CUNHA DE LEIRADELLA:
Brazilian way of life (comédia)

INDEX

Ficha técnica
Personagens
Cenário único

AÇÃO

Contrariado, Haroldo pega o maço

Contrariado, Haroldo pega o maço e oferece. Picuinha tira um cigarro.

Picuinha - Deus que lhe pague, doutor.

Vaneide - Só um?

Picuinha - Por ora, só. Obrigado.

Vaneide - Papai, isqueiro.

Contrariado, Haroldo acende o cigarro de Picuinha. Picuinha senta-se.

Vaneide - Vai também, vó?

Olga - Ah, vou!

Contrariado, Haroldo oferece o maço e Olga pega um cigarro. Haroldo acende-o.

Vaneide - Mamãe?

Elza - Quero, sim.

Haroldo - Mas você não fuma, Elza!

Elza - Mas, agora, eu quero, e daí?

Contrariado, Haroldo oferece o maço e Elza pega um cigarro. Haroldo acende-o.

Vaneide - Pô, velho, e o meu? Esqueceu, é?

Contrariado, Haroldo oferece o maço e Vaneide pega um cigarro. Haroldo acende-o.

Vaneide - E o seu? Não vai, não?

Haroldo acende um cigarro e todos fumam, em silêncio. Um tempo. De repente, Picuinha levanta-se, corre para a porta da cozinha e abre-a.

Picuinha (Gritando) - Firu! Ô, Firu! (A Elza.) A senhora desculpa, dona, mas o Firu pode tar...

Firula (Off, voz rouca) - Quê que é?

Olga (A Vaneide) - Coitado. Que será que ele tem?

Picuinha - Precisa...

Firula (Off, voz ainda mais rouca, gritando) - Não!

Vaneide (A Olga) - Pô, vó, desse jeito , quê que ele pode ter, hem?

Picuinha fecha a porta da cozinha, senta-se e apaga o cigarro no cinzeiro. Todos fazem o mesmo.

Picuinha (A Haroldo) - Doutor, o senhor é home, o senhor sabe como é que é, né? O Firu... (Haroldo, num gesto repentino, levanta-se.) Pô, doutor, quê que há? O Firu só...

Haroldo - Assim, também já é demais, Elza!

Vaneide - Pô, papai, relaxa!

Olga - O senhor é o único, aqui, que não pode falar nada.

Haroldo - Como não posso? Isto é a minha casa e é uma casa de família!

Olga - Foi uma casa de família!

Elza - Haroldo! Mamãe!

Haroldo - Elza, pensa bem, não dá nem pra acreditar. Eu tou na minha casa, eles me esculhambam, fumam os meus cigarros, comem a minha empregada...

Elza - Haroldo!

Olga (Ao mesmo tempo) - Se o senhor tivesse comido...

Elza - Mamãe!

Picuinha - Ô, doutor, quê que é isso?

Vaneide - Pô, papai, fica frio! Se o estupro é inevitável, pronto, relaxa e goza.

Elza - Vaneide, minha filha!

Haroldo (A Picuinha) - A minha casa é uma casa de respeito.

Olga - Foi uma casa de respeito!

Elza - Mamãe!

Picuinha (A Haroldo) - Ô, doutor, mas logo pra cima de mim? O senhor não foi o primeiro a querer provar o entrecosto, não? (A Olga.) Foi ou não foi, dona?

Olga - Isso, aí, é um fingido! Nem comer come direito.

Haroldo avança para Olga. Picuinha segura-o.

Picuinha - Calma, doutor! (Obriga Haroldo a sentar-se. A todos.) É como diz o Pastor, quem com ferro fere, com ferro será ferido.

Picuinha senta-se e todos se ajeitam nas cadeiras. Um tempo. Apesar do silêncio, começa a notar-se uma certa descontração no ambiente.

Vaneide (A Picuinha) - Como é que é essa de assaltante, hem?

Picuinha - Olha, moça...

Vaneide - É que no outro dia teve lá na faculdade um cara que fez uma palestra sobre o brazilian way of life...

Picuinha - Bra o quê?

Vaneide - Brazilian way of life. O que eles chamam por aí de sistema de vida brasileira. Riqueza mal distribuída, drogas, seqüestros, assaltos, essas coisas. Mas foi um saco. Com aquela gravata e aquela pose, tava na cara que o cara não tinha a menor experiência. A mínima, entendeu?

Picuinha - Olha, moça, eu não sabia que os bacana chamava pescar minhoca no asfalto desse tal de, como é o nome mesmo, hem?

Vaneide - Brazilian way of life.

Picuinha - Isso. Mas uma coisa eu digo. O que mais tem por aí é gente que só sabe, mesmo, é dizer besteira e vive disso, entendeu? Eu, se tivesse que falar de bacana, eu não falava. Não sou bacana, como é que eu posso dar uma de bacana? Só inventando, né, não?

Vaneide - Mas essa de assaltante, tem a ver, assim, com uma de emoção, aventura, essas coisas, ou é chatura mesmo, que nem a nossa?

Picuinha - Olha, moça, no fundo, no fundo, tudo é chatura mesmo, viu?

Vaneide - Mas não tem essa de perigo, tiro...

Picuinha - Tem. Às vezes, até que tem.

Vaneide - Cadeia...

Picuinha - Ah, cana, faz parte.

Vaneide - E esse tal de crime organizado, hem? Manda mesmo o tanto que dizem por aí, ou é a televisão que tá perdendo audiência e sem audiência, ó, sifu?

Haroldo - Vaneide, olha a lin...

Vaneide - Ah, papai, qual é? Deixa de ser careta, pô. (A Picuinha.) Como é que é isso, hem?

Picuinha - Olha, moça, crime organizado tem em todo lado, entendeu? Quer crime mais organizado do que esse tal de colarinho branco que fala por aí? Agora, se de um lado meia dúzia de chefão manda mais do que polícia, do outro lado meia dúzia de grandão não manda mais do que governo, não? Por isso é que eu digo, o maior perigo não é tiro, cadeia, nada. O maior perigo, mesmo, são os grandão, os chefão. Eles é que manda nesse tal de, como é o nome mesmo, hem?

Vaneide - Brazilian way of life.

Picuinha - Isso. Eles é que manda nesse tal de brasiliam e quem tira minhoca do asfalto é que se dana, entendeu? E dê graças a Deus que a boca não encha de formiga, sabe como? Agora, no dia-a-dia, no feijão com arroz, o perigo, mesmo, são esse tal de bacana enrustido. Moça, como tem bacanão aí que tem grana, tem pose, tem tudo, mas anda mal comido que só vendo. E digo mais. Sempre que dá uma de condição de ninguém ver, já viu. Larga a pose, larga tudo, e quer é um venha-a-nós bem na mufunfa. O doutorzão, babando, já de cueca nas canelas, e a madame mandando ver, já de calcinha no varal, e fim. Só que nem sempre a gente traz camisinha de reserva e já viu. Mas, tirando o perigo da mancha roxa...

 
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