CUNHA DE LEIRADELLA

A SOLIDÃO DA VERDADE

ROMANCE

II PARTE - A SOLIDÃO

Sete

Estes últimos quatro dias foram péssimos. Conheci Andréa na quarta-feira, e passou quinta, e passou sexta, e passou sábado, e passou domingo, e ela me perseguiu em todos eles. Todas as mulheres que via eram Andréa. Mas não eram. Nunca eram.

Foram quatro dias fodidos. Mas passaram. Felizmente, passaram e, agora, estou bem e estou calmo, e estou feliz. Hoje vou sair com Andréa. Não sei se ela quer jantar na Casa dos Contos, mas, se não quiser, não importa. Do jeito que estou, qualquer lugar será bom. O importante é que Andréa aceitou o meu convite.

Passei uma manhã desesperada. As certezas são uma merda. Só porque queria que Andréa telefonasse, tinha certeza que ela também queria telefonar. E como não telefonou, foi uma merda. Eu poderia ter telefonado. Mas, se tivesse telefonado e ela não quisesse atender ou desligasse, qual teria que ser a minha reação? Mandaria o Sr. Ferraz dispensá-la, faria de conta que ela não existia ou não passaria mais na Recepção? Todas estas hipóteses eram soluções, mas nenhuma resolvia.

D. Beth voltou do almoço à uma e meia e eu ainda estava pensando em tudo isto. E, o que era pior, cada vez mais tenso e deprimido. Mando o Sr. Ferraz dispensar Andréa hoje mesmo ou faço de conta que ela não existe, ou nunca mais passo na Recepção? D. Beth abriu a porta, e, toda sorridente, mostrou um ramo de rosas.

- O senhor tá vendo? Presente.

Não respondi e D. Beth saiu da sala, batendo a porta. Quase tive pena dela. Mas, mesmo que a chamasse e lhe pedisse desculpas, não iria resolver. D. Beth não era Andréa e era Andréa que eu queria. Xinguei um palavrão e acendi um cigarro. Sem saber o que fazer, fumei até a boca ficar seca. Mas por mais que pensasse, nada me ocorria. Com a cabeça já doendo, lembrei de D. Beth batendo a porta e quase pulei da cadeira. D. Beth não era Andréa, mas tinha dado a solução. E tão perfeita e, ao mesmo tempo, tão simples e tão fácil, que tive até vontade de abrir a janela e dar uns gritos. Mesmo que eles não parassem.

Saí da sala correndo e nem esperei o elevador. No Mercado das Flores, na Avenida Afonso Pena, encomendei dois buquês. Três dúzias de rosas vermelhas e três de rosas brancas. No cartão escrevi apenas, se eu tivesse tinta verde, também gostaria de fazer coisas diferentes. Pedi à florista que mandasse entregar às duas horas em ponto e voltei para o hotel. Passei na Recepção e pedi o mapa das reservas. Apontei um nome ao acaso e disse ao Sr. Ferraz para me avisar, tão logo aquele hóspede entrasse no hotel.

- O senhor vai tar na sua sala?

- Claro, Sr. Ferraz. Ramal 435, ou o senhor já esqueceu?

Andréa sorriu e ajeitou o cabelo, e os seios levantaram. Unidos pelo corpete do uniforme pareciam ainda maiores e mais cheios. Se, um dia, pudesse pegar neles o mundo que se fodesse. Subi para a minha sala e pedi a D. Beth que não passasse nenhuma ligação pelo ramal. Olhei o relógio. Uma e cinqüenta e sete. Se a florista cumprisse o prometido os buquês chegariam em três minutos. Sentei-me e acendi um cigarro, e olhei pela janela. Nenhum bem-te-vi pousava nas árvores e sorri. Besteira acreditar em presságios, o que importava eram os fatos. E o sorriso de Andréa, esse, sim, esse era um fato. Olhei outra vez o relógio. Uma e cinqüenta e nove. Mais um minuto e a campainha do ramal tocaria. Mas o minuto passou e a campainha não tocou. Fumei o cigarro, os olhos pregados no telefone, mas ele não chamava. Às duas e quatro acendi outro cigarro e peguei o catálogo telefônico. Florista filha da puta. Ainda estava procurando o número quando a campainha tocou. Peguei o fone com tanta força que o descanso caiu da mesa.

- Alô?

- Oi. Sou eu. Adorei. Adorei mesmo.

A garganta aperta tanto que mal posso falar.

- Eu posso...

Pigarreio com força e a voz melhora.

- Quer dizer, podemos jantar hoje?

- Hoje?

Faço um esforço e consigo manter o tom da voz.

- Você não pode?

Andréa não responde, mas não me importo.

- Posso passar na sua casa? Às sete?

- Você sabe onde eu moro?

- Na Rua Ramalhete. Eu...

Andréa ri.

- Quê que você ainda não sabe de mim, hem?

Não respondo. Não sei nada. Andréa continua rindo.

- Eu tava brincando. Pode, sim.

Desliga e eu fico com o fone na mão, e com uma vontade enorme de gritar. Mas controlo-me e peço um café a D. Beth. Ainda estou tão espantado que esqueço até que não gosto de café. Acendo um cigarro e puxo uma tragada, e D. Beth entra com a bandeja, preocupada.

- Trouxe um Anador.

Coloca a bandeja na mesa e aponta o comprimido ao lado do açucareiro.

- O senhor só toma café quando toma Anador e...

Serve o café e eu engulo o comprimido e saboreio dois goles, ainda escutando a voz de Andréa, pode, sim.

- Muito obrigado, D. Beth.

D. Beth apanha o descanso do telefone e olha-me. Sorrio e ela pega a bandeja e sai, sem dizer nada. Coitada de D. Beth. Se ela soubesse por que tomei aquele comprimido e aquele café me soube tão bem. Recosto-me na cadeira e espreguiço-me, e olho o tabuleiro dos despachos, entupido de pastas e papéis, e começo a trabalhar. Pouco depois, D. Beth avisa que o Sr. Ferraz quer falar comigo.

- Mande entrar, por favor.

Entram os dois, e o Sr. Ferraz traz uma rosa em cada mão. Uma vermelha e uma branca.

- Sr. Eduardo, o senhor nem vai acreditar.

Estende as mãos e mostra as rosas.

- O senhor acredita que D. Andréa ainda mal começou e já ganhou dois buquês?

Coloca as rosas na mesa e olha D. Beth.

- Dois buquês lindíssimos. Chiquérrimos.

D. Beth pega a rosa vermelha e abana a cabeça.

- Que mau gosto. Romantismo é outra coisa.

Lembro do ramo que tinha mostrado na volta do almoço e sorrio.

- É o quê, D. Beth?

Ela deixa cair a rosa na mesa e olha-me.

- É amor de verdade.

Pega os documentos já despachados e sai. O Sr. Ferraz abana a cabeça e sorri. Sorrio também e aponto a cadeira.

- Sente, Sr. Ferraz.

Ele senta-se.

- Sr. Eduardo, eu tou abismado. Logo no primeiro dia de trabalho, dois buquês. E o senhor precisava de ver que buquês. Lindíssimos. Chiquérrimos.

Recosto-me na cadeira e sorrio, imaginando a cara do Sr. Ferraz se soubesse quem os tinha mandado.

- Quem teria sido, Sr. Ferraz?

O Sr. Ferraz abre os braços e abana a cabeça.

- Eu não sei, não, Sr. Eduardo, mas diz D. Andréa que foi um hóspede. Um senhor de São Paulo, já de certa idade. Não é hóspede habitual, não, mas eu lembro dele, sim. Saiu por volta das onze horas.

Pega as rosas e ajeita-as no tampo da mesa.

- Mas o senhor sabe o quê que D. Andréa me pediu?

Sorri e aponta as rosas.

- Que trouxesse estas rosas pro senhor. Eu ainda pensei não trazer, não, mas o senhor sabe o quê que D. Andréa disse? Não foi o Sr. Eduardo que aprovou a minha admissão, junto com o senhor, não, Sr. Ferraz? Então, ele também merece. E deu duas pra mim e mandou estas duas pro senhor.

Ajeita-se na cadeira e olha-me.

- Como é uma coisa que nunca aconteceu, uma recepcionista mandar flores pro gerente geral, eu espero que o senhor não...

- Ora, Sr. Ferraz, que bobagem. O senhor pode dizer a D. Andréa que nunca recebi um presente tão bonito.

O Sr. Ferraz sorri e acena com a cabeça.

- Direi, sim, Sr. Eduardo. Direi, sim. O senhor pode tar certo que direi.

Sai e fecha a porta, e eu recosto-me na cadeira e sorrio. O tabuleiro dos despachos ainda está cheio, mas não tenho nem mais vontade de trabalhar. Quero é pensar no jantar com Andréa. Levanto-me e chamo D. Beth.

- Vou subir.

- A dor voltou, Sr. Eduardo?

- Nada, é só uma bobagem. Qualquer coisa, a senhora liga pra mim, tá?

D. Beth olha-me e cruza as mãos no colo.

- O senhor quer que vá buscar outro Anador?

- Não, não, obrigado. É coisa à toa.

D. Beth sai. Pego as rosas e subo para o apartamento. Tenho certeza que este jantar vai mudar a minha vida. Finalmente, vou entrar na Casa dos Contos como sempre quis entrar. Acompanhado.

 
 
 

Cunha de Leiradella
Casa das Leiras
São Paio de Brunhais
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Portugal
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