OLHARES DA VIDA:
DOM E ILUSÃO

António Matos Ferreira


 
Deveis estar sempre prontos para explicar a todos os que vos
pedem contas da esperança que está em vós; mas fazei-o com
doçura e respeito
. - Primeira Carta de Pedro 3, 15-16.


O convite para realizar esta intervenção obrigou-me a perguntar a mim mesmo se me sinto um homem de esperança. Propus chamar a esta conversa « Olhares da Vida: dom e ilusão ». E é, nesta óptica, que irei tratar algumas questões, partilhando convosco uma reflexão, onde espero que a minha sensibilidade, de quem reflecte sobre História, esteja presente, sem, no entanto, pretender fazer uma intervenção de natureza histórica.

A esperança é uma atitude e uma experiência . Ela tem a ver com o modo como olhamos e como sentimos a vida. O que quero dizer com isto é muito simples: muitas vezes ouvimos dizer, e nós próprios chegamos a formular sínteses deste tipo: «vivemos sem nenhuma sorte». Trata-se de uma atitude que, em certas circunstâncias, carrega um determinado modo de estar e de encarar a nossa relação com os outros. Contudo, olhando à nossa volta as infâncias mal-amadas ou perdidas daqueles que se abeiram dos nossos carros, junto aos semáforos ou aos estacionamentos da cidade, ou quando, nos transportes públicos, olhando tantas faces, no seu silêncio ou na exteriorização das suas raivas, comunicando insatisfações indizíveis, que tipo de interrogações recolhemos para nós próprios, como ressentimos o que vivemos? Se somos sensíveis aos deficientes, até que ponto aceitaríamos que uma pessoa com certos graus de deficiência ocupasse certo tipo de lugares? Somos sensíveis à solidariedade para com os marginalizados, mas até onde aceitaríamos partilhar uma gestão da vida em que eles estivessem em pé de igualdade connosco?

São inquietações como estas que sugiro ao afirmar ser a esperança uma atitude e uma experiência. Têm exactamente a ver com o modo como olhamos, mas também como nos sentimos olhados, porque nós transportamos uma vida que é olhada por outros. Muitas vezes, aquilo que nós sentimos ser é inseparável desse olhar. Sem querer fazer uma intervenção no sentido estritamente teológico, creio que se coloca aqui a questão central de como é que nos sentimos olhados por Deus.

Podemo-nos interrogar se todo o tipo de culturas permite uma vivência da esperança, certamente não do mesmo modo. Não refiro só as outras culturas, diferentes da nossa, nem aqueles que estão longe, vivendo noutros países ou continentes, mas também aqui entre nós, na nossa sociedade. Em que medida as diversas culturas ambiente e as várias práticas religiosas permitem a cada um sentir a sua vida marcada pela esperança. Uma coisa é falar da esperança, enchendo estantes e bibliotecas sobre o tema, outra é a possibilidade de nos darmos conta de ser homens e mulheres de esperança. Inclino-me a dizer que sempre, onde e quando, cada um na sua individualidade se encontra esvaziado de horizontes de futuro, a esperança surge como desafio, como brecha no mundo (1). Portanto, ela surge como desafio, como ruptura na realidade estabelecida, como interioridade que faz explodir as situações existentes, pessoais ou colectivas. Não afirmo que haja sociedades, ambientes ou experiências religiosas, onde a esperança esteja completamente ausente. O que reconheço existir, são ambientes ou situações, onde a esperança como que se apaga pelo peso do esmagamento em que se encontram as pessoas. E, quando se manifesta, acontece como explosão, introduzindo rupturas. Dito de outro modo, há momentos de ruptura, de mudança, de conflito, que são experiências de esperança. Existem formas organizadas de vida, ambientes sociais, familiares, que, pelas suas formas normativas e outras, tendem a esvaziar o sonho, a possibilidade do diferente, pela imposição, por vezes profundamente escandalosa, dos mais diversos níveis de reprodução, que são verdadeiras formas estruturais de domínio e de manipulação, daquilo a que muitas vezes se chama situações de paz podre . Muitas vezes vivemos em sociedades e ambientes em que aquilo que domina é o reproduzir, esvaziando o sonho, reduzindo a possibilidade de fazer surgir o diferente, de se ser diferente, de se participar na aventura da criação. Como se o mundo em que vivemos - as pessoas e as coisas - não pudessem ser diferentes. Porém, do interior dessas culturas ou situações irrompem destinos que introduzem novos horizontes de sentido, mesmo por vezes com a dor de uma aparente vida estragada, perdida.

Ao preparar estes apontamentos, pensei: quem irá estar do outro lado, ouvindo ou lendo esta reflexão? Talvez me perguntem: onde se situa Jesus Cristo em tudo isto? Para muitos daqueles com quem se convive todos os dias, alguns dos quais pessoas essenciais para as nossas vidas, a reflexão sobre a esperança não é equacionada a partir ou considerando a experiência cristã. Estou consciente, portanto, que hoje somos chamados a pensar a esperança para além de Jesus Cristo, no sentido de não bastar formulações do tipo de slogans como: « Jesus é a autêntica esperança» , « Só há esperança em Jesus» . Trata-se, certamente, de colocar a reflexão sobre a esperança no interior de uma percepção antropológica onde a experiência de Jesus introduz uma novidade radical, desafiante para todos, capaz de instaurar um modo de querer viver que torne o homem mais homem, que revele a cada um aquilo que, estando inscrito nele, já é o seu próprio futuro. Nesta perspectiva, uma coisa é o reconhecimento e a afirmação de que Jesus Cristo se foi constituindo centro e fundamento do meu modo de viver e de me sentir marcado pela esperança, outra é pretender que todos tenham o mesmo itinerário e o formulem com a mesma linguagem. Bem pelo contrário, este caminho de centralidade antropológica em Jesus nem confere uma legitimidade excluente de outros percursos, nem permite o reclamar a exclusividade de qualquer tipo de superioridade. É uma caminhada proposta e aberta a todos, a toda a humanidade. Aponta para a descoberta de como numa aparente vida estragada, perdida, como a de Jesus, a esperança existe; e existe precisamente no âmago do mistério da cruz. A ressurreição é rigorosamente a afirmação de um destino que introduz novos horizontes de sentido.

A esperança surge assim, para mim, como atitude essencial de vida espiritual . E quando falo de vida espiritual, falo do interior de cada um. Daquele interior que muitas vezes é praticamente indizível, mesmo quando se constitui núcleo estruturante da nossa consciência.

Na tradição bíblica a esperança envolve, de nós para com os outros, uma expectativa e uma confiança: o desejo de uma terra prometida . Havia uma expectativa. Hoje podemos afirmar conhecer isso do ponto de vista civilizacional, que se traduz no desejo de se viver melhor, no desejo de que um dia haja «uma terra onde corra o leite e o mel» e que tudo chegue para todos. Mas esse desejo, essa expectativa na herança bíblica articula-se com uma confiança. Uma confiança numa aliança, numa relação, cuja palavra primordial parte do outro, do radicalmente outro que é Deus. A confiança é uma relação, mas onde a palavra que escutamos é a palavra do outro, mesmo daquele que nos é proposto radicalmente pelo Evangelho, de um modo escandaloso: o inimigo .

Esta dimensão bíblica encerra aquilo que muitas vezes designamos por dimensão messiânica da esperança . Porque esta expectativa, esta confiança, envolve algo que está para além do reproduzir: a dimensão messiânica da esperança é uma confiança numa promessa humanamente irrealizável. Quer dizer, é aquilo que rompe com «veja bem, isso não pode ser» , «onde é que nós iríamos se fizéssemos isso» , «sempre foi assim» . Face a este quietismo existencial e social, a esperança bíblica aponta para uma dimensão messiânica que é, no fundo, a confiança numa promessa humanamente irrealizável.

Objectivamente, Abraão não poderia ter uma descendência no sentido do que estava em jogo na sua vida: constituir o ser povo. A fidelidade a uma descendência fruto do ventre de sua mulher era impossível. Sara não estava já em idade de lhe dar a progenitura que o tornaria pai desse povo. A vontade de confiar profundamente de que é possível para além de todo o possível, nem diminui nem reduz a possibilidade de se cometer erros, de se procurar atalhos que enganem um pouco os medos da nossa não realização. A compreensão tradicional da vida por parte de Abraão e da sua própria mulher, levou-os a procurar junto da escrava Agar o que Sara, em termos dum realismo objectivo, não poderia dar (2). Contudo, o desafio é confiar que o conhecido, o habitual pode ser diverso, pode acontecer de outro modo, e que por aí passa a verdadeira realização. Esta dimensão messiânica não diz respeito só ao que é irrealizável, ou aparentemente irrealizável, mas vai mais longe, na perspectiva paulina: «esperar contra toda a esperança» (3). Quer dizer, a expectativa e a confiança de que é possível emergir um mundo novo, de que as coisas podem ser diferentes daquelas que conhecemos, daquelas a que estamos habituados, daquelas que a nossa mente e experiência captam no presente imediato. Este desejo de um mundo novo , de alguma maneira, associa-se muitas vezes em nós à ideia de restauração de uma realidade primordial, a qual desempenha ao mesmo tempo uma função: a do restabelecer a justiça. Esta é certamente uma questão crucial: a relação íntima que existe entre a esperança e a justiça. Uma justiça que não é simplesmente aquela que resulta do restabelecer a ordem, do restituir as coisas, mas aquela justiça que, do ponto de vista civilizacional, permanece como um desafio: o perdão (4). Há uma relação íntima entre justiça e perdão. A justiça não é uma simples restituição, a justiça manifesta-se no erguer de cada homem e mulher em tudo aquilo que os diminui e os esmaga. A esperança, nesta perspectiva bíblica, é uma atitude expectante, mas não de algo que se auto-centra naquele que espera, mas na restauração, na afirmação de uma justiça que transcende a lógica estabelecida, que se abre ao outro a quem se espera, em quem se confia.

A tradição bíblica introduz, assim, na história das civilizações uma deslocação . No fundo, a esperança bíblica torna o homem, cada homem e mulher concretos, o lugar da contemplação de Deus e é por isso que a esperança se torna amor, isto é, relação. A justiça, portanto, já não é uma mera restauração da ordem, ela é aos olhos da esperança a construção de novas relações para que a injustiça não exista. O problema não é apenas reparar a injustiça, é fazer com que a injustiça não exista. Isto é, que o homem e a mulher, cada sociedade, queira a justiça.

A esperança foi, durante muito tempo, exclusivamente formulada num marco de transcendência. Isto é, nas sociedades - particularmente na ocidental -, a esperança foi longamente equacionada no interior do universo religioso, enquanto referência englobante da vivência das pessoas. Porém, a nossa contemporaneidade exprime a problemática da esperança através de uma larguíssima polissemia. E esta polissemia está articulada com a pluralidade de aspirações e expectativas que as pessoas e as sociedades hoje transportam, formuladas a partir de múltiplas referências.

Durante muito tempo era evidente que o horizonte da esperança se formulava em categorias do divino e da transcendência, tendo nas Igrejas a mediação, na palavra e no sacramento, para a formulação e para a vivência dessa esperança. O problema histórico é que as Igrejas - entendidas no sentido mais amplo de todos os seus membros, como também no sentido mais restrito do da autoridade eclesiástica - praticaram injustiças, as Igrejas muitas vezes não foram capazes de perdoar, não foram capazes de dar testemunho de misericórdia. E, em determinados momentos, em sucessivos e constantes movimentos de contestação, desde os milenarismos medievais ao laicismo contemporâneo, passando pelas sucessivas fracturas da Cristandade ocorridas com a afirmação de outras práticas cristãs sociais e individuais, emergiram outras instâncias de formulação da esperança como horizonte de vida. Outras exigências de salvação que, paulatinamente, na conflituosidade entre aquilo que as pessoas desejavam viver e aquilo que as Igrejas eram capazes de responder, contribuíram para o surgir de outros modos de encarar a esperança, os quais expressam também a procura da verdade, mesmo quando fora dos marcos institucionais tradicionais ou socialmente estabelecidos. Há uma procura de verdade nessa autonomização da vivência da esperança fora do marco das Igrejas.

No seu processo de auto-compreensão, o homem na sua busca de horizontes de segurança encontrou, entre outras dimensões, como equivalente desse novo futuro a célebre ideia do progresso . Introduziu-se uma linearidade radical no processo de compreensão do homem e da História, o que por sua vez também trouxe, em muitas circunstâncias, novas monstruosidades e novas formas de violência. O terreno da percepção sobre o significado existencial da esperança, ao nível pessoal e colectivo, tornou-se também lugar de conflito e de contradição. Prenhes de generosidade, os movimentos da revolução social ou tecnológica, os movimentos cívicos e de direitos humanos, os movimentos higienistas e, mais recentemente, ecologistas, contribuíram e contribuem para a dignificação humana, para transformações de hábitos seculares melhorando as condições de vida das populações, favorecendo maior protagonismo às pessoas pelo alargamento dos níveis de participação e responsabilização, introduzindo novos desafios sobre a compreensão e a solidariedade do futuro que a todos diz respeito. Porém, a autonomização da esperança do universo do religioso, facto histórico incontornável, não eliminou os problemas que, numa perspectiva de reflexão sobre a História, se põem à vivência e à percepção da esperança.

A esperança é, antes de mais, uma experiência que cada um transporta em si. Esta é a grande deslocação ocorrida e que permanece como potencialidade: a primazia da interioridade em relação à exterioridade . As Igrejas sabiam e sabem isto, embora nem sempre lhes convenha lembrá-lo. E quando se refere as Igrejas não me confino nem ao Papa, nem ao Secretário-Geral do Conselho Ecuménico das Igrejas, nem ao Patriarca de Constantinopla. Referiro-me a cada um dos crentes, e de certo modo, por extensão, a todos os homens de boa-vontade. A esperança, no fundo, é uma experiência que transportamos em nós, e que nos remete para aquilo que somos, para as nossas circunstâncias, para a nossa fragilidade, para a nossa consciência e para uma questão central: para onde estamos dispostos a caminhar? Questão que é semelhante à que coloquei no início: como é que olhamos a vida, como é que olhamos a nossa própria vida? Porque a esperança tem muito a ver com o modo como olhamos a nossa própria vida. Como a mulher grávida que está de esperanças, porque transporta uma vida que já não lhe pertence, mas que, sendo parte de si, se constitui como diversa, autónoma, contendo um futuro que a transcende. Talvez nesta perspectiva possamos ler, com uma outra sensibilidade, o Magnificat: «Faz coisas grandiosas com o seu poder extraordinário./ Vence os orgulhosos e deixa-os confundidos. / Derruba os poderosos / e levanta os humildes. / Enche de coisas boas os que têm fome,/ e manda embora os ricos de mãos vazias» (5).

Durante muito tempo li este texto com tudo o que ele tem de revolucionário, como erupção e afirmação de uma realidade nova, não sem a tentação de reduzir ou de valorizar, muitas vezes, essa leitura dirigida para fora, para a sociedade, para os outros. Dou-me conta hoje de como este texto me devolve a mim próprio. Como é que na minha vida sinto que estas coisas acontecem ? E até onde estou disposto a que elas aconteçam? Porque o que nele está enunciado, na linha da linguagem profética, é a instauração de um mundo novo, onde a questão não é simplesmente a de instituir-se uma ordem, mas é a de se realizar, a de se cumprir uma relação. Isto é, a relação que existia, que tinha sido prometida, que tinha sido feita entre um povo e Deus. Entre um e um Outro.

Todos nós transportamos o futuro. Como Maria, como uma mãe grávida, todos nós transportamos o futuro que está em nós, mas que não nos pertence. Muitas vezes, isto é dramático para os pais ou para os professores, como eu. Uma das coisas que acho mais difícil na relação com a esperança é o medo que nós temos de perder e, por isso, somos muitas vezes levados a dominar. Nós dominamos porque temos medo de perder. E temos medo de perder, porque temos medo de nos perder. E, por isso, digo que todos nós transportamos um futuro que está em nós, mas que não nos pertence. Pois não o possuímos nunca totalmente, por diversas razões, entre as quais a mais definitiva é a morte.

A esperança remete-nos também para o sonho, para a capacidade de sonhar. Vale a pena perguntarmo-nos que sonho transportamos. Que esperança nós transportamos? Não o sonho que se confunde com a ilusão, isto é, com a actividade de cada um, ou das sociedades, que procura agarrar o tempo, convencida que, potenciando essa centralidade, pode iludir a experiência mais radicalmente democrática que é a morte. Mas o sonho que corresponde à emergência da novidade anunciadora de vida nova, diferente, mais próxima dos outros, mais acolhedora e mais compassiva para cada um. Aquele sonho onde se balbucia a esperança enquanto vitalidade da vida em face da morte certa: a de todos os dias e aquela que nos espera como fim ou nascimento .

Sendo assim, encaro a esperança como sugiro no título escolhido para esta intervenção: «Olhares da Vida - dom e ilusão» . A esperança é um dom, transportamo-la, mas não é nossa . Como a vida, como as amizades. A esperança, recebemo-la na relação que estabelecemos com os outros. Por que é que afirmo que, de algum modo, transporto esperança em mim? Porque a recebi de outro, porque a recebo de outros. Não é pela leitura exaustiva de prateleiras de biblioteca, nem por grandes exercícios discursivos sobre a esperança, mas pela relação. Nós recebemos a esperança de outros. A esperança não resulta, portanto, de uma espera, mas de um ir ao encontro. Nós recebemos sinais de esperança, mas constituímos também referência de esperança para outros. E é talvez aqui que está um dos elementos fundamentais do processo de consciência na nossa cultura. A consciência não tem valor em si, isolada, como o resultado de um simples saber aquisitivo. Trata-se de um saber como processo e percurso, acompanhado pelo desenvolvimento do sentido da responsabilidade; isto é, de um saber interiorizado que se traduz na progressiva capacidade de dar resposta . E não tanto porque tenhamos certezas, mas porque participamos de algum modo no mistério indizível de Deus que nos habita, porque no fundo só Deus - a transcendência manifestada na relação - é a resposta. Participamos nesse mistério e, por isso, somos solicitados por outro a ser mediação, a ser meio para também formular respostas que constituem fontes de esperança para o outro. Isto é um desafio a cada um de nós, e às Igrejas, e aos diversos grupos na sociedade. Não basta ter doutrina, é preciso saber se ela é fonte de esperança para alguém. Pode-se ter tudo muito certinho, saber para onde se vai, onde se chega, pode-se até funcionar na lógica dos «comboios» , mas não será pela lógica do horário ou do normativo que nós nos constituímos como referência de esperança para os outros. A esperança cresce nessa apreensão, nessa relação com a realidade, com os outros, com o mundo. Mas apreensão é ainda uma expressão demasiado limitativa porque tem algo de domínio. Devemos talvez sentir a necessidade de acrescentar: apreensão capaz de transcender os seus limites, assente na confiança.

 

No fundo, trata-se de fazer caminho: «Caminante no hay camino... Se hace camino al andar... golpe a golpe, paso a paso...» (6). Afinal, é a experiência dos companheiros de Emaús (7): encontrar o sentido do caminho pelo encontro e pela partilha. Reconhecer no estranho que se aproxima, não um perigo, não um inimigo, mas aquele a quem se estende o convite: «Fica connosco, porque já se está a fazer tarde, já é quase noite» . Em todos os finais de tarde - nas alvoradas do anoitecer ou nos nocturnos de cada amanhecer - descobrir em nós «o coração ardendo no peito» pela conversa, pelo verso e reverso das nossas vidas, companheiras e abertas aos outros.

«A glória de Deus é o homem erguido» (8), na sapiência teológica da Patrística; o horizonte de esperança do homem e da mulher é o estar de pé, levantados, não amarfanhados por nenhuma ordem antiga ou qualquer nova ortodoxia, revolucionária ou não, seja de natureza política, religiosa ou outra. Assim, a esperança não será uma ilusão se não se limitar a vir de fora para dentro, mas sim se corresponder a um reconhecimento de dentro para fora. A dádiva só é redenção quando nós aceitamos receber. Tem a ver com aquilo que conseguimos receber dos outros. Só teremos esperança por aquilo que formos capazes de reconhecer na vida dos outros como sinais de esperança. E aí não há fórmula, há fazer caminho. Por isto mesmo, a morte é, por excelência, experiência de redenção. Não a morte provocada pela guerra, pelas violências institucionalizadas ou outras, que destróiem e nas quais se manifestam o mais radical egoísmo de todos, individual ou colectivo. Há vinte cinco anos atrás não teria esta convicção tão clara, mas hoje estou certo de que qualquer forma de guerra é expressão das mais arcaicas pulsões animalescas do homem. Todas as suas formas encerram níveis de tirania, de esmagamento do homem pelo homem. Não evoco, pois, como redenção essa morte fruto do encerramento em si, nos seus interesses, de cada um ou de cada sociedade. Refiro-me à morte que, inscrita na vida de cada um, se transfigura pelo modo como vivemos connosco e com os outros, essa sim portadora de esperança. Porque é preciso que morram coisas, que nós morramos - reconhecer que o domínio sobre as coisas não é o horizonte da nossa realização - para que a vida se manifeste como sentido, na sua plenitude, para nós e para os outros.

Esta perspectiva sobre a experiência da esperança como dom inscreve-se na necessidade de contrariar as formas de quietismo, sejam elas quais forem. Todas as formas de quietismo me parecem ser busca de mecanismos de segurança que adiam um problema, que é o nosso desejo de paz . A paz pressupõe a capacidade de darmos a vida, e não de a tirar aos outros. Mas este dar a vida e de a não tirar, de não a roubar aos outros, é difícil nos dias de hoje. Uma sociedade que valoriza como paradigma a competição, mesmo quando adjectivada de «salutar» , uma sociedade onde há gente que tem emprego e outra não, onde há gente que vive em barracas e outra que nem se dá conta disso, onde o desenvolvimento e o prazer de uns é a miséria de outros, um mundo onde a primeira indústria é o armamento, torna muito difícil, por vezes, a compreensão e a vivência da esperança. Vive-se muitas vezes encharcados em crenças, resguardados pelas certezas normativas sempre legitimadoras de qualquer coisa, mas simultaneamente vive-se como se houvesse uma ausência de esperança. A esperança surge assim, muitas vezes, como um linguaregar escandaloso para alguns, quando não para muitos.

Nós conhecemos tudo isso, não somos pessoas que podem dizer que não sabem . Não somos das pessoas cujo problema fundamental seja o de ignorar o que se passa, de não saber. Porém, também nos damos conta de que não somos omnipotentes. Muitas vezes transportamos para a convivência com os outros uma certa omnipotência inoperante: os problemas estão todos aí, criticamos tudo, mas todos eles nos são exteriores. O desafio está certamente em não negar esses problemas, em não cair em qualquer forma de quietismo, mas alimentar interiormente a vida de cada um, descobrindo aí o veio da água cuja frescura é esperança vivida e comunicada. E isso só cada um pode fazê-lo. Que na morte, que nos é certa, a própria morte se transfigure pelo modo como vivemos connosco e com os outros.

António Matos Ferreira

NOTAS

(1) Parafraseando o título de uma série de conferências quaresmais realizadas pelo Padre Alberto Neto: A Páscoa - brecha de Deus no mundo. In Reflexão Cristã nº 22 , Março-Abril 1980.

«Jesus morreu, de facto, porque a sua plenitude de liberdade humana, em relação ao Pai e aos homens, era de tal grandeza que estes teriam que a esfacelar para não cegarem, a não ser que quisessem rebentar radicalmente com os seus sistemas de ordem e segurança.

«Jesus matou a morte, pela vida que levou, a libertação que deu aos que o tocavam, a coragem com que relativizou a religião, o templo, o sábado e, principalmente, a Lei; pela predilecção com que apaixonadamente amou e fez seus aqueles que o mundo e o poder religioso segregavam - os pobres, os pequenos, os leprosos, as prostitutas, os ladrões; pela coragem dolorosamente serena e audaz com que enfrentou a Hora - a Morte. Por tudo isto Jesus fez com que a morte o não pudesse conter. A morte não tinha espaço para uma vida cuja dimensão era o próprio espaço do amor de Deus pelos homens. A medida sem medida. Foi ao mesmo tempo, e por outro lado, tentar não nos iludir, precavendo-nos, com a sua morte e paixão, para que entendessemos que o sofrimento e a cruz, não tinham sido arrancados da vida, mas eram sinal e tinham sentido ; eles teriam que estar sempre presentes na nossa libertação pessoal e colectiva, mas tinham deixado de ser instrumentos de maldição e morte para se tornarem sinais pujantes de vida e de esperança.

«Foi por aqui, por esta simples brecha, que Deus, em Cristo, iluminou de novo todo o homem que crê e instituiu a Festa da Vida e da Fraternidade» (p. 51).

(2) Génesis 16.

(3) «Mesmo quando já não havia esperança, Abraão acreditou e assim tornou-se pai de muitas nações, conforme o que Deus tinha dito: Assim será o número dos teus descendentes » (Romanos 4, 18).

(4) «(...) perdoar é quebrar a engrenagem da violência, recusar a combater com as armas odiosas do adversário, permanecer ou tornar-se livre mesmo quando se está preso». Testemunho de um poeta cubano, preso durante vinte cinco anos nos cárceres e campo de Fidel Castro, citado por Jean Delumeau - Ce que je crois . Paris: Grasset, 1985, p.101. «O perdão é primeiro o que se pede a outrem, e antes de mais à vítima. Ora, quem se mete pelo caminho do pedido de perdão deve estar pronto a escutar uma palavra de recusa. Entrar na atmosfera do perdão é aceitar medir-se com a possibilidade sempre aberta do imperdoável. Perdão pedido não é perdão a que se tem direito. É com o preço destas reservas que a grandeza do perdão se manifesta. Nele descobre-se toda a extensão do que se pode chamar economia do dom , se caracterizarmos este pela lógica da superabundância que distingue o amor da lógica, da reciprocidade da justiça». Paul RICOEUR - Le pardon peut-il guérir? In Esprit nº 210, Mars-Avril 1995, p. 77-82. Este artigo encontra-se traduzido em português por José M.S. Rosa, in Viragem nº 21, Janeiro-Março de 1996, p. 26-29.

(5) Lucas 1, 51-53.

(6) Versos famosos do poeta espanhol António Machado (1875-1939).

(7) Lucas 24, 13-35.

(8) Esta é uma expressão analógica utilizada comumente para exprimir a sentença teológica de S.Ireneu: «Gloria enim Dei vivens homo, vita autem hominis visio Dei», «Na verdade a glória de Deus é o homem vivo (vivente); logo, a vida do homem é a visão de Deus». In Adversus haereses PG, 20, 7. Santo Ireneu (c. 130- c. 202): Padre grego, bispo de Lyon, provavelmente originário de Esmirna na Ásia Menor. A sua principal obra Adversus Haereses (Contra as heresias), constitui hoje uma referência teológica de convergência entre os cristãos do Ocidente e do Oriente. Na sua refutação dirigida aos gnósticos, expõe o que se pode considerar a primeira elaboração teológica sobre a Encarnação: o Cristo é o homem querido pelo Criador, um homem adulto, imagem perfeita de Deus, que recapitula nele toda a história da humanidade e em quem todos os baptizados são progressivamente divinisados. Trata-se de uma formulação antropológica fundamental para a comprensão da novidade (originalidade) da experiência cristã.

 



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