CONVENTO DO LUMIAR


  • A VONTADE DE PODER
    Carmo Ferreira


Abertura

O tema que me foi proposto diz "A vontade de poder ", e esta expressão alude imediatamente a um filósofo, Nietzsche, que nela concentrou o essencial das suas posições. Todo o pensamento de Nietzsche tem, de facto, como eixo a defesa desta instância criadora e impulsão inventiva, que é a vontade de poder. Suponho, porém, que, ao proporem-me este tema, o propósito não seria que me ocupasse sobretudo de Nietzsche, por mais fundo que seja o alcance da sua doutrina na reflexão sobre o poder. Penso que a colocação deste tema na abertura do presente ciclo significaria que me confiavam uma como que introdução às sessões seguintes, no contexto desta reflexão sobre "a vã glória de mandar "; foi justamente nesse sentido que organizei esta minha reflexão que sumario em quatro pontos, em apoio a uma exposição que irei construindo à vossa frente.

Um primeiro ponto, o esclarecimento do conceito específico da vontade de poder como tema nietzschiano e a sua irradiação como síntese de todo um movimento intelectual que arranca de alguma maneira do séc. XVIII e que continua ainda em vigor, em algumas das suas vertentes. E nesta nossa actualidade da questão de poder, de directa linhagem nietzscheana, há um autor que é impossível deixar de ter em conta, e esse autor é Michel Foucault. Daqui passarei ao verdadeiro esquema da minha exposição que me surgiu na liturgia da festa de N. Sra da Assunção, ao ouvir ler a Epístola de São Paulo, um texto que de repente se me ofereceu como uma recapitulação perfeita da temática do poder.

Num terceiro momento há que aludir a alguns aspectos da complexidade ou da ambivalência e da ambiguidade da própria questão do poder, e terminaria este terceiro ponto pelo testemunho poético, um texto do séc. XIX, mas que pode ser lido ainda hoje como uma directa e radical aproximação do tema, susceptível de nos conduzir pelos meandros e pelas máscaras do fenómeno da experiência do poder. O último aspecto visado prende-se com uma questão de extrema actualidade, ou seja, perguntando-me qual é hoje o verdadeiro lugar do poder, qual é hoje a sede e a instância do poder real. Que poder nos ameaça efectivamente hoje, ou que já vem a caminho, porque estamos de facto confrontados com um processo que está ainda longe de ter manifestado toda a sua força agressiva e ameaçadora da realidade humana. Porventura, no percurso da história, nunca nos vimos confrontados com um carácter tão avassalador e tão radical desse poder a que hoje começamos a estar submetidos e que põe em causa a própria natureza da humanidade. Ou seja, um poder que não se limita a contrariar, que não se limita a ser domínio sobre o humano, mas porventura faz perigar a própria subsistência do humano, daquilo que até agora nos habituámos a considerar como o humano.

Vontade de poder e afirmação de vida

Impõe-se começar então por um esclarecimento muito breve acerca do conceito de vontade de poder:

Este conceito, de assinalada proveniência nietzschiana como se disse, radicaliza a tese de Schopenhauer de que a essência mais íntima do ser é " vontade de viver ". A vida é identificada como força, impulso criador, energia e princípio dinâmico de unidade de todas as funções orgânicas fundamentais, uma força que tem em si mesma o ponto de aplicação ou seja: viver é mais viver, viver é continuar a viver, viver é mais do que viver de alguma maneira, e a vontade é essa pura afirmação de si. Essa afirmação da vida desde o seu estádio simplesmente biológico até à criação corporal e sobretudo essa tensão de criação e de instauração da ordem que a vida traz consigo, é expressa, por Nietzsche, como vontade de poder. Vontade de poder é assim vontade de viver, e vontade de viver é sobretudo capacidade de impelir a vida para uma plena realização de si. Este impulso vital não tem outra lei, não tem outro ponto de referência senão justamente o incremento da própria vida. E na sua expressão mais acabada de vontade de viver, está a criação de um horizonte de sentido para essa mesma vida. É esse horizonte de sentido que tradicionalmente encontra a sua organização, a sua formulação, através de uma moral, de um sistema de valores. A moral seria deste modo encarada como o encaminhamento dessa vontade de poder; nela encontraríamos as baias, as balizas da condução da vida e a própria justificação da vida, a própria posição daqueles motivos em nome dos quais vivemos e conduzimos a vida.

A atenção a esta força da própria vida gravitando em torno de si mesma para continuar a ser vida e ser mais vida, na perspectiva crítica de Nietzsche, vem prejudicada por toda uma série de dispositivos, uma série de decisões na ordem moral que têm o efeito, justamente, contrário. A moral que ele essencialmente critica é uma moral de desvalorização da vida, uma moral de perda da vida e culpa disso essencialmente a experiência cristã na sua deriva histórica. O cristianismo teria desrealizado a energia vital, ter-se-ia constituído como uma vontade de negação da vida, sublinhando a contenção e o menosprezo, apelando, não para o acréscimo, mas para a destruição e para a rebaixamento dessa mesma vida. Seria, por conseguinte, uma negação, uma diminuição, transportaria consigo um constante ataque à vida através daquelas atitudes que ele apresenta como próprias do cristão e que significariam tão só o esvaziamento, o empobrecimento dessa energia vital. E essa desrealização da vida não significa que a moral cristã, do ponto de vista de Nietzsche, tenha significado um pôr de lado a vontade de poder. Não, a situação é bem mais complexa, porque uma moral pela negativa, uma moral de abstenção e redução do potencial da vida é ainda um exercício dissimulado da vontade de poder. Ou seja, o cristianismo na perspectiva parcial, unilateral de Nietzsche, não é o abandono efectivo da perspectiva da vontade de poder, é uma forma camuflada, um modo interessado de contrariar a vida. O programa da obediência, o programa da humildade, o programa da fragilidade, da atenção aos mais fracos e aos mais sofredores, ou seja aqueles que estão incapacitados ou diminuídos da sua energia vital, não acontece por acaso ou por alguma maldade, acontece em nome de uma vontade de poder inerente, intrínseca à realização histórica do cristianismo. É assim que poderíamos condensar esta crítica de Nietzsche numa fórmula incisiva e que me parece extremamente esclarecedora e que nos toma vigilantes, e vou citar literalmente: «quando ouvires um 'tu deves', pergunta-te se o que te estão a dizer não é 'eu quero'». Aquilo que Nietzsche contrapõe a esta desvitalização, a esta perda da afirmação plena de vida não é um exercício arbitrário da vontade. De modo nenhum. É a invenção de uma outra forma de afirmação que não venha marcada essencialmente pela negação, pela restrição, pelo rebaixamento do humano. E, por isso, a vontade de poder é nele sempre, insistentemente, apresentada como posição, como decisão, como assunção da sua própria existência e, logo, não se trata de um posicionamento contra a moral, antes da reivindicação de uma outra moral, uma moral que Nietzsche sintetiza em expressões que ficam célebres: uma moral do super-homem, a moral do sentido da terra, a moral da fidelidade à terra, a moral do sim. O super-homem não tem nada a ver com a imagem criada na literatura e no cinema -homem como dominador, chefe em sentido político e em sentido histórico, não é uma raça de super-homens que ele propõe mas, como ele diz, o homem do sim, o homem capaz de prometer. Esta capacidade de prometer significa a fidelidade a esse projecto de um futuro. E invoca, nos pouquíssimos, nos raríssimos exemplos do que seria a concretização do super-homem, a personalidade de "um César com o coração de Cristo ". Neste paradoxo se encontra, efectivamente, a plenitude da sua defesa da vontade de poder. " Um César com o coração de Cristo ", quer dizer, a assunção da responsabilidade da força, uma força ao serviço da vida, de mais vida e com o coração de Cristo que, na linguagem de Nietzsche, significa esse exercício do poder que não vem contaminado por uma vontade de humilhação do outro, não nasce de um ressentimento contra a vida, não nasce de uma acusação à vida porque, diz ele, a única lei que vale, a do super-homem, é não julgar. E acrescenta este comentário: "só o amor pode julgar ". Só o amor pode julgar; mais uma vez, um paradoxo porque justamente a relação amorosa é uma relação fora do esquema do juízo. Não acusa, não julga, é afirmação, é acréscimo e assunção de vida.

Como referia há pouco, esta posição que, no fundo, reconduz a vontade de poder ao poder da vontade - pois esta afirmação significa obviamente a concentração das energias do ser humano na invenção, na ampliação, no crescimento mesmo da vida, não é inteiramente original.

Não é que, no imediato, o filósofo esteja a pensar naquele que foi o seu mestre de filosofia, Schopenhauer, e nas modernas teorias biológicas, nomeadamente as de um Darwin, que justamente fazia da vida esse dinamismo de afirmação, mesmo à custa das outras vidas menorizadas por debilidade ou debilidades de vária ordem, ou seja onde Darwin considerava que a vida só obedece a uma única lei, que é a lei da sua sobrevivência, da sua persistência e que essa persistência se faz como luta pela vida através da selecção dos mais capazes, dos mais capazes do ponto de vista da vida. Todavia, não é esta proximidade a mais interessante; o dado mais relevante parece-me residir no facto de que esta sobrevalorização da vontade arranca pelo menos de dois séculos antes, fundamentalmente da filosofia do século XVIII, de Kant e do Idealismo Alemão, a partir do estabelecimento kantiano da tese de que o verdadeiro acesso à realidade não se faz por via intelectual ou cognitiva, que só nos restitui um mundo de fenómenos, um mundo sem densidade ontológica e um conhecimento sem abertura para o plano absoluto da verdade, que a realidade é inabordável em si mesma e que, portanto, a verdade está definitivamente afectada por uma insuperável relatividade. A verdade dá-se essencialmente como um projecto de realização, como um trabalho que o sujeito faz sobre si mesmo, e desse trabalho é a vontade o seu operador. Deste modo, esta insistência, este sublinhar de que o verdadeiro modo de aceder à realidade é pela prática, pela acção, pela vontade, trazem consigo algumas consequências importantes de que se destaca o seguinte: o que se pretende com esse dinamismo da acção, com esse dinamismo da vontade é essencialmente a auto-constituição, ou seja a invenção de si, a posição de si como poder objectivante. Esta doutrina acaba por ter um resultado ambivalente de duplo sentido: por um lado, obriga a pensar que, de facto, aquilo que é real é aquilo que o sujeito humano opera, ou seja, a responsabilidade pela verdade e a responsabilidade pela realidade representam um investimento pessoal, não há por aí verdades disponíveis a serem colhidas, que a verdade é um acontecimento produzido, querido, e porque é querido e produzido por esse trabalho da vontade, acaba por ser simplesmente um sujeito como autogénese. Tal doutrina tem o efeito decisivo de chamar a atenção para o facto de que a natureza da realidade humana, no fundo, está neste assumir do seu próprio destino como protagonista da sua própria história, num trabalho de autoconstituição em que a verdade coincide com a liberdade.

O poder e o apagamento da face do homem

A protagonização de si em que culmina o primado da vontade passa a designar a expressão máxima da responsabilidade. Mas tem um efeito contrário, simultaneamente, que é enclausurar o indivíduo em si mesmo, fechá-lo numa identidade construída, prendê-lo nesta pura referência a si e levá-lo a perder o contacto com a realidade do mundo e com a realidade do outro, da alteridade dos outros, da familiaridade das coisas. E esta duplicidade, por assim dizer, vai revelar um traço que permanece sob diferentes formas na evolução do problema do poder. No fim deste processo, no fim desta nossa história, diria, dos últimos trinta anos, chegámos ao termo de um ciclo que se deixa, simbolicamente, condensar numa expressão que é: "a morte do homem". Passo por isso agora rapidamente à menção do pensamento de M. Foucault - foi essa a expressão que ele cunhou e que de alguma maneira condensa a sua reflexão sobre o poder, na linha mesma da proclamada 'morte de Deus' que era em Nietzsche a formulação metafórica desse puro exercício da vontade de poder como afirmação de si. Se por detrás de todo o mandamento moral está uma vontade de domínio, uma vontade que exige obediência, então os referenciais da vida, o horizonte de sentido que a moral consigo trazia, desaparecem. É essa oclusão, como quem apaga a linha traçada do horizonte, que Nietzsche chama 'a morte de Deus', a ausência, o esbatimento do horizonte orientador da existência. A morte do homem, na tematização de Foucault, significa isto: que o poder deixa de ser uma atestação de si, deixa de ser uma vontade de afirmação de si para ganhar a natureza anónima de uma ordem identificadora, na dupla acepção de unidade e de autoridade estruturantes e impositivas. O poder não é simplesmente atributo dos que exercem o poder, mas a nossa cultura é dominada, a cultura europeia (ele tem o cuidado de precisar que fala da cultura europeia dos últimos três séculos), a cultura europeia ocidental, diz ele, é dominada por um poder anónimo que Foucault aborda e que investiga fundamentalmente através de zonas da experiência humana onde melhor se capta esse anonimato do poder. Ele fala predominantemente da medicina, de modo especial da psiquiatria e das suas instituições, dessa experiência de categorialização do doente mental, fala da experiência carceral e dos seus estabelecimentos, das cadeias, dessa população privada de vida pública; refere ainda, com particular insistência, as consequências da prática católica da confissão e da direcção espiritual. Esse poder que emerge nas sociedades, de maneira nenhuma reside primariamente no poder político nem no poder económico formalmente instituídos; esse poder sem rosto e sem nome exerce-se através de dispositivos que conduzem às mesmas consequências, ou seja, são factores da ordem, são criadores da ordem, isto é, são mecanismos de disciplina, são mecanismos de submissão dos seres humanos a eles sujeitos, a uma lógica que não tem nos indivíduos a sua origem e que representa uma lógica de produtividade, de produção. Os casos que analisa são extremamente explícitos - tenho pena de não ter poder ler duas ou três paginas onde ele condensa essa sua teoria do poder - mas que são, então, formas
de regular a vida social e a vida individual segundo um critério de codificação. O primado da vontade exprime-se, sobretudo, como a criação de uma ordem, de um código, e esse código não só é condição da eficácia do funcionamento dos seres humanos como também, por sua vez, cria uma discriminação essencial entre os normais e os anormais, ou seja, a anormalidade (não no sentido mais obvio da palavra, mas entendido como os que fogem da norma, os que não enquadram no código) foram os doentes mentais, são os presos, são aqueles faltosos do ponto de vista legal que escapam à disciplina das autoridades, ia a dizer espirituais, talvez me seja melhor, dos aparelhos eclesiásticos. Esta vontade tem pois como resultado a disciplina, a disciplinação e a marginalização e há uma evolução, ou seja, não são sempre os mesmos os marginalizados, ou não é sempre a mesma a função disciplinadora e a função produtiva. Foucault tem sempre o cuidado de dizer que não há aqui nenhum juízo moral, ele não está a fazer nenhum juízo moral, procede apenas à recomposição dos dinamismos subterrâneos do nosso viver conjunto e, para insistir que não se trata de um juízo de moralização, refere que esta disciplina e que esta consideração da diferença entre normais e anormais provoca, por seu lado, um factor de identificação dos indivíduos, até mesmo pela resistência que suscita, também ela configuradora de identidade. Sem essa disciplina, sem essa estruturação exterior e anónima, os indivíduos não dariam corpo ao "cuidado de si". Mas a identidade reflexa é uma identidade que lhes vem por interiorização dos códigos em uso e varia com os tempos, ou seja, nada disto é estático, nada disto é definitivo mas constitui uma história em constante mutação.

Basta como introdução: a vontade de poder revela-se no essencial nesta polarização entre um poder como auto-afirmação e um poder como exercício anónimo de um dinamismo social a que todos estamos submetidos e que não tem rosto nem figura e que o toma, por isso, extremamente difícil de detectar, extremamente difícil de subverter porque se camufla de muitas e variadíssimas maneiras e permeia as instituições, instituições aqui não num sentido só de sociedades organizadas, más instituições de carácter cultural, de carácter moral e mesmo de carácter ideológico, de carácter afectivo, e não foquei a função da sexualidade, no poder sobre o corpo, que é um dos dispositivos mais eficazes que esse poder anónimo detém.

Poder e obediência

A inspiração da liturgia da festa de N. Senhora da Assunção pode ajudar-nos a traçar os grandes pontos de uma reflexão sobre o poder. Trata-se da passagem da 1ª Carta de S. Paulo aos Coríntios, Capítulo XV, vv. 24-28, de que retenho o essencial para o tema. Lemos aí:

"Depois será o fim. Quando Cristo entregar a realeza a Deus Pai, depois de ter destruído todo o Principado. Dominação e Potestade. [ ...] O último inimigo destruído é a morte. [ ...] E quando todas as coisas lhe tiverem sido submetidas, então o próprio Filho se submeterá Àquele que tudo lhe submeteu, afim de que Deus seja tudo em todos."

Não vou fazer exegese bíblica nem esquecer que por detrás destas expressões - Principado, Dominação, Potestade - estão figuras da apocalíptica judaica; mas é um facto assinalável que as designações usadas no texto sejam as designações da linguagem clássica do discurso da reflexão grega sobre o poder: arké, ecousia, dynamis. O que merece atenção é poder levar-nos a organizar com elas uma reflexão essencial sobre a questão do poder.

Primeiro elemento:

Tudo isto acontece, "depois será o fim." Esta afirmação alerta-nos para o facto de que um situar-se, um agir, fora da linguagem do discurso do poder, das funções e das relações do poder, é algo que não acontecerá no interior da história humana. Uma superação definitiva, um outro modo de existência para além do poder, é um elemento de carácter escatológico. E esta transferência escatológica para um depois do poder significa que uma reflexão a sério sobre a história nos mostraria que a história se reduz, no fundo, à luta em torno do poder. A história é a história do poder e a história da resistência ao poder. A história é a recorrência, a ressurgência do poder com as suas características que ficam na memória e as tentativas de resistência, a busca de uma alternativa, a contenção do poder dentro de certos limites, a justificação desse mesmo poder, a tentativa que me parece sempre ingénua e sempre provisória de controlar esse mesmo poder. Poder e história, eis uma primeira relação a que se deve atender.

Um segundo ponto é que não se pode falar de poder sem considerar que o poder instala, necessariamente, pois é da sua própria natureza, uma relação assimétrica. Instala-se uma assimetria em todo o poder: não há poder sem obediência. Não há poder sem submissão, sem reconhecimento do poder. Portanto, é inerente à relação de poder esta assimetria entre quem manda - quem pode - e quem obedece - quem deve. Adiantando a conclusão do texto: Cristo submete todas as coisas que são lugares e expressões do poder e ele próprio se submete ao Pai, o que significa que é necessário atender ao sentido desta submissão, relevando uma ambivalência intrínseca à relação de poder, uma ambivalência de que falarei daqui a pouco, e que também reaparece ao nível da obediência - quando Cristo se submete ao Pai, essa submissão não é a submissão a um poder. Essa submissão é expressa como a emergência da comunidade de Deus em todos -"Para que Deus seja tudo em todos" - ou seja, a afirmação claríssima, explícita, de que está abolida qualquer assimetria, que está abolida essa diferenciação essencial do poder que é a dos que detêm o poder e dos que obedecem. Mas há a introdução de uma outra noção de obediência que há que reter para continuar a pensar.

Um outro elemento muito importante nesta carta, nesta passagem sobre o poder, reside na atestação: "E o último inimigo a ser vencido é a morte." Há uma articulação essencial entre poder e morte. A linguagem e os termos que são usados, o inimigo, o adversário, o último inimigo, significam que essa assimetria que o poder necessariamente instala, não é uma assimetria pacífica - se ela provoca necessariamente a resistência, o poder é essencialmente uma relação de luta. É sempre uma relação de hostilidade a afirmação do poder como tal e portanto de restrição, anulação, esmagamento da resistência e da desobediência. E a morte? A morte é o poder absoluto, porque a morte é a única forma do exercício do poder onde não emerge mais a possibilidade de resistência e se confirma a perfeita submissão. Toda a resistência acaba. E, o que me parece crucial nesta reflexão, é que todo o poder traz consigo uma lógica de morte; todo o poder traz consigo, intrinsecamente, essa anulação da capacidade de oposição e de resistência, ou seja, o puro exercício do poder que nós vemos em alguns tiranos que por aí vão passando no palco da história, não é algo de acidental e contingente; é intrínseca à própria natureza do poder. A pura afirmação do poder é, em ultima instância, um poder de morte. Por isso a história se realiza como essa vontade de subsistência, criando mecanismos de limitação do poder, intentando contê-lo dentro de barreiras que permitam a vida, a afirmação da vida. Julgo muito sugestivo que S. Agostinho aproveite justamente a passagem de São Paulo a que recorro para fundamento da reflexão política. Na Cidade de Deus, no Livro XIX, Cap. XV, Santo Agostinho declara: "Não cabe ao homem dominar o homem" - non hominem homini dominari -e, se o faz, é por causa do pecado; prosseguindo «donec transeat iniquitas et evacuetur omnis principatus et potestas humana et sit Deus omnia in omnibus». Santo Agostinho acentua a dimensão escatológica a que já aludimos da vitória sobre o poder: o domínio do homem sobre o homem não passará até que passe a iniquidade e desapareça todo o Principado, e todo o poder humano e "Deus seja tudo em todos". Este é o esquema essencial de uma reflexão sobre o poder que pretenda ultrapassar o mero plano sócio-político.

As dimensões do poder

Passaria agora ao terceiro ponto: algumas linhas de caracterização do poder. Este é substancialmente complexo, e a esquematização que proponho é necessariamente problemática e muito lacunar. Restringindo-me a um apontamento sobre a questão, o poder pode surgir 1) de uma perspectiva teológica, 2) numa dimensão que designarei por metafisica, 3) numa vertente antropológica e 4) numa dimensão política que é aquela a que habitualmente se reduz a questão do poder. A dimensão teológica destas coisas tem a ver com a declaração de Hõlderlin: " O que é profundo ama a máscara", ou seja, o poder não gosta de se apresentar como poder e por isso se esconde através de símbolos, através de figuras, de justificações, de razões. O puro poder exerce-se retraindo-se como poder. Não se apresentando, escusando-se a aparecer como puro exercício de poder. E aprimeira grande máscara, a primeira grande figura, situá-Ia-ia na linha da perspectivação teológica, em que o poder surge sacralizado. A primeira experiência humana do sagrado é a experiência do poder, desse tremendum fascinans. No dizer acerca de Deus suscitaram-se atenuações, há uma experiência religiosa que relativiza essa sacralização no sentido de mostrar que na relação com Deus o poder é um atributo, e que é um atributo indissociável de outros atributos. Que o poder criador de Deus é simultaneamente expressão de uma iniciativa amorosa e que portanto não é só poder, não é sobretudo poder. Mas esta sacralização do poder tem-se traduzido na história humana por uma dupla resposta. Essa dupla resposta tem consistido em por um lado, nos poderes de facto que vão emergindo no tecido da história revestidos de um carácter sagrado - trata (agora falo no plural) dos poderes, dos poderosos, conferindo-lhes um carácter sagrado. E essa sacralização dos poderes passou a ser um suporte e um argumento a favor desse mesmo poder; a reivindicação da soberania, a justificação do poder das chefias humanas, escondeu-se por trás dessa dimensão sacral. É uma constante esta divinização, esta sacralização do poder e não vale a pena recorrer a muitos testemunhos históricos, é suficiente invocar o poder dos reis pela graça de Deus. E inversamente, por outro lado, esta divinização tem uma outra face. É que o poder se encontra investido também da função contrária de ser o lugar de todos os males, ou seja, assim como há uma sacralização no sentido positivo da divinização, há também uma demonização do poder, e o poder é investido desse carácter de instância, de sujeito, de resumo de toda a força do mal.

O que também me parece imprescindível ter sempre presente é que o poder que não se deixa restringir senão por outro poder (por exemplo pela troca, divisão do poder e esta foi uma das estratégias de que historicamente os homens se serviram paracontrolá-lo) que o poder tem uma face diurna e uma face nocturna. Que a face diurna do poder é a sua função de conferir consistência à estruturação das relações humanas, ou seja, o poder é uma condição de continuidade no tecido social. Mas o poder surge como uma coacção para uma convivência. Surge como um princípio de ordem indispensável na medida em que constitui a estruturação capaz de levar os átomos humanos a um trabalho comum. Mas a face nocturna do poder é-lhe igualmente inerente. O poder surge sempre como uma ameaça. E desta sua face nocturna como uma ameaça, é indissociável o facto de que todo o poder se sente ameaçado ele mesmo. E é portanto assim, constituinte do poder não só essa expansividade da sua afirmação reiterada, continuada e sustentada, como a vontade de contrariar e de eliminar tudo aquilo que o possa pôr em causa, ou seja, tudo aquilo que o possa contestar como poder - o princípio da ordem, da repetição, da estabilidade, da coesão, da continuidade. O poder é simultaneamente o contrariar da ameaça da desagregação, da ameaça da desordem, mas também a irrupção de uma desordem instaurada como violência, a desordem implantada como autoridade tirânica.

Um apontamento muito breve sobre a dimensão metafisica do poder, desta ambivalência, que reaparece e que fundamentalmente consiste nisto: por um lado, o poder é afirmado, para recorrer a expressões de Spinoza, como um conatus essendi, ou seja, o poder como o impulso a ser, de que o poder ser é simultaneamente um poder de ser, e esta seria a versão positiva do poder como conatus, como força, como vis essendi; por outro lado e simultaneamente, o poder surge como libido dominandi. É que essa energia de afirmação e de continuação, de persistência do ser tem sempre outra face: essa vontade de domínio, essa vontade de domínio que não é acidental, mas que é intrínseca à própria identidade do poder de tudo converter em instrumento de si. Da incidência desta ambivalência no plano político, não vou agora falar; só um brevíssimo apontamento a concluir este ponto sobre a dimensão antropológica do poder, socorrendo-me para isso do discurso da tragédia grega. Sófocles reconhece: "Muitas coisas são inquietantes, mas nenhuma é mais inquietante do que o ser humano". E esta inquietação, esta inquietude que o homem provoca é essencialmente o facto de ele ser o lugar onde o poder emerge. Não é já o poder dos fenómenos físicos, não é já o poder de uma intervenção extraordinária do divino, mas esta radical estranheza no interior do próprio ser humano que o faz crescer à custa de um domínio, que o faz ser à custa de um não ser de um outro ser humano. E que esta inquietação que ele necessariamente provoca, essa ameaça constante que ele representa para o outro ser humano é também uma face do poder. E neste sentido como testemunho desta inquietude íntima da realidade humana, deparamos com um texto que habitualmente não é explorado na linha que aqui proponho, mas que é um documento extraordinário que encerra a mais completa condensação da dialéctica do poder. Trata-se de uma passagem muito conhecida de Dostoievsky «A Legenda do Grande Inquisidor». Esta Legenda vem incluída nos Irmãos Karamazov (utilizei a edição francesa, 1° volume ). Nessa legenda do Grande Inquisidor trata-se da descrição de um encontro, quando o fim da história se aproxima, entre Cristo que resolve visitar Sevilha - estamos no sec. XVI - e o Grande Inquisidor que O manda prender e mantém um monólogo fabuloso com Ele. E esse monólogo articula-se em tomo das tentações de Cristo no deserto, e de como essas tentações são o resumo perfeito da dinâmica do poder na história humana e das suas justificações. O texto identifica os seres humanos na lógica e na perspectiva do poder, identifica o que os faz crescer com a subsistência do pão,com a presença de alguém a quem servir, a expressão nele utilizada, de que o homem precisa de saber perante quem se inclinar e a necessidade de uma união universal, ou seja, a necessidade de um soberano, de um poder capaz de conferir unidade à espécie humana. E todas estas tentações a que Cristo resiste são expressões do poder. Elas resumem e são a previsão ao mesmo tempo de toda a história ulterior da humanidade. São as três formas em que se cristalizam todas as contradições insolúveis da natureza humana. Quanto à resposta: não é introduzida nenhuma palavra de Cristo criada por Dostoievsky, há um silêncio, e esse silêncio é símbolo da resistência de Cristo a todas as formas do poder, isto é, Cristo resiste às tentações em nome da afirmação de duas coisas que no fundo são a mesma, mas essencialmente: "nem só de pão vive o homem", "não adorarás senão ao Senhor teu Deus", que significam tão só a criação do espaço de liberdade, do horizonte de liberdade para o ser humano sem tutores. E essa criação do espaço da liberdade é o outro nome da expressão de Dostoievsky, "força do amor", ou seja, justamente, a força do amor é: deixar ser, o contar com, fora dos esquemas de imposição, fora, portanto, de toda a relação do poder. Só na relação amorosa se anula, se dilui a as simetria que o poder de si, sempre institui. Só a relação amorosa transforma o poder e convoca a outra versão da obediência que não é mais a obediência ao poder mas sim acolhimento ao Dom do outro e, por conseguinte, ocorre uma submissão sim, mas a submissão não é a submissão duma passividade, mas a submissão de um dar e de um receber fora dos esquemas de domínio e de servidão. Este texto merecia uma explicitação mais funda, mas fica aqui o convite à leitura de sete ou oito páginas de um documento poético espantoso a vários títulos e que numa reflexão sobre o poder se revela como fundamental. A força do amor é a única vitória sobre o poder.

Outro ponto que aqui neste capítulo gostaria de ter tratado diz respeito às tentativas de instrumentalização do poder, ou seja, todo o esforço por conter, dentro de limites vivíveis, o poder, o que significa o esforço por instrumentalizá-lo, por pô-Io ao serviço de outra coisa que não o poder. A forma historicamente estruturada dessa oposição ao poder é justamente a tentativa de instituir um relacionamento humano fora dos sistemas de domínio e servidão fundamentalmente na perspectiva do direito. O direito é a última instância no plano formal apenas, no controlo procurado da violência. A ética é igualmente a tentativa de equacionar o relacionamento humano, fora da ameaça e fora da dialéctica do senhorio, do domínio e da servidão que pontua, naturalmente, as relações humanas. Mas o poder não é ingénuo, o poder não se deixa instrumentalizar com essa facilidade.

Das versões actuais do poder

Qual é hoje o lugar onde primariamente se dissimula o poder?

Estou muito céptico de que hoje as verdadeiras relações do poder tenham expressão essencialmente política. Penso que nos nossos dias o poder nas sociedades contemporâneas tem pouco a ver, vai tendo cada vez mais menos a ver, com as instâncias propriamente políticas, institucionalmente políticas. Ter o poder hoje na nossa sociedade é uma força ou uma energia que está noutro sítio. E esse outro sítio designá-Io-ia por uma palavra usada noutros contextos, com outro fim mas que aqui me parece necessário retomar. Hoje, o poder está na tecnocracia. Passo imediatamente a explicitar aquilo que quero dizer. As decisões fundamentais de organização do tecido social, a posição, hoje, das justificações globais mais fundas e mais poderosas para a existência humana vêm derivadas de uma instância que não está personalizada num parlamento, nem num dirigente político, nem numa nação; não; a obediência hoje, faz-se a uma racionalidade, a um domínio que é essencialmente técnico. Não é um questionamento da técnica como tal mas desta mentalidade e deste dinamismo que está criado de que a verdadeira justificação das coisas, o que preside efectivamente ao dinamismo e à constituição social é um poder anónimo que vem desta convergência entre o conhecimento científico, as forças económicas e esta impulsividade, este processo onde a intervenção humana é cada vez mais diminuída porque ele funciona por si. É esta multiplicação dos procedimentos técnicos, esta multiplicação da produtividade técnica; e a ameaça maior é que neste momento esse dinamismo técnico em nome do qual se estabeleceu uma racionalidade social global, económica, dispõe já dos meios, e dispondo dos meios estejamos seguros de que eles serão usados, de intervenção em níveis da actividade humana até hoje insuspeitos. Neste ponto só vos roubo tempo para dois testemunhos que têm a ver com uma obra acabada de publicar, que traz como título: O nosso futuro pós-humano (de F. Fukuyama) e um alerta de um dos engenheiros chefes da informática da Sun Microsystems, Bill Joy, num ensaio extremamente interessante de 2001 intitulado: Porque é que o futuro não precisa de nós?

Do que é que se trata ? Porque é que o poder tecnológico no sentido mais profundo, esta racionalidade da técnica, esta como que autonomização do crescimento técnico sem a intervenção da vontade humana pois que se reproduz a si mesma, tem através da robótica, da engenharia genética, da nanotecnologia, e da manipulação ao nível microscópico, tem capacidade e está a intervir a um nível da realidade humana capaz de subverter, capaz de fazer emergir novas formas de quase-humanidade ou para-humanidade. Nós estaremos, porventura, e esta eventualidade não é apenas do domínio da ficção científica, mas dispomos hoje, através da neurobiologia, através de toda a tecnologia genética, da manipulação genética e da clonagem, de uma possibilitação real de intervenção na "produção humana", não são já temas que fiquem reduzidos às comissões da ética, mas converteram-se em ingredientes do nosso quotidiano, não tenhamos disso quaisquer dúvidas.

E esta intervenção, para não falar da farmacologia começa com um testemunho terrível, 50% das crianças americanas tomam diariamente Ritalina, que é um calmante para hiperactivos. A acção pela via da genética, no caso da clonagem, é o caso mais sugestivo para a imaginação, mas a produção de seres que não são redutíveis simplesmente à humanidade tal como a conhecemos põe hoje em risco a espécie humana que passa a ser plural e não como até agora foi, uma espécie única.

Para terminar com uma nota positiva sobre o poder, tal como Dostoievsky nos propunha, a liberdade terá sempre de ser o lugar da resistência, mas não tem de ser apenas a contenção do poder. A liberdade que é reivindicada contra toda a demonização da técnica, mesmo neste caso, essa liberdade não é a qualidade negativa de tentar escapar. A liberdade tem de ser, essencialmente, exercício de responsabilidade, e exercício de responsabilidade que é simultaneamente um exercício de lucidez, mas a lucidez não basta, como reconhece o Poeta: "Que bom se poder revoltar-me num comício dentro da minha alma.
Merda, sou lúcido."
(Femando Pessoa)

A lucidez não basta. A liberdade como responsabilidade obriga sempre necessariamente a esse arrancar das máscaras do poder e tentar, quanto se pode e como se pode, escapar à relação com o outro que não caia, que não seja assimilada a uma relaçãode domínio, a uma relação de servidão. Sem essa resposta, o termo da responsabilidade aqui é um termo preguiçoso porque responsabilidade no seu radical latino radica em sponsor, que não significa em primeiro lugar responder, mas, mais radicalmente, eu afianço, eu dou-me por garantia. E, no fundo, o grande exercício da responsabilidade é esse garantir ao outro o espaço de liberdade e de que ali não intervém o poder. Sem esquecer que, porventura, a forma mais perversa do poder é a instrumentalização de qualquer relação amorosa.

Monjas Dominicanas
Mosteiro de S. Maria
Lumiar -12-10-02