• O ANTIGO TESTAMENTO
    E A SEXUALIDADE (I)


    FRANCOLINO J. GONÇALVES, op
    École Biblique et Archéologique Française, Jerusalém




SEMANA DE TEOLOGIA EM FÁTIMA 2003 - O ENIGMA DA SEXUALIDADE
INTRODUÇÃO
Sob um ou outro dos seus múltiplos aspectos – físico, psicológico, social, cultural, legal –, a sexualidade está presente, com maior ou menor relevo, em todas as partes do Antigo Testamento (AT). Dada a sua grande diversidade quanto à origem, à data e ao objectivo, os textos bíblicos expressam uma considerável variedade de abordagens da sexualidade e de opiniões nessa matéria. Estando centrados no casal humano, os dois relatos da criação com que começa o AT situam a sexualidade no quadro do cosmos e da humanidade. Além disso, enunciam os grandes princípios que devem presidir ao seu exercício. Os dois relatos contêm, em particular reflexões sobre a existência dos dois sexos e as suas consequências, sobretudo no que toca às relações entre o homem e a mulher. O Pentateuco contém também vários textos de carácter legislativo que regulamentam de maneira bastante minuciosa o exercício da sexualidade. Abundam no Pentateuco e nos livros históricos textos que mencionam ou relatam práticas sexuais, aprovando umas, reprovando outras ou ainda não julgando outras. Fruto da reflexão sobre a condição humana, os escritos sapienciais estão cheios de observações atinentes à sexualidade, em particular às relações entre o homem e a mulher. A sua expressão máxima é o Cântico dos Cânticos, um poema de amor impregnado de erotismo.

No AT, a sexualidade não tem só por campo e horizonte o mundo humano. Com efeito, algumas correntes, que se expressam sobretudo em vários livros proféticos, fizeram da sexualidade uma metáfora para expressar as relações de Iavé ou dos seus rivais com Israel, Judá ou Jerusalém. A sua metaforização revela e, ao mesmo tempo, acresce a importância da sexualidade.

No que diz respeito à sexualidade, como no que diz respeito a outras facetas da realidade humana, a Bíblia é o espelho da vida. O lugar que a sexualidade ocupa no AT corresponde à importância que ela teve na vida dos grupos humanos que o escreveram. Sob esse ponto de vista, como sob outros, esses grupos são uma boa amostra da generalidade das sociedades humanas de todos os tempos, inclusivamente das sociedades ocidentais modernas.

Sendo radicalmente religiosas, as antigas sociedades do Próximo-Oriente, concretamente as sociedades semitas das quais os autores bíblicos faziam parte, viam no mundo humano uma espécie de cópia, decerto muito pálida, do mundo divino. A ordem cósmica e social tinha assim o seu fundamento no mundo divino, do qual derivava também a sua legitimidade. Inversamente, ou melhor dito, os antigos próximo-orientais concebiam os deuses e o mundo divino à sua própria imagem. Tinham dos deuses e do mundo divino uma concepção antropomórfica, projectando no mundo divino o seu próprio mundo humano. Os deuses e o seu mundo eram uma imagem muito ampliada dos seres humanos e do seu mundo. A expressão vetero-testamentária mais clara desta concepção é a afirmação segundo a qual os seres humanos (’ādām) foram criados à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26-27).

Sendo assim, a concepção que o AT tem da relação entre Iavé e a sexualidade deve determinar, em grande parte, a sua concepção da sexualidade humana. Daí que me proponha estudar na primeira parte a relação entre Iavé e a sexualidade. Começarei por esboçar o quadro que o AT pinta. Havendo razões de pensar que essa imagem é o resultado de uma longa evolução, tentarei depois distinguir as diferentes etapas dessa evolução. Para isso valer-me-ei também de informações extra-bíblicas hebraicas ou não, nomeadamente das mitologias e dos cultos dos outros povos semitas. A segunda parte será consagrada à sexualidade humana e ao seu exercício no AT (1).

IAVÉ E A SEXUALIDADE

1. Os deuses e a sexualidade no Próximo-Oriente antigo

Segundo a concepção antropomórfica dos antigos próximo-orientais, os seres divinos têm um corpo como os seres humanos. Isso implica, entre outras coisas, que os seres divinos são sexualmente diferenciados como os seres humanos. O mundo divino está povoado por deuses e deusas como o mundo humano está povoado por homens e mulheres. Os deuses e as deusas têm, naturalmente, actividades sexuais comparáveis às dos homens e das mulheres. Relativamente à sexualidade, como aos demais aspectos da vida, entre o mundo divino e o mundo humano existe essencialmente uma diferença de grau ou de intensidade, que são máximos no mundo divino.

Não é possível nem necessário para o nosso estudo, tratar a questão da sexualidade em todos os panteões do antigo Próximo-Oriente nem sequer nos panteões dos vários povos semitas. Daí que escolha para amostra o panteão cananeu. Tendo sido o mundo cananeu a matriz dos reinos hebraicos e do antigo judaísmo, o conhecimento do seu panteão é sem dúvida alguma o mais pertinente para o nosso propósito. Outra vantagem da escolha do panteão cananeu reside no facto de que se conhece bastante bem, graças aos textos de Ugarit, sobretudo aos textos mitológicos. Farei também uma incursão no mundo mesopotâmico, abordando a questão da chamada “prostituição sagrada/religiosa/cultual”. A hipótese da sua existência no mundo mesopotâmico influenciou grandemente a compreensão que os exegetas e os historiadores modernos têm da religião e do culto de Israel e de Judá.

1.1. A sexualidade no panteão de Ugarit

A imagem do panteão ugarítico mais saliente é a de uma família real que se estende a três gerações. O patriarca era Ilu, correspondente ao hebraico El, a forma do nome que usarei. El tinha como esposa Athirat, Acherá em hebraico. El e Acherá eram o pai e a mãe não só dos deuses mas também da humanidade. Segundo a tradição melhor documentada, El tinha setenta filhos e filhas divinos (2). Os mais relevantes para o estudo da Bíblia são Baal, Yam (Mar) e Môt (Morte) entre os deuses; Anat e Athtart (3) entre as deusas. Os filhos de El podiam constituir família e ter a sua própria progenitura (4). Estas três gerações divinas constituiam as classes superiores do panteão. Eram servidas por classes de divindades menores (5).

Os mitos ugaríticos não se coibem de evocar tanto as fraquezas como as proezas sexuais dos deuses, nomeadamente de El e de Baal. Começo por El, citando um extrato do mito-ritual que evoca a cura da sua impotência, seguindo-se-lhe a concepção e o nascimento de Chahar (Estrela da Manhã) e Chalim (Estrela da Tarde), dois dos seus filhos divinos (6).

«... à beira-mar,
avançará à borda do oceano (thm).
El (agarrará) as duas mulheres que fazem subir (a água),
que fazem subir (a água) até ao cimo da bacia.
Uma baixar-se-á, a outra erguer-se-á.
Uma gritará : “Papá, papá!”,
a outra gritará: “Mamã, mamã!”,
e o membro viril (7) de El alongar-se-á como o mar,
o membro viril de El alongar-se-á como a maré,
o membro viril de El será longo como o mar,
o membro viril de El será longo como a maré (8).
El agarrou as duas mulheres que fazem subir (a água),
que fazem subir (a água) até ao cimo da bacia.
Agarra-as e instala-as em sua casa.
[Mas] o ceptro (9) de El baixa,
o bastão do seu membro viril esmorece.
[Então] atira um dardo para o céu,
atira no céu a um pássaro.
Depena-o, põe-o nas brasas.
El! Como são belas as mulheres!
Se ambas gritarem:
“Oh marido, marido, o teu ceptro baixa,
o bastão do teu membro viril esmorece”,
quando o pássaro estiver no lume a assar,
e quando o tiveres assado nas brasas,
as duas mulheres [serão] as mulheres de El,
as mulheres de El para sempre.
Mas se as duas mulheres gritarem:
“Oh papá, papá, o teu ceptro baixa,
o bastão do teu membro viril esmorece”,
quando o pássaro estiver no lume a assar,
e quando o tiveres assado nas brasas,
as duas moças serão as filhas de El,
as filhas de El para sempre.
Ora eis que as duas mulheres gritaram:
“Oh marido, marido, o teu ceptro baixa,
o bastão do teu membro viril esmorece”,
quando o pássaro assava no lume
e quando o tinha assado nas brasas.
As duas mulheres serão as mulheres de El,
as mulheres de El para sempre.
[El] inclina-se, beija-lhes os lábios.
Eis que os seus lábios são doces,
Doces como romãs.
Depois do beijo, a concepção.
Depois do abraço e dos ardores,
as duas mulheres chegam a termo.
Dão à luz Chahar e Chalim.
Dão a notícia a El:
- “A mu[lher, ó] El, deu à luz”.
- “Que progenitura me deu?”
- “Chahar e Chalim”.
- “Levai uma oferenda à Dama Chapach e às estrelas”.

Baal, pelo menos segundo a letra dos textos de Ugarit, anda associado à bestialidade bovina. Cito um extrato do mito da luta de Baal com a Morte (Môt), que atribui a Baal relações sexuais com uma bezerra e uma vaca (10).

«... “Tu (isto é, Baal), toma contigo
a tua nuvem, o teu vento, o teu raio, a tua chuva,
os teus sete lacaios, os teus oito oficiais.
Leva contigo Pidray, a luminosa,
Talay, a pluviosa (11).
Vai então ao coração da montanha, minha sepultura.
Levanta a montanha sobre as mãos,
a colina sobre as palmas das tuas mãos,
desce à morada da reclusão subterrânea.
Serás contado entre os que descem debaixo de terra,
e os deuses saberão que morreste.”
O muito poderoso Baal obedece.
Ama uma bezerra no pasto,
uma vaca no campo que confronta com a residência dos mortos,
deitando-te com ela sete e setenta (vezes),
ela fá-lo [mon]tar oito e oitenta (vezes) (12).
[Con]cebe e pare um jovem macho. »

Cito ainda outro episódio da vida sexual de Baal. Embora o texto seja muito fragmentário, conservaram-se pormenores muito realistas (13).

«Ele inflama-se e agarra-lhe a vulva (qrb).
Ela inflama-se e agarra-lhe o sex[o].
(...)
[Depois o bei]jo, a concepção e nasce
(...)».

O sujeito masculino é Baal. Pensava-se geralmente que o sujeito feminino fosse a sua irmã Anat, apresentada sob forma bovina, mas essa compreensão do texto é actualmente posta em dúvida ou mesmo rejeitada.

1.2. A questão da chamada prostituição sagrada/cultual na Mesopotâmia

Sob a influência da chamada “Escola do Mito e Ritual”, iniciada por William Robertson Smith (14) e propagada por James George Frazer (15) e outros, pensou-se durante cerca de um século que as relações sexuais constituiam um elemento importante dos cultos mesopotâmicos e cananeus. O principal rito teria sido a chamada hierogamia, isto é, a união sexual entre o rei, incarnação do deus Dumuzi (Tamuz), no caso da Mesopotâmia, e uma sacerdotisa, representante da deusa Inana/Ichtar. Celebrada no templo da deusa no ano novo (fim do Inverno-começo da Primavera), a hierogamia destinar-se-ia a provocar ou a causar, de maneira mágica ou porventura sacramental, a fecundidade da terra, dos animais e dos próprios seres humanos, sem a qual a sobrevivência humana é impossível. A hierogamia régia prolongar-se-ia noutros ritos do mesmo teor celebrados por membros do clero, por estes e leigos ou só por simples leigos. Esses ritos teriam o mesmo quadro e, mutatis mutandis, a mesma função que a hierogamia.

Está, de facto, documentada a prática de um rito de união sexual entre o rei e a deusa Inana na cidade suméria de Uruk (actual Warka, no sul do Iraque), no 3º milénio e nos começos do 2º milénio a. C. Inana, a padroeira de Uruk, era a rainha do céu, a estrela da tarde, Vénus, a filha do deus Lua. A sua personalidade tinha muitas facetas: era ao mesmo tempo deusa do amor e da sensibilidade, da guerra e da vitória. Ritos semelhantes aos de Uruk estão documentados noutras cidades sumérias (Isin, Larsa) nos começos do 2º milénio a. C. Relativamente ao 1º milénio, há indícios da existência da hierogamia na Mesopotâmia, mas tratar-se-ia de um rito exclusivamente simbólico, que tinha como protagonistas as estátuas de um casal divino (16).

Pelo menos na sua forma mais antiga, a hierogamia destinava-se a assegurar o bem do rei, do povo e do país. Tinha assim ao mesmo tempo um alcance cósmico, religioso e social, pois operava uma espécie de recriação, a união entre os mundos divino e humano e a harmonia entre a sociedade e a natureza (17).

Em contrapartida, os estudos dos últimos vinte anos mostraram que nada permite afirmar que os cultos mesopotâmicos tenham comportado outros ritos de carácter sexual, de forma oficial e organizada (18). De facto, os estudos anteriores baseavam-se fundamentalmente no testemunho de Heródoto. Com efeito, o Pai da História conta que “todas as mulheres babilónicas devem, uma vez na vida, ir a um santuário de Afrodite (19) e aí unir-se a um estranho”, em troca de dinheiro que era oferecido ao templo (20). Ora esta informação tem sido muito contestada nos últimos trinta anos e são actualmente raros os autores que lhe reconhecem algum valor histórico (21).