Cadernos do ISTA, 15 (2003) - A Tirania da Imagem
 

O PODER DAS IMAGENS
E AS IMAGENS DO PODER (1)

Moisés Lemos Martins

 
 

1 . A CIVILIZAÇÃO DA IMAGEM

Não é hoje possível falar das imagens do poder nem de poder das imagens, sem pensarmos que a imagem constitui a própria forma da nossa cultura. Alguns falam de civilização da imagem. Há quem fale de "cultura do ecrã" {Olivier Donnat, 1994: 284), e também de "paradigma do vídeo" {Lash & Urry, 1994: 16), e ainda de cjbercultura.

Somos hoje atravessados, de facto, por uma imensidade de imagens que, nas ruas e nos centros comerciais nos vêm das montras e dos placares, imagens que nos invadem a casa, pela televisão, pelo vídeo, pelo computador, pelas consolas de jogos electrónicos, imagens que nos assaltam, quando vamos ao multibanco, e que nos avassalam, quando nos refugiamos nas salas de cinema ou quando experimentamos embarcar em sessões de realidade virtual.

Este actual esplendor da imagem, uma imagem que nos rodeia, atravessa, assedia, alucina e esgazeia, uma imagem envolta em luz eléctrica, uma luz de que só nos damos conta quando falha, é indissociável de o mundo se tomar imagem pela tecnologial. Aqui está um primeiro aspecto que eu gostaria de realçar: boa parte do poder das imagens, da sua força, está na tecnologia, ou melhor, na força da tecnologia.

Os dispositivos tecnológicos produzem e administram imagens que simulam as mais perfeitas harmonia ecológica e transparência humana, o que é um grande passo feito no sentido da idolatria. A narrativa bíblica sempre receou a possibilidade de a imagem se deixar tentar pela diabolia, ou seja, pela separação. O Antigo
Testamento impediu as imagens de Deus, uma vez que nelas espreitava a idolatria, que é um efeito da rebelião da imagem.

Autotelizando-se, as imagens deixam de remeter para fora de si e negam, deste modo, a sua essencial dependência. Simplesmente agora, tanto com a fotografia, como com o registo fílmico e videográfico, como com a imagem virtual, a imagem separa-se imediatamente do corpo e do mundo. A imagem libertou-se da matriz, autotelizou-se, decretou a sua diabolia, a sua separação. E a mesma coisa se passa com a imagem da televisão. As imagens que nos chegam dos corpos massacrados, um pouco por todo o lado, alteram a relação que estabelecemos com os corpos que vemos macerados à porta de nossa casa, na paisagem dos caminhos e nos entroncamentos das ruas. O mesmo mecanismo do zapping com que controlamos à distância as imagens da televisão passou a esgazear o nosso relacionamento humano.

A ideia de clicarmos um telecomando para banirmos o outro faz-me lembrar o manífico desempenho de Peter Sellers em Wellcome Mr. Chance. Peter Sellers incama o papel de um jardineiro numa mansão. Esta personagem alardeia uma notória deficiência mental e guarda do mundo duas experiências marcantes: uma, é a prática da jardinagem; outra, é aquela que lhe vem das imagens da TV, que a personagem de Peter Sellers telecomanda, fazendo zapping sempre que elas são para si desagradáveis. Em casa há, por todo o lado, ecrãs de televisão e esta personagem anda sempre com um telecomando no bolso. Quando os proprietários da mansão morrem e esta personagem se vê pela primeira vez da sua vida na rua, o seu aspecto é o de um lord, bem vestido e a irradiar respeitabilidade social. Mas o choque é brutal. Logo ali, à porta da mansão, depara com a ameaça de um gang de marginais, que lhe saem ao caminho com facas de extensas lâminas ameaçadoras. Para afastar imagens tão agressivas, a personagem de Peter Sellers saca de um telecomando que tem no bolso e põe-se a clicar freneticamente. O problema é que desta vez não há meio de mudar de canal: as imagens desagradáveis não saem de cena, continuam bem diante de si, cada vez mais ameaçadoras.

Era Bronislav Geremec que perguntava em Les Fils de Caïn (1991) pelo que fizemos do nosso irmão. Não sei se porventura nãoclicamos para o banir... Em todo o caso, pela tecnologia, a imagem dispensa o mundo, já não é cópia dele. E porque a tecnologia nos garante a ilusão de imagens produzidas nas mais perfeitas harmonia ecológica e transparência humana, o mundo deu consigo a fazer-se à imagem da imagem, a replicar-se à semelhança de um mundo protésico e clónico, não sendo mais a origem de coisa alguma.

Eis-nos então aqui a caminharmos, em passadas largas, para a "idolatria", replicando-nos, clónica e protesicamente: com regimes alimentares; com normalização em ginásio; com implantes de pele e de cabelo; com próteses de silicone e com plásticas. O paradigma seguido é o da publicidade - um paradigma que articula a comunicação com o consumo e com o lazer, configurando, pela tecnologia, um mundo de juventude eterna, de beleza nunca fanada, de saúde imperecível, e reverberante de luz - um mundo produzido nas mais perfeitas harmonia ecológica e transparência humana, como já assinalei. E à pergunta: "o que é que fizeste do teu irmão?", não sei se a nossa atitude também não é hoje a de clicarmos para mudar de canal, se bem que não haja modo de retirar de cena a multidão daqueles que nos saem ao caminho nos sítios mais inesperados e com rogos cada vez mais ameaçadores.

 
2. OLlHAR PARA OS ECRÃS
E PERDER QUEM PARA NÓS OLHA

Dir-se-ia que as imagens de produção tecnológica comprovam a tese de Jean Baudrillard de que a realidade se cumpre como signo, como representação, sendo esta encarada como simulacro, ou seja, como artifício. Esta tese tem a suportá-la o facto de que os homens sempre desejaram acreditar mais nas imagens que inventam do que naquilo que elas representam, como diria Walter Lipmann.

Há, no entanto, um aspecto importante que não pode ser iludido: por muita força e poder que a imagem tecnológica tenha, ela não é o poder. Por muito tentada que seja pelo autotelismo, pela diabolia, pela separação, a imagem tecnológica representa o poder e simboliza-o. Vimo-lo, aliás, há não muito tempo, nos dias da Guerra contra o Iraque. Para o mundo inteiro, a realidade da Guerra cumpriu-se, sem dúvida, no sonho daqueles que criaram as imagens de uma guerra inteligente e asséptica, uma guerra civilizada, limpa e cirúrgica, com fanfarras de jornalistas atrelados ao carro dos heróis, o carro de um exército libertador. E cumpriu-se, também, no sonho oposto daqueles que figuraram camponeses a destruir, à espadeirada, tanques e helicópteros e que figuraram igualmente o auto-suicídio do exército invasor às portas de uma cidade que já estava praticamente conquistada.

Mas num e noutro sonho, com homens que sempre desejaram mais acreditar nas imagens que inventam do que naquilo que elas significam, ficou sem resposta uma grande e inquietante questão: o que é que fizeste do teu irmão?

Há uma palavra magnífica de George Steiner, que reza assim: "A linguagem existe, a arte existe, porque existe o 'outro"' (Steiner, 1993: 127). Ora, a verdade é que nós perdemos o caminho do 'outro', o caminho do encontro. De que é que nos pode, pois, falar a linguagem em que consiste sempre um dispositivo tecnológico de imagens? Desvitalizada, inerte, sem nenhuma esperança a animá-Ia, por ter perdido o caminho do "outro", o caminho do encontro, que promessa é que a linguagem de um dispositivo tecnológico de imagens pode ainda fazer, quando se esgota em autotelismo e autopoiesis?

Num dispositivo tecnológico de imagens, já não é a palavra que nos liga. Parece fazer pouco sentido ser fiel à palavra dada, ou então, retomando Max Stirner, baterrno-nos pelas nossas palavras como se nelas arriscássemos a própria vida. Há muito que perdemos o caminho que nos leva ao Génesis. Aí, sim, a palavra infundia a vida: nomear era acto de criação; falar nos peixes do mar e nas aves do céu era chamar à existência peixes e aves; falar nas estrelas do céu era fazê-Ias brilhar.

Penso que Paul Virilio (2001: 135) tem razão ao dizer que "já não é para as estrelas que lançamos o olhar; aquilo que hoje olhamos são os ecrãs". Nos dispositivos tecnológicos de imagens, já não é a palavra que nos liga, ela já não é o caminho nem o outro é o nossodestino. De dia para dia, acentua-se a ideia de que palavras leva-as o vento, ou seja, uma vez constituídas como realidade separada e autotélica, as imagens tecnológicas perderam o sentido do outro, o caminho do encontro, e nós convertemo-nos em palavras jogadas ao vento.

Como já referi, o mesmo mecanismo do zapping, com que controlamos à distância as imagens da televisão, passou a esgazear o nosso relacionamento humano. O que hoje, então, verdadeiramente nos liga não é a palavra {ela que sempre foi o caminho do outro, o caminho do encontro), é a imagem; não qualquer imagem, é certo, mas a imagem de produção tecnológica.

As novas tecnologias da comunicação e da informação, especificamente a fotografia, o cinema, a televisão, o multimédia, as redes cibernéticas e os ambientes virtuais, funcionam para nós como próteses de produção de emoções, como maquinetas que modelam em nós uma sensibilidade puxada à manivela.

 


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