• O ANTIGO TESTAMENTO
    E A SEXUALIDADE (II)


    FRANCOLINO J. GONÇALVES, op
    École Biblique et Archéologique Française, Jerusalém




2. Iavé e a sexualidade no Antigo Testamento

Relativamente à sexualidade, o AT dá uma imagem de Iavé muito diferente das imagens dos deuses ugaríticos e mesopotâmicos que evocámos (22). Segundo o AT, o povo bíblico teve Iavé como única divindade ao longo de toda a sua história. Iavé é invariavelmente do género masculino. É um deus. As numerosas metáforas que o AT usa em relação com ele apresentam-no, salvo raras excepções, sob a forma de um ser humano masculino: rei, pastor, esposo, pai, guerreiro, etc. Como os seus homólogos de Ugarit e dos demais panteões contemporâneos, Iavé tinha um corpo. Com maior ou menor frequência, o AT menciona a maioria das partes do corpo de Iavé: face (23), olhos (24), ouvidos (25), narinas (26), boca (27), lábios (28), língua (Is 30,27), dentes (Job 16,9), costas (Ex 33,23), braços (29), mãos (30), dedos (31), coração (32), rins (33), entranhas (Is 63,15) e pés (34). Como se vê, figuram nesta lista só as partes do corpo que se situam acima da cintura. A única excepção são os pés. O AT nunca refere a pelve de Iavé nem o que ela abriga. Nem sequer menciona alguma vez as nádegas e as pernas. Tudo se passa como se Iavé não tivesse sexo; precisamente, tudo se passa como se ele não fosse macho, apesar de ser do género masculino. Talvez seja ainda mais curioso o facto de que Is 63,15, o único texto que parece atribuir órgãos sexuais a Iavé se refere a um órgão genital feminino. Com efeito, o versículo interpela Iavé nos seguintes termos:

“Olha desde os céus e vê,
desde a tua morada santa e gloriosa.
Onde estão o teu zelo e a tua valentia?
O frémito das tuas entranhas e do teu seio (mé‘èyka werahamèyka) recusa-se- me?”

Em paralelismo com èyka (as tuas entranhas), rahamèyka deve ter o sentido próprio de “o teu útero”. Repare-se que, apesar de atribuir a Iavé traços femininos, o autor declara, no versículo seguinte, que Iavé é o pai do povo.

Dado que o AT não menciona os órgãos sexuais de Iavé, é natural que também não lhe atribua qualquer actividade sexual. Aliás, não tendo uma parceira da sua espécie, como poderia Iavé exercer uma actividade sexual?

3. Iavé, pai, mãe e esposo do seu povo

O AT atribui a Iavé títulos ou funções que relevam da esfera familiar e supõem ou comportam o exercício da sexualidade. Sem qualquer preocupação aparente de coerência, alguns desses títulos ou funções são incompatíveis.

3. 1. Iavé, pai do seu povo

O AT atribui a paternidade a Iavé em mais do que um contexto. Com efeito, uma série de textos apresenta Iavé como sendo o pai do povo personificado. Correlativamente, o povo é filho de Iavé. A primeira expressão desta relação entre Iavé e Israel datável com uma probabilidade razoável encontra-se em Os 11,1. Iavé declara: «Quando Israel era moço, eu o amei, e do Egipto chamei o meu filho» (35). De igual modo, em Ex 4,23, Iavé designa Israel pela expressão “o meu filho”. Em Ex 4, 22, Iavé explicita que Israel é o seu filho primogénito, privilégio que Jr 31,9 reconhece a Efraim (36). Em rigor de termos, a expressão “meu filho primogénito” posta na boca de Iavé, supõe que Israel/Efraim não é o seu filho único (37). Jr 3,19 e 31,9 referem os dois polos da relação: a paternidade de Iavé e a filiação do povo. Algumas passagens mencionam só a paternidade de Iavé (38), que Dt 32,6; Is 45,11 e Ml 2,10 fundamentam no facto de ele ter criado Israel.

Outros textos, dos quais os mais antigos se encontram no livro de Isaías (39), chamam filhos (no plural) aos membros do povo tomados individualmente (40). Com uma formulação mais inclusiva, Dt 32,19 e Is 43,6 falam de filhos e filhas.

Há no AT outra série de textos, pertencentes sobretudo ao Saltério, que reservam a relação paternidade-filiação aos laços que unem Iavé e o rei davídico (41).

3. 2. Iavé, mãe do seu povo

Vimos que Is 63,15 parece supor que Iavé tem útero. Além disso, embora nunca seja chamado mãe, Iavé é às vezes apresentado sob os traços de uma mãe (42) ou comparado a uma mãe que sofre as dores de parto (Is 42,14), que não se esquece do seu filho (43), que o consola (Is 66,13).

3. 3. Iavé esposo do seu povo

O AT atribui também a Iavé, com muito mais frequência, outro papel de carácter familiar. Iavé é o esposo do seu povo, o qual, correlativamente, é a esposa de Iavé (44). De acordo com as concepções então vigentes, a expressão das relações entre Iavé e o seu povo em termos conjugais sublinhava a iniciativa e a autoridade absolutas de Iavé. Qualquer marido que se prezava garantia à sua esposa não só o sustento e os demais bens necessários ou úteis, mas também a protecção contra todos os perigos e ameaças. Iavé só podia exercer essa dupla função de maneira incomparavelmente superior a qualquer marido humano. No que diz respeito ao povo, a expressão das suas relações com Iavé em termos conjugais implicava antes demais a sua dependência absoluta de Iavé, a quem devia uma fidelidade exclusiva.

Sem entrarmos em pormenores, vamos tentar seguir a difusão da concepção conjugal das relações entre Iavé e o seu povo, insistindo na história do casal tal como o AT a conta (45). Os testemunhos mais antigos, mais explícitos e mais concentrados dessa concepção remontam à segunda metade do séc. VIII a. C. Lêem-se no livro de Oseias, que contém também a primeira afirmação da paternidade de Iavé em relação a Israel. Embora normalmente se excluam, as funções de pai e de marido quadram ambas perfeitamente com o tema fundamental do livro de Oseias que é o amor de Iavé para com Israel tomado colectivamente. Segundo o livro de Oseias, a história de amor entre Iavé e Israel começou no Egipto, o lugar onde Iavé adoptou Israel como filho (Os 11,1) ou o desposou, segundo a metáfora usada.

A concepção conjugal da relação entre Iavé e Israel apareceu, por conseguinte, no contexto da lenda exodal das origens, uma lenda que provém do reino de Israel. Após a destruição de Israel em 722/1 a. C., as suas tradições “emigraram” para o reino de Judá, onde certos grupos se apropriaram delas, adaptando-as. Os principais testemunhos desse processo são os escritos deuteronómico-deuteronomistas, assim como os livros de Jeremias, Ezequiel e Isaías 40-66. Daí que sejam sobretudo estes livros proféticos que apresentam as relações entre Israel e Iavé em termos conjugais. Embora documentem o tema, os escritos deuteronómico-deuteronomistas não insistem nele (46). A concepção conjugal das relações entre Iavé e Israel propagou-se, acabando por assomar em vários outros livros do AT (47). Repare-se que ela está ausente do Saltério, a expressão por excelência do iaveísmo de Jerusalém.

Os livros de Oseias e de Jeremias (48) dividem a história do casal Iavé-Seu povo em três períodos. O primeiro corresponde à saída do Egipto e à travessia do deserto. Israel tendo-se mantido fiel a Iavé, o casal viveu então uma espécie de lua-de-mel inteiramente feliz (Jr 2,2-3). Mal chegou às portas de Canaã, Israel tornou-se infiel a Iavé (49). Abandonou-o, substituindo-o por amantes (50). O livro de Ezequiel faz um balanço ainda mais negativo da história do povo de Iavé. Segundo ele, não existiu qualquer idílio entre Israel e Iavé. A infidelidade de Israel e de Judá começou logo no Egipto (51), prosseguindo no deserto e em Canaã. Foi no Egipto que Jerusalém (representante de Judá) cometeu a infidelidade original, modelo de todas as demais (Ez 23,19) (52).

Os textos mencionam sobretudo duas categorias de amantes: Baal ou os Baals (53) e as grandes potências (Assíria, Babilónia/Caldeia e Egipto), de quem o povo esperava respectivamente os bens necessários para a vida e a protecção (54). Em Oseias e Jeremias, Baal aparece como o rival de Iavé mais temível, aquele que tem mais capacidade de sedução (55). Jeremias e Ezequiel insistem também nas nações estrangeiras (56).

Na lógica da imagem conjugal, os textos pertinentes expressam tanto o culto de Baal como as alianças com as grandes potências em categorias sexuais. Às vezes fazem-no de maneira precisa, usando o grupo lexical nâ’âf, que é o vocabulário do adultério (57). No entanto, na maioria dos casos empregam o grupo lexical zânâh. Embora os tradutores vertam esse grupo lexical por “prostituir-se” e “prostituição”, o étimo zânâh tem provavelmente um sentido mais vasto, abrangendo todas as relações sexuais extra-conjugais. Adquire diversos matizes, segundo os contextos em que é usado.

O objectivo das denúncias da infidelidade é levar o povo a entregar-se inteiramente a Iavé, o que implica o abandono dos seus rivais: deuses e nações (Jr 3,12-13). Para isso declaram que só Iavé pode dar os bens que o povo pede a Baal e a protecção que busca nas grandes potências. Os 2,7.10-11.14-15, provavelmente a expressão mais antiga do tema, fá-lo de maneira particularmente incisiva em relação ao culto de Baal.

«7. A sua mãe (isto é, a mãe dos Israelitas) “prostituiu-se”,
tornou-se uma vergonha aquela que os concebeu.,
pois disse: “Correrei atrás dos meus amantes,
que me dão o meu pão e a minha água,
a minha lã e o meu linho,
o meu azeite e a minha bebida.”
10. Mas ela não reconheceu
que era eu (isto é, Iavé) quem lhe dava o trigo, o mosto e o azeite,
quem lhe prodigalizava a prata e o ouro
que gastava com Baal.
11. Por isso retomarei o meu trigo a seu tempo
e o meu mosto na sua estação.
Retirar-lhe-ei a minha lã e o meu linho
com que cobria a sua nudez.
14. Devastarei as suas vinhas e figueiras,
das quais dizia: “É a paga que me deram os meus amantes”.
Vou transformá-las num matagal,
e os animais do campo as devorarão.
15. Castigá-la-ei pelos dias dos Baals,
aos quais queimava incenso.
Enfeitava-se com o seu anel e o seu colar
e corria atrás dos seus amantes,
mas esquecia-se de mim!
Oráculo de Iavé.»

Jr 3,23-24 declara que o resultado do culto de Baal é o oposto do que se esperava, pois, mediante os sacrifícios que lhe eram oferecidos, o próprio Baal devorava o que devia ser o sustento do povo.

Os 8,8-10 apresenta a Assíria, a grande potência de então, como amante de Israel/Efraim e, por conseguinte como rival de Iavé.

«8. Israel foi devorado.
Agora estão entre os povos como objectos indesejáveis.
9. Quando eles subiram à Assíria
– um asno selvagem solitário –
Efraim contratou amantes.
10. Ainda que os contrate entre as nações,
agora eu os reunirei
e se contorcerão de dores sob a carga (58) do rei dos príncipes.»

Ezequiel é o livro bíblico que mais insiste na apresentação das alianças de Judá com as demais nações (23,30.40) – Egipto (16,26-27), Assíria (59) e Babilónia/Caldeia (60) – em termos de infidelidade conjugal (61).

Por fim, há textos que apresentam as desordens e as injustiças sociais em termos sexuais. É o caso de Os 6,8-10.

«8. Galaad é uma cidade (62) de malfeitores
com marcas de sangue.
9. Como bandidos em embuscada,
assim é uma quadrilha de sacerdotes.
Assassinam no caminho que leva a Siquém,
conforme o plano que haviam feito.
10. Na casa de Israel vi uma coisa horrível.
Ali está a “prostituição” de Efraim,
e Israel tornou-se impuro.»
Is 1,21 é ainda mais claro a esse respeito. O texto acusa também explicitamente Jerusalém de infidelidade.

Segundo a versão da história de Israel e de Judá dada pela maioria dos textos do AT, o chamado exílio babilónico marcou uma viragem. Simplificando as coisas ao extremo, pode dizer-se que o período anterior se caracterizaria pelo apelo à conversão, pela sua recusa e, como consequência, pelo anúncio da ruína dos dois reinos. O anúncio tendo-se cumprido com a ruína de Judá e o exílio babilónico, Iavé decide recomeçar. Daí que a partir de então predominam os anúncios da salvação. Esta esquematização da história bíblica estendeu-se naturalmente à imagem da relação conjugal entre Iavé e o seu povo. Segundo a apresentação dos livros de Oseias e de Jeremias, o exílio inaugura o terceiro período na história dessa relação. A partir de então a grande maioria dos textos proféticos que usam a imagem conjugal já não sublinham as infidelidades da esposa, mas sim a fidelidade do esposo, que leva à reconciliação e ao recomeço da vida conjugal feliz entre Iavé e o povo. Os 2,16-25 e Ez 16,59-63 anunciam claramente esta mudança. Is 40-66 situa-se nesta fase da relação (63). A esposa é Jerusalém. Iavé anuncia-lhe que deixará de ser chamada a abandonada ou a repudiada, prometendo-lhe a plena realização como esposa, o que inclui também a maternidade de uma multidão de filhos (64).

Ezequiel afirma que Samaria e Jerusalém deram filhos a Iavé (65). No entanto, nenhum texto atribui uma actividade sexual a Iavé, como seria normal na lógica da imagem. No dia da boda, tal como é evocado em Ez 16,8-14, Iavé limita-se a ataviar ricamente Jerusalém. Não há qualquer alusão à alcova nupcial. Passa-se sem transição do ataviamento da noiva à sua infidelidade. Os vv. 15-19 acrescentam que Jerusalém põe ao serviço dos seus amantes, isto é, dos deuses de Canaã os atavios com que Iavé a ornara, assim como as demais dádivas com que a presenteara.

Repare-se que a inexistência de actividade sexual de Iavé quadra com a inexistência de qualquer referência aos seus órgãos sexuais. A este respeito, é flagrante o contraste entre a imagem de Iavé e a imagem que Ezequiel pinta dos seus rivais. Com efeito, Ezequiel não hesita em falar do sexo dos rivais de Iavé e dos seus jogos amorosos, às vezes em termos escabrosos, pelo menos, para a nossa sensibilidade. Assim, Ez 23,20 compara o sexo dos Egípcios ao dos burros e dos cavalos, de grandes dimensões. Ez 16,26 sugere claramente que foi o tamanho do sexo dos Egípcios que seduziu Jerusalém. Ez 23 descreve os jogos amorosos dos amantes de Samaria (vv. 3.8) e de Jerusalém (v. 21). No entanto, os textos insistem sobretudo no despudor da esposa de Iavé e na sua insaciedade sexual. Assim Jr 2,24 compara Jerusalém a uma jumenta selvagem com cio. Ez 16,25 acusa-a de mostrar (66) o sexo (67) a todos os transeuntes (68).