CUNHA DE LEIRADELLA
De variações permanentes e outras variantes

Ontem, como sempre, fui ao cinema com a minha noiva. Todas as terças, quintas e sábados, nós nos encontramos e vamos ao cinema. Escolhemos esses dias porque, às segundas, às quartas, às sextas e aos domingos, a minha noiva tem outros compromissos. Como cada um de nós tem absoluto respeito pela privacidade do outro, às segundas, às quartas, às sextas e aos domingos, eu também tenho outros compromissos.

Nem eu, nem a minha noiva, entendemos de cinema. Mas, como as terças, as quintas e os sábados, são os nossos dias, em vez de ficarmos à-toa por aí, vamos ao cinema. Eu sei que poderíamos ir para qualquer outro lugar. Tem muita gente que vai até para um motel. Nós não. Nós vamos ao cinema. E, ontem, fomos ao Pathé, na Savassi. Mas já fomos ao Roxy, já fomos ao Brasil, já fomos ao Candelária, já fomos ao Acaiaca, já fomos a todos os cinemas de Belo Horizonte. O importante, para nós, é estarmos juntos, não o filme que vamos ver. Por isso, escolhemos sempre o cinema mais próximo do local do nosso encontro.

A minha noiva á esteticista autônoma e tem clientes espalhados por todos os bairros da cidade. Mas isso em nada dificulta os nossos encontros. Antes pelo contrário, até os facilita. A minha noiva telefona-me e eu sei sempre na porta de que cinema vou encontrá-la. É um esquema simples, mas que funciona perfeitamente. Que me lembre, desde que ficamos noivos, jamais tivemos um desencontro.

Apesar de já estarmos noivos há três anos, não gosto de ir na casa da minha noiva. Aliás, nunca fui. Nem quando ficamos noivos. A minha noiva é a pessoa mais pragmática que conheço. Com ela é sim, sim, não, não, e pt saudações. Quando lhe perguntei por que não ficávamos noivos na casa dela e ela me disse, Eduardo, quem fica noivo somos nós, não é a minha casa, aprendi a nunca mais duvidar das razões dela. Se todo mundo tivesse as dúvidas que nós temos, realmente, ninguém teria dúvidas. E só ainda não nos casamos porque a minha noiva acha que, num relacionamento como o nosso, onde o casamento é a meta fundamental, o mais importante é as pessoas se conhecerem totalmente. O resto, diz a minha noiva, e eu concordo em número, em gênero e em grau, é apenas conseqüência.

Agora, que já conheço bem a minha noiva, posso afirmar que o que mais me levou a gostar dela foi a sua maneira de ser. Decidida. Firme. Totalmente determinada. Depois de combinada uma coisa, não se volta mais atrás. Jamais. Se combinamos o encontro na porta do Acaiaca, não importa se já vimos o filme dez ou vinte vezes. É na porta do Acaiaca que nos vamos encontrar. Mas esta determinação não é só de hoje. Foi de sempre. Logo que nos conhecemos, a minha noiva me disse, Eduardo, nós só nos podemos encontrar às terças, às quintas e aos sábados. Às segundas, às quartas, às sextas e aos domingos eu tenho outros compromissos. Pois bem. Até hoje, todos os meus compromissos também são às segundas, às quartas, às sextas e aos domingos.

A minha noiva chega a ser tão precisa e tão meticulosa que, logo no nosso primeiro dia de noivado, planejamos toda a nossa vida de casados. Quantos filhos (dois), o nome de cada um (Eduardo e Eduarda), o que cada um iria ser (veterinário e bailarina), onde iríamos morar (no bairro Santa Lúcia), o carro que compraríamos (um Escort), tudo, tudo. Até o nosso lote mortuário, no Cemitério da Colina da Saudade, foi planejado naquele dia.

Realmente, a minha noiva é uma mulher excepcional. Sempre que converso com os meus colegas de trabalho sobre isso, todos eles são unânimes. É o mais completo e mais perfeito planejamento que já viram. Teve até dois que disseram que, se tivessem planejado assim o casamento deles, não se teriam separado. Claro que a opinião dos meus colegas me deixa orgulhoso. Mas, muito mais importante do que o orgulho, é a tranqüilidade que o nosso planejamento me dá. Mesmo ainda só noivo, já não me preocupo com mais nada.

Nós sabemos, exatamente, o que queremos e porquê. Tudo que fazemos foi meticulosamente planejado, é meticulosamente cumprido, e, tenho certeza, será meticulosamente alcançado. Como a minha noiva sempre diz, o importante não é querer. O importante é alcançar. E nós sempre temos alcançado. Entre nós não há segredos, nem mistérios. Há confiança.

Por isso, ontem, quando a minha noiva chegou ao cinema Pathé acompanhada, nem parei para pensar. Fui à bilheteria, comprei três entradas e assistimos o filme como sempre. Em silêncio e de mãos dadas. Era terça-feira e os filmes das terças-feiras eram meus.

 

Cunha de Leiradella nasceu na Serra do Gerês, em Portugal, quase fronteira com a Espanha.

Publicou o romance O longo tempo de Eduardo da Cunha Júnior (1981), Inúteis como os mortos (1985), Cinco dias de sagração (1993),Os espelhos de Lacan (2004), entre outros. Escreveu também o roteiro de  longa-metragem O circo das qualidades humanas.

Cunha de Leiradella
Escritor

leiradella@sapo.pt

 
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