CUNHA DE LEIRADELLA

A SOLIDÃO DA VERDADE

ROMANCE

II PARTE - A SOLIDÃO

Dezasseis

Estamos no Ipê Amarelo. Um hotel-fazenda com cavalos, matas e cachoeiras, a trinta quilômetros de Belo Horizonte, num desvio da estrada de Brasília. É quase de manhã e ainda estamos acordados. Chegamos ontem, ao escurecer, e não jantamos, nem saímos do quarto. E, agora, fumamos e estamos nus. Mas ainda não estamos à vontade. É a nossa primeira noite, e há muitos anos eu não me despia na frente de uma mulher.

Andréa está debruçada no parapeito da janela e olha a sombra das matas que sobem pelas colinas, do outro lado da represa, e eu estou deitado na cama e olho para ela. O hotel está silencioso e lá fora também nada se mexe. Não corre vento e só algum pássaro pia na árvore, junto da janela, ou algum sapo coaxa na represa. Mas o som logo se esvai e só a monotonia do ar refrigerado ronrona dentro do quarto.

Não conhecia o Ipê Amarelo. Mas Andréa dizia que gostava de cavalos, e de matas e cachoeiras, e, por isso, viemos para cá. Não gosto de cavalos, como também não gosto de cães. Na minha casa havia um cão. Mas era do meu pai e nunca andou comigo. Mesmo quando meu pai estava na Espanha nunca deixou que o afagasse ou, sequer, lhe desse de comer. E, sempre que eu deitava na cama da minha mãe, ele latia e queria entrar no quarto. A minha mãe ria e dizia que o cão era o olheiro do meu pai, e que não gostava de mim porque eu tinha medo dele. Odiei aquele cão durante anos. E só não o matei porque tinha ainda mais medo do meu pai.

Andréa diz que adora cavalos e cães, e também diz que adora bailes e festas de fim de ano. Ainda não fomos a nenhum baile, mas ela já disse que quer passar o reveillon no Rio de Janeiro. Disse-lhe que não sabia dançar, mas ela riu e disse que saber não importava, o importante era gostar. Talvez seja. Só que ainda não sei se gostarei.

Entramos no quarto e Andréa não acendeu a luz. Jogou a bolsa em cima da penteadeira e encostou-se na janela. Fechei a porta e acendi a luz, e Andréa abriu a janela e debruçou-se no parapeito. Arrumei as malas e sentei-me na cama, esperando que ela dissesse ou fizesse alguma coisa. Mas Andréa não falava, nem se voltava, e eu não sabia como começar. Acendi um cigarro e Andréa continuou olhando a paisagem. Eu sabia o que queria. Queria abraçá-la e beijá-la, e deitar a cabeça no colo dela. Mas não sabia como começar. Se Andréa me chamasse ou se voltasse, seria fácil. Mas ela não me chamava, nem se voltava, e eu tinha medo de fazer o gesto errado.

E ficamos assim, Andréa, de costas, debruçada na janela, e eu, sentado na cama, pensando no que gostaria de fazer. Acabei o cigarro e acendi outro, e Andréa continuou na mesma posição. Fumei o segundo cigarro e Andréa não me chamou, nem se voltou. Cada vez mais tenso e com mais medo acendi outro cigarro, e a garganta apertou e os ouvidos começaram a zumbir e um suor frio escorreu pelo pescoço e pelas costas. O coração acelerou e a vista escureceu, e pensei que fosse desmaiar. Deitei na cama e fechei os olhos, e pedi a Deus que me ajudasse. E ficamos assim, imóveis e calados, esperando.

A idéia de passarmos o fim de semana juntos surgiu por acaso. Estávamos jantando na Casa dos Contos e no dia seguinte era sábado e era a primeira folga de Andréa, e eu não sabia o que ela gostaria de fazer.

- Quer ir pra onde, amanhã?

Andréa levou-me ao Caraça, porque tinha matas e cachoeiras. Eu não conhecia o Caraça, mas qualquer lugar seria bom. O importante era Andréa estar comigo.

Saímos de manhã e chegamos antes do meio dia. Visitamos a igreja e o colégio e almoçamos, e passamos a tarde nas matas. Nunca pensei que pudesse encontrar um lugar que lembrasse tanto a minha terra e falei com Andréa da minha aldeia e das terras que lá tinha, e das cabras e das ovelhas, que pastoreava pelos montes, e da neve e dos lobos e das raposas, e dos contrabandistas e dos ciganos da fronteira. Só não falei da minha mãe e do meu pai. Nunca tinha falado da minha terra com ninguém e, falar com Andréa, fez-me bem.

- E você não vai voltar, não?

- Não.

- E a sua fazenda?

Lembrei da minha mãe e de tudo que significou, e ainda significava, e não soube responder.

- Não seria melhor você voltar, não?

Não respondi e Andréa deitou a cabeça no meu ombro e pegou nas minhas mãos.

- Quê que prende você aqui?

Olhei-a. O sol descia por trás da montanha e brilhava no cabelo, e os seios apareciam no decote. Grandes e cheios, como sempre quis que eles fossem.

- Agora, você.

Ficamos na mata a tarde inteira e só descemos ao pôr-do-sol. Andréa não lembrou das cachoeiras e eu também não falei nada. Se a tinha deitada no meu colo que importavam as cachoeiras? Já estava escurecendo quando chegamos ao colégio e os carros faziam fila, descendo pela estrada. Andréa quis ficar, mas não ficamos. No dia seguinte ela trabalhava de manhã. Mas me cobrou a promessa de a levar num lugar que tivesse cavalos. Foi assim que viemos para o Ipê Amarelo.

Sentei na cama. Andréa ainda olhava pela janela e esperei que me chamasse ou se voltasse. Mas ela não me chamou, nem se voltou. Cada vez mais tenso, fui ao banheiro e passei água no rosto. Voltei para o quarto, e Andréa já tinha saído da janela. Estava encostada na penteadeira, as mãos apoiadas no tampo e os olhos fixos na imagem refletida no espelho. Aproximei-me, e os nossos olhos encontraram-se. Mas Andréa não disse nada, nem fez nenhum gesto, e a minha garganta apertou e os ouvidos começaram a zumbir. Encostei-me na janela e acendi um cigarro e puxei uma tragada, mas o fumo amargou e esmaguei-o na jardineira. Olhei a escuridão à minha frente e as colinas na linha do horizonte, e os ouvidos zumbiram mais e a garganta doeu, e, de repente, o coração disparou. Sentei-me na cama e fechei os olhos, e, pouco a pouco, o mal-estar diminuiu. Abri os olhos, e Andréa ainda estava encostada na penteadeira. Mas já não olhava para o espelho. Olhava para mim. Não dizia nada, nem fazia nenhum gesto, mas parecia que os olhos me chamavam. Não sei se me chamavam, eu é que queria que me chamassem. Sem pensar mais, levantei-me e abracei-a, e, para meu espanto, Andréa abraçou-me também. E ficamos assim, abraçados e calados, ainda tensos.

Andréa volta-se. A pele nua brilha de suor e o cabelo cai pelo rosto. Puxa uma tragada e ajeita o cabelo, e solta o fumo devagar. É quase de manhã e já se vêem as matas que sobem pelas colinas, do outro lado da represa. Uma criança chora no apartamento ao lado e passos rápidos soam no corredor. Encosto-me na cabeceira da cama e olho o relógio. Cinco e dez. Não dormimos, mas não sentimos falta do sono. Andréa joga o cigarro na jardineira e afasta-se da janela.

- Quer cerveja?

Curva-se e abre a porta do frigobar, e a pele das nádegas reluz e o cabelo cai pelo rosto. Tem as pernas abertas e os pêlos do sexo aparecem por entre as coxas, como um tufo de cabelo mal cortado. A pele do corpo é macia e toda branca, sem manchas de praia ou de piscina, e os seios parecem gelatina, balançando, quando força o abridor e faz saltar a tampa da garrafa. Os mamilos são pequenos e cor de rosa, e os bicos mal se notam. Andréa pega um copo e olha-me. Os pêlos do sexo são louros e compridos e têm a forma de um triângulo, e as coxas são redondas e lisas e fazem duas pregas nas virilhas. Estão unidas e a carne arredonda-se junto do sexo, e a pele brilha, ainda úmida de suor. Enche dois copos e senta-se na cama.

- Toma. Faz bem.

Tem os olhos encovados e as olheiras parecem desenhadas a pincel, mas o sorriso é tranqüilo e faz-me bem. Bebe de um copo e eu olho a curva dos seios, quando levanta o braço, e tenho vontade de pegá-los e encostar a cara neles. E ficar assim. Como fiquei quando deitamos. Andréa coloca o copo vazio na mesa-de-cabeceira e oferece o outro.

- Não quer, não? Vai fazer bem.

Bebo a cerveja toda e devolvo o copo, e recosto-me na cabeceira da cama. Estou bem e estou calmo, e nem lembro mais o que passou. Andréa coloca o copo na mesa-de-cabeceira, junto do outro, e debruça-se, e os seios encostam nas palmas das minhas mãos.

- Tá tudo bem?

Aceno com a cabeça e Andréa abraça-me. Uma pomba esvoaça junto da janela e pousa na grade da jardineira, e fica olhando para nós. Olho o corpo de Andréa colado no meu e roço os lábios no cabelo e a língua de Andréa titila no meu ouvido, e uma porta bate com força no corredor. A pomba assusta-se e foge, e o corpo de Andréa estremece.

- Que horas são?

Não sei, mas não quero que Andréa se levante e tire os seios das minhas mãos.

- Ainda é cedo.

- A gente nem dormiu.

Não respondo e Andréa aninha-se no meu peito. Olho a janela e o sol já desponta nas colinas, e os pardais chilreiam na árvore, junto da janela. Andréa adormece e, com o passar do tempo, as minhas mãos ficam dormentes. Puxo-as com cuidado, mas ela acorda. Acendo um cigarro, mas Andréa estende o braço e pega nele. Acendo outro e fumamos em silêncio. Os olhos de Andréa estão encovados, mas brilham, e isso me faz bem. Fecho os meus e deixo o corpo relaxar.

Andréa tira o cigarro da minha mão e roça as unhas no meu peito, e eu tenho certeza que nunca estive tão bem, nem tão calmo. Tão feliz. Deito a cabeça no colo dela e ela passa as mãos no meu cabelo. Está imóvel e olha o espelho da penteadeira, e os seios parecem ainda maiores e mais cheios, e, por baixo do direito, a pele está coberta de vergões amarelados. Levanto as mãos e pego-os, e Andréa sorri e fecha os olhos, e continua acariciando o meu cabelo. Tenho as mãos coladas nos seios e eles parecem suspender-me. É como se nada mais existisse à minha volta e eu não precisasse de mais nada. Andréa pára de acariciar o meu cabelo e curva-se e os seios comprimem-se nas minhas mãos e o cabelo cai sobre o meu rosto, e eu não tenho mais medo. De nada. Nem de morrer.

- Sabe? Eu tava com medo.

- Medo de quê, bobo?

- De fazer errado e de você não gostar.

Andréa ergue o corpo e fica olhando pela janela.

- Nunca ninguém se preocupou com isso.

Fecha os olhos e deixa cair a cabeça sobre o peito, e fica assim, e a imobilidade e o silêncio preocupam-me.

- Sabe?

As mãos de Andréa começam acariciando, outra vez, o meu cabelo, mas ela continua na mesma posição.

- Por quê que você olha tanto pros meus seios?

Lembro da minha mãe tomando banho e dos seios cobertos de espuma e abanando, e não respondo. Andréa tira as mãos do meu cabelo e passa-as no rosto, e olha a nossa imagem refletida no espelho.

- Por quê que você tanto olhava pra eles naquela hora?

Continuo sem responder. Se lhe disser a verdade, tenho certeza, vai levantar e vai embora.

- Por quê que você pediu que eu os abanasse?

Um choque sobe pela espinha e a nuca estala e a garganta aperta e os ouvidos começam a zumbir, e Andréa volta a acariciar o meu cabelo.

- Não quer falar sobre isso, não?

Continuo calado e Andréa abraça-me, e a garganta aperta mais e quase não me deixa respirar. Mas tenho que falar. Se não falar agora, mesmo que fale depois, Andréa se sentirá enganada e, então, nada a reterá junto de mim.

- Eu tinha medo que eles se cobrissem de espuma.

Andréa não se levantou, nem foi embora, mas os meus ouvidos zumbem tanto que a cabeça parece explodir.

- E cobriram?

Andréa beija-me e aperta o corpo contra o meu, e os ouvidos param de zumbir e a garganta já não dói. De repente, estou bem e estou calmo, e é como se tudo que ainda não foi dito já tivesse sido dito. Encosto a cabeça nos seios e fecho os olhos, e as mãos de Andréa voltam a acariciar o meu cabelo.

- Quê que era essa espuma?

Os seios da minha mãe estão na minha frente, cobertos de espuma e abanando, e ela ri e me puxa para dentro do banheiro.

- Eram os seios da minha mãe.

As mãos de Andréa param de acariciar o meu cabelo e colam-se na minha testa.

- E você?

- Eu, o quê?

- Quê que você fazia?

- Eu me masturbava.

- E sua mãe? Ela sabia?

Aceno com a cabeça e Andréa não diz mais nada. Abro os olhos e os olhos dela estão fixos no teto. Não sei o que tem, mas não pergunto. Se me tivessem dito o que lhe disse, eu também estaria como ela. O sol já nasceu e entra no quarto, e escutam-se vozes no corredor. Um rádio toca ao longe e o barulho de um avião reboa pelos ares. Uma réstia de sol brilha no cabelo de Andréa e bate na minha cara. O ser humano é curioso. Composto de segundos conscientes e de risos e de lágrimas, são mais as lágrimas do que os risos e mais os risos do que os segundos conscientes. Mas bastou um só segundo para que tudo mudasse. A espuma que sempre cobriu os seios das mulheres foi dissolvida e não me sinto mais só, nem tenho mais medo. Tudo que fui, apenas foi. O que importa é o que está acontecendo agora e o que penso. Não é o fato de ser um ser pensante que me distingue dos outros seres. O que me distingue dos outros seres é o ato de pensar. Só quando penso o mundo toma forma e eu lhe dou significado. Como agora. Todos os dias o sol nasce e já muitas vezes bateu nos meus olhos. Mas só hoje, porque Andréa está comigo e eu pensei, ele teve significado. O mal do ser humano não é só viver sabendo que vai morrer. É viver sempre dividido em todos os seres humanos que gostaria de ser e não dividir-se, apenas, naqueles que pode ser.

- Eu também mudei.

Andréa fala como se pensasse em voz alta. Completamente imóvel e absorta, e os olhos ainda fixos no teto. Como se aquele olhar fosse a corda que a mantivesse suspensa sobre o abismo.

- Nunca tinha gozado debaixo de ninguém.

Baixa a cabeça e olha-me e, mesmo sem sorrir, o olhar já não é mais a corda que a mantém suspensa sobre o abismo. É uma ponte. Não digo nada, já não é preciso. Puxo-a para mim e ela deixa o corpo vir. Pela segunda vez, nesta noite, sei que estamos bem porque queremos estar bem e não porque devemos estar bem. Andréa abraça-me e cola o corpo no meu, e aninha a cabeça no meu peito. E ficamos assim, tempo e tempo, abraçados e calados, como se só importasse estar assim.

 
 
 

Cunha de Leiradella
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