Rua Antônio Albuquerque? Foda-se. O mundo que se fodesse e eu também. E Andréa que morresse. Não foi por acaso que segui pela Avenida João Pinheiro? Então, foda-se. Os acasos que se fodessem e eu também. Por acaso gerenciava o Mangabeiras que por acaso precisou de uma recepcionista bilíngüe. Que por acaso eu tinha entrevistado e por acaso tinha seios grandes e cabelo cor de cobre. E por quem por acaso eu me tinha apaixonado. Mais acasos? Se Andréa mentisse só por acaso por acaso estaria tudo bem. Mas Andréa não mentia por acaso e por acaso estava tudo mal. Fodam-se os acasos. Todos eles e eu também.

A garganta apertou, de repente, e os ouvidos começaram a zumbir. Olhei à volta. Na esquina tinha um bar. Foda-se a Avenida do Contorno e foda-se a Rua Antônio Albuquerque. O que eu precisava era um conhaque. Talvez dois ou até três, e um caminhão desgovernado que descesse a Avenida do Contorno e arrasasse aquele bar. Comigo dentro.

Entrei e parei na porta do salão. Já não precisava, nem queria estar no hotel às seis horas, e estava cheio de chá de camomila. Se D. Beth tivesse seios grandes e cabelo cor de cobre... Se D. Beth tivesse seios grandes e cabelo cor de cobre, não seria D. Beth, puta que pariu. Eu é que era um idiota. Entrei no salão e senti-me ainda mais idiota. Os três conversavam e riam, sentados junto da parede. Andréa estava de costas e não me viu, mas Érika viu. Foda-se. O bar não era meu, nem era deles, e talvez o caminhão já estivesse descendo a Avenida do Contorno, desgovernado e sem freios. Vanini levantou-se e veio ao meu encontro.

- Prazer, caro.

Tinha os olhos vermelhos e injetados, e parecia não ter dormido. As minhas mãos tremeram e quiseram pular na minha frente, e eu quase deixei que pulassem. Mas ele abraçou-me e arrastou-me até à mesa, e Érika também me cumprimentou.

- Como está?

E se as minhas mãos resolvessem quebrar a mão dela? A mão de Érika continuava estendida e eu deixei que as minhas mãos resolvessem. Olhei-as e elas sorriram, tranqüilas. Sorri também. Se as minhas mãos estavam bem e estavam calmas, eu também estava bem e estava calmo. Cumprimentei Érika e Vanini tirou as sacolas da cadeira, e afastou-a da mesa.

- Senta, caro.

Caro, o caralho. Mas sentei-me. Andréa tinha o maço de cigarros na mão e acendeu um sem me olhar. Érika sorriu e apontou a garrafa de Chivas Regal.

- Uísque?

Não respondi e Vanini voltou-se, e chamou um garçom. Finquei os cotovelos na mesa e apoiei o queixo nas mãos, e olhei Andréa outra vez. Ela tinha os olhos fechados e puxava uma tragada, e a pele do pescoço estava manchada de vermelho. Como tinha ficado manchada no Ipê Amarelo. Filha de uma puta.

- E a Bia? Melhorou?

As minhas mãos tremeram, mas não me preocupei. Se tivesse que acontecer alguma coisa, já teria acontecido. Conheço as minhas mãos. Andréa continuou calada e de olhos fechados, e puxou duas tragadas profundas e seguidas. Soprou o fumo com força e, de repente, começou a coçar o peito, por baixo do seio direito. Não me importei. Naquele momento, era até engraçado ver como é que ela conseguia coçar com tanta força. O garçom chegou e Vanini pediu uma garrafa de vinho, e Érika acendeu um cigarro e olhou-me.

- Falávamos do Eduardo.

Também tinha os olhos vermelhos e injetados, e também parecia não ter dormido.

- Andréa está no nosso reveillon.

Ainda de olhos fechados Andréa parou de coçar e puxou uma tragada profunda. O garçom trouxe o vinho e serviu. Bebi um gole. Se, para Henrique IV, Paris valia uma missa, para mim, aquele encontro também valia um Almaden. As minhas mãos riram quando escutaram o que pensei, mas não me importei. Eu não era Henrique IV.

- E a Bia? Também vai?

Andréa não respondeu, nem abriu os olhos, e eu peguei um cigarro. Mas as minhas mãos não me deixaram acendê-lo. Olharam a palavra Marlboro durante algum tempo e, de repente, rasgaram a mortalha e esfarelaram o tabaco em cima da toalha. Não sei se as minhas mãos assustaram Andréa, mas ela esmagou o cigarro no cinzeiro e olhou-me. Também tinha os olhos vermelhos e injetados, e também parecia não ter dormido. Coitada da Bia. Pegou o maço de cigarros e o isqueiro, e saiu sem se despedir e sem levar as sacolas. Atravessou o salão correndo e as minhas mãos foram atrás. Mas só a alcançaram na calçada.

- Me larga. Eu vou gritar.

Não estava bem, nem estava calmo, mas consegui controlar as minhas mãos. Uma rua estreita cortava a ponta do jardim e formava uma ilha de terra nua, com um flamboiã grande no meio. Arrastei Andréa para lá e encostei-a no tronco.

- Tá machucando.

Tive vontade de liberar as minhas mãos, mas controlei-me. Naquele momento, era mais importante eu saber do que liberar as minhas mãos. E eu tinha muito que saber. Saber da Bia, saber dos perfumes, saber do Perlutan, saber de tudo.

- E a Bia? Ainda tá passando mal?

Andréa fechou os olhos e não respondeu, e as minhas mãos retesaram-se e os dedos endureceram. A garganta apertou e os ouvidos começaram a zumbir, e tive que fazer um esforço enorme para que os meus dedos não esmagassem os ossos daquele pescoço manchado de vermelho. E ficamos assim, Andréa, de olhos fechados e encostada no tronco do flamboiã, e eu, segurando os braços dela e tentando controlar as minhas mãos. Não sei quanto tempo passou, mas os dedos relaxaram e Andréa abriu os olhos e olhou-me.

- Por quê que você não me larga de vez, hem?

Não respondi. Não podia. A garganta apertava tanto que doía, e dentro dos ouvidos rolavam trovoadas e tambores. Mas, mesmo que pudesse, não teria respondido. Agora, já não interessava mais saber da Bia, dos perfumes, do Perlutan, de nada. Eu não estava mais naquela praça, nem Andréa estava na minha frente. Eu estava no cu do mundo e, na minha frente, mil portas de cinemas se abriam e me convidavam para entrar. Baixei a cabeça e apertei as mãos até os ossos doerem. Uma coisa é a gente deduzir. Outra, é a gente conhecer. Quando se deduz ainda resta uma esperança. Quando se conhece acaba tudo. Enquanto Andréa me mentia eu apenas deduzia. Mas, agora, aquele por quê que você não me larga de vez, hem?, não era dedução. Era conhecimento. Fechei os olhos. Os carros e os ônibus desciam a Avenida do Contorno e os freios chiavam na ladeira, mas parecia que o barulho era só eco. Se me tivessem dito que estava morto, teria acreditado. Nada mais havia para dizer. Tudo que ainda pudesse ser dito já tinha sido dito. Tinha sido dito no Ipê Amarelo e tinha sido repetido, vezes sem conta, na Casa dos Contos, na Brunella, na Praça do Papa, no Dona Derna e até no Green Park, e não tinha adiantado. O nosso mundo não era nosso. Eu o tinha criado e ele só existia para mim. E também só existia porque eu precisava de Andréa. Como já tinha precisado das vias-sacras e dos cinemas.

- Eu já os conhecia, sim. E sabe pra onde fomos ontem? Fomos prum motel e fodemos a noite inteira. Satisfeito?

As palavras não foram ditas. Foram cuspidas, escarradas, e bateram nos meus ouvidos como socos. Assustado, abri os olhos. Andréa sorria, desafiadora, as pernas abertas e os punhos levantados, e olhava-me como se estivesse num ringue. Como se eu fosse o inimigo. Não reagi. Era tanto o ódio que via naqueles olhos que não havia como reagir. Nunca tinha pensado que Andréa me odiasse. Mas odiava. Agora, eu sabia que odiava. Aquele olhar e aquele esgar não enganavam. Tudo que era meu a irritava. E, qualquer que tivesse sido a causa e a profundidade da nossa ligação, agora não havia mais elos que nos prendessem. Até o corpo dela, tremendo e retesado, tinha ódio do meu corpo. A garganta apertou mais e os ouvidos estouraram, e o coração disparou e a vista escureceu.

Não sei o que fiz. Parece que peguei um cigarro e acendi-o, mas nem senti o gosto do fumo. Não era nem mais eu que estava ali. Eu estava na minha sala e Andréa estava na Recepção, e já tínhamos combinado jantar na Casa dos Contos e passar na Praça do Papa, e terminar a noite no Green Park. Andréa, nua, deitada na banheira e os seios abanando, cobertos pela água. Sorri e soltei o fumo devagar, e os seios de Andréa sairam da banheira e vieram ao meu encontro. Estendi as mãos e quis pegá-los, e duas mãos se cravaram nos meus ombros e uma voz explodiu nos meus ouvidos.

- Não vai dizer nada, não? Diz. Diz que eu sou puta, que eu não presto.

As mãos puxavam-me e abanavam-me e a voz socava os meus ouvidos, e o cigarro caiu no chão. Mas não me importei. Andréa fumava Marlboro e eu também, e nunca andávamos sem cigarros. Mas isso também não importava. Agora, eu não queria mais fumar. Andréa ainda estava na banheira e os seios também ainda estavam na minha frente, e eu só queria pegar neles e calar aquela voz.

- Fala, seu puto. Diz que eu sou puta, que eu não presto, seu viado.

As trovoadas e os tambores não escutaram, e Andréa também não e continuou na banheira, e eu peguei os seios dela e cobri-os de espuma de sabão. A voz calou-se e as mãos pararam de me puxar e abanar, e eu pensei que D. Beth tivesse trancado a porta da minha sala. Mas D. Beth não trancou e as mãos voltaram e começaram a dar socos no meu peito. Só que os socos não doíam. Os seios de Andréa não deixavam. As mãos socaram e socaram, e voltaram a socar, e, de repente, pararam e não socaram mais. Os seios de Andréa me envolveram e ela puxou-me para dentro da banheira e beijou-me e abraçou-me, e só saímos de lá quando tocou a campainha do meu ramal.

Abri os olhos, assustado com o som da campainha, mas estava bem e estava calmo e Andréa corria ao meu encontro. Não sei se dei um passo ou fiz um gesto, e Andréa correu mais e abriu os braços e abraçou-me, e aninhou a cabeça no meu peito. Abracei-a também e fechei os olhos, e ficamos assim até que a garganta se abriu e as trovoadas e os tambores deixaram de zoar, e os nossos corpos pararam de tremer.

Muito tempo depois, lá longe, muito longe, tão longe que nem parecia existir, havia um letreiro aceso e as letras mal se viam, batidas pelo sol. Três palavras e dez letras manuscritas, vermelhas, de neon, FIM DE TARDE. Não sei por que li as palavras e contei as letras, mas não odiei aquele bar. Nem quis mais que um caminhão desgovernado descesse a Avenida do Contorno e o arrasasse. Comigo dentro.

- Você ainda me quer, Eduardo?

As minhas mãos não estranharam quando Andréa me beijou, nem eu estranhei quando a beijei. A vida é assim. Tudo muda, mas tudo permanece.

 
 
 

Cunha de Leiradella
Casa das Leiras
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Portugal
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