«À imagem e semelhança de Deus»


A visão antropólogica de
St. Ireneu de Lyon (1)

 

Fr. José Manuel Correia Fernandes, OP


 

O título da conferência que nos foi pedida para hoje é: «À imagem e semelhança de Deus». O tema permite grande número de abordagens. Para esta tarde e no âmbito do nosso ciclo, embora não me debruce sobre a tirania da imagem, pretendo antes abordar a visão antropológica de St. Ireneu de Lyon. A expressão bíblica que me foi dada como título, encontra grande acolhimento na obra deste santo. Para o bispo lugdunense não existe a menor dúvida que o ser humano, criatura de Deus, recebeu na criação a imagem e a semelhança do seu Criador. Nem existe qualquer separação entre o Deus que cria e o Deus que salva – ou que recria – como pretendiam os famosos gnósticos.

Ao percorrermos a obra ireneana, à luz da nossa expressão bíblica, ser-nos-á notória a unidade do seu pensamento. Passemos de imediato ao Adversus haereses (1)

.
1. Adversus haereses
.

A obra apresenta-se em cinco livros compostos pelo próprio bispo de Lyon. Pelos prefácios e conclusões de cada um dos livros percebe-se que estes foram publicados sucessivamente. Em breves palavras, podemos delinear o plano orientador desta obra. O livro I expõe as doutrinas gnósticas e o livro II oferece-nos uma refutação quanto à coerência interna destas doutrinas. Os últimos três livros apresentam-nos uma refutação elaborada a partir da Sagrada Escritura. Esta obra, marcada pela refutação gnóstica, é indubitavelmente polémica. Procura convencer os leitores das discrepâncias existentes nas doutrinas gnósticas. St. Ireneu, porém, mantém-se calmo na sua exposição, não caindo numa fácil atitude de disputa. O nosso bispo é fiel e sincero nas informações e notícias gnósticas que nos fornece. A sua argumentação é frequentemente pertinente, apoiando-se tanto na Escritura como nos dados fundamentais da fé cristã. Parece-nos importante não perdermos de vista que o género literário utilizado por St. Ireneu – a refutação – pode servir-nos de chave interpretativa do seu pensamento teológico e, mais concretamente, da sua antropologia ou, como preferimos chamar-lhe, da sua antropologia pneumática.

Tentemos uma síntese para o conteúdo do Adversus haereses. No livro I, St. Ireneu expõe o sistema de Ptolomeu, discípulo de Valentim, seguindo um plano em três secções. A primeira secção é consagrada à constituição do Pleroma (2), a segunda trata da perturbação e restauração deste, e a terceira aborda o destino da decadência expulsa do Pleroma (3). Cada uma destas partes segue o mesmo esquema: apresentação do ensinamento gnóstico seguido de textos bíblicos utilizados pelos gnósticos para apoiar a sua doutrina.

St. Ireneu concede-nos uma exposição diversificada dos sistemas gnósticos, procurando com isso, por antítese, apresentar a unidade da fé da Igreja. Nesta parte encontramos especulações gnósticas em torno da imagem do homem, segundo as quais este foi modelado conforme a imagem da potência do alto (4). Refere que alguns gnósticos distinguem o homem espiritual e andrógino, feito à imagem e semelhança de Deus, do homem carnal modelado segundo a terra. “Alguns pensam que uma coisa é o homem macho e fêmea, criado à imagem e semelhança de Deus, que seria o homem pneumático, e outra coisa o homem tirado da terra” (5). Esta descrição é importante porque apresenta a visão antropológica idealizada pelos gnósticos. Podemos enumerar os tipos de Homem que estas escolas defendiam: o Homem hílico (material), psíquico e pneumático.

Na sua exposição, St. Ireneu elenca os vários responsáveis, desde os mais antigos aos mais recentes, pela gnose. Faz-nos a apresentação da escola valentiniana (6), assim como emprega o termo gnósticos para referir-se aos barbelonitas (7). É de notar que nesta análise os gnósticos distinguem o Pleroma que é do âmbito espiritual, do mundo criado que é psíquico e material, utilizando os conceitos de imagem e semelhança para descreverem as relações que existem no interior do próprio mundo (seja ele espiritual ou não) ou as ligações entre o mundo pleromático e o mundo hílico. Refira-se que os elementos ou sementes espirituais que os gnósticos consideram possuir são à imagem e semelhança dos anjos do Salvador (8). É por esta razão que os gnósticos se afirmam superiores e detentores de uma gnose salvadora, (9) existindo neste sentido uma ligação íntima e profunda com a realidade pleromática (10).

St. Ireneu no seu livro II coloca à prova a coerência interna dos sistemas gnósticos. Põe em evidência, através de uma análise séria, as limitações e fragilidades encontradas nestes sistemas. Refuta as principais teses valentinianas (11). Critica também os ensinamentos consignados em sistemas gnósticos não valentinianos (12) procurando, nesta refutação, reagrupar certas ideias gnósticas que são alheias ao pensamento da escola de Valentim.

O bispo de Lyon aponta a falsidade da tese relativa à existência de um Pleroma situado acima do Deus Criador (13). Sublinha as incoerências em torno da doutrina da emissão dos eónes (14). Analisa também as referências escriturísticas, apontadas pelos gnósticos, onde estes se apoiavam para defenderem as suas teorias, avançando princípios de uma correcta exegese, assim como oferecendo-nos uma reflexão coerente integrando elementos vindos da observação da natureza e elementos da Escritura (15). Na última parte, examina as teses que dizem respeito à consumação final e ao Demiurgo (16).

Para os gnósticos, o Demiurgo ou o Deus criador é imagem do Unigénito, assim como o mundo criado é imagem do Pleroma invisível. Este tema encontra-se presente na primeira parte do livro II. Segundo os gnósticos, os seres criados são imagem e semelhança das realidades superiores (17). No caso dos valentinianos, os seres criados reflectem o Pleroma composto pelos trinta eónes (18). Para outros gnósticos, como explica St. Ireneu, as realidades criadas são imagem da entímese (19) do éon arrastado pela paixão; para outros ainda, são imagens dos anjos (20).

Antes de criticar a tese concernente à existência de dois mundos onde um é imagem do outro, St. Ireneu faz duas chamadas de atenção. A primeira é para mostrar que não existe o lugar onde possivelmente foram criados os seres que são imagem das realidades do alto visto que, por um lado, estes seres não foram criados no Pleroma e, por outro, a Criação não existiu antes destes terem sido criados (21). A segunda tem a ver com o facto de o Demiurgo desconhecer os seres que ele próprio cria. Ora o Demiurgo é emitido pelo Unigénito que é um éon; como o processo de emissão não acarreta nem composição, nem modelagem, o Demiurgo deve ser semelhante, em todos os pontos, ao Unigénito e conhecer aquilo que este produz (22). Segue-se a crítica ao esquema segundo o qual os seres criados são as imagens e as semelhanças das realidades superiores (23). Para St. Ireneu, imagem não tem uma correspondência directa entre dois números ou duas ordens (24), assim como esta não significa uma sombra , ou seja, as coisas criadas não são as sombras das realidades do alto (25). No avanço da sua exposição, o bispo de Lyon argumenta ainda que o número e a diversidade de seres criados opõem-se ao número dos eónes de que estes são imagem (26).

As coisas do mundo material são imagem dos seres do alto, isto é, dos eónes. Na tentativa de explicar a constituição do Pleroma , os gnósticos servem-se da afirmação de que a emissão dos eónes faz-se de forma semelhante com a geração dos homens (27). Na sua argumentação contra as especulações gnósticas, o bispo de Lyon apresenta-nos um aspecto importante relativo à semente espiritual que os gnósticos consideram possuir. Esta semente, concebida à imagem dos anjos, é-lhes semelhante na medida em que se mantém no Pleroma . Mas, segundo os gnósticos, esta semente toma a forma dos seres que a contêm. Quer isto dizer que nos homens materiais e psíquicos esta semente não se assemelhará aos anjos, mas aos homens. Vejamos alguns textos que nos podem ajudar a esclarecer esta ideia.

E que dizer da semente concebida pela Mãe segundo a forma dos anjos que estão à volta do Salvador, sem forma nem figura e imperfeita, depositada no Demiurgo, sem ele o saber, a fim de que semeada nas almas dele provindas, recebesse formação e perfeição? Primeiramente se deve dizer que os anjos que estão à volta do Salvador são imperfeitos, sem figura nem forma, porque foi depois de ser concebida à imagem deles que a semente foi dada à luz (28).

St. Ireneu levanta a questão sobre esta semente depositada em cada uma das criaturas. Este germe – concebido por Sofia – encontra, assim parece, a sua forma na alma da criatura que o recebe. Mas como é que o Demiurgo recebeu este germe sem o saber?

Dizer que o Demiurgo ignorou a deposição nele do germe e também a fecundação que ele produziu no homem é asserção vazia, sem consistência e que não se pode minimamente sustentar. Como poderia ignorar o germe se ele tivesse alguma substância e qualidade próprias? Com certeza, se não tivesse substância nem qualidades, se fosse nada, é lógico que o ignorasse (29).

Para St. Ireneu, as considerações feitas pelos gnósticos sofrem, no mínimo, de uma falta de coerência, pois, como deduzimos a seguir, é ilógico que o Criador (Demiurgo) desconheça as realidades do Pleroma.

Assim, enquanto dizem que eles conhecem o Pleroma pneumático graças à substância da semente, o homem interior mostra-lhes o Pai verdadeiro: com efeito, para o elemento psíquico são necessários ensinamentos sensíveis; quanto ao Demiurgo que recebeu em si a totalidade da semente depositada pela Mãe dizem que ficou na mais completa ignorância e não teve percepção alguma das realidades do Pleroma (30).

St. Ireneu avança na sua crítica reafirmando:

E não é sumamente irracional que eles sejam pneumáticos porque foi depositada nas suas almas uma partícula do Pai de todas as coisas e que as suas almas, como dizem, sejam da mesma substância do Demiurgo o qual, tendo recebido da Mãe de uma só vez a totalidade da semente e possuindo-a em si, teria ficado psíquico e não teria tido absolutamente nenhuma percepção daquelas realidades superiores que eles se vangloriam de ter compreendido ainda viventes na terra? Acreditar que a mesma semente tenha conseguido para as suas almas o conhecimento e a perfeição, enquanto teria conseguido somente ignorância para o Deus que os criou é coisa de tresloucados sem juízo nenhum (31).

Parece-nos bem fazer alusão a toda esta problemática da semente espiritual porque nela encontramos a referência ao homem pneumático . Tema caro aos gnósticos. Possuidores desta centelha perdida, os gnósticos consideram-se privilegiados porque esta partícula recorda-lhes a sua origem, assim como o seu destino. Centelha de luz, da Luz por excelência, adormecida na matéria, esta é decisiva para que o gnóstico recupere a sua consciência (33). A forma ou a figura desta semente é-lhe dada pelo seu contacto com a matéria (32), algo que o bispo de Lyon considera, no mínimo, estranho visto que os gnósticos são acérrimos opositores à matéria. Toda a relação que se descreve, ou seja, a relação entre a carne e o elemento espiritual é uma questão crucial.

Portanto, aquele germe coagula e é formado aqui em baixo e terá a forma de homem e não de anjo. Como então poderá ser à imagem dos anjos quando foi formado à imagem dos homens? Mas, no fundo, que necessidade tinha de descer na carne se era espiritual? Porque é a carne que precisa do elemento espiritual se se deve salvar para ser santificada e iluminada nele de forma que o mortal seja absorvido pela imortalidade; o espiritual, porém, não tem nenhuma necessidade das coisas daqui de baixo, porque não somos nós que o tornamos melhor, mas ele a nós (34).

O tema encerrado neste texto do Adv haer II 19, 6 será amplamente desenvolvido por St. Ireneu no seu livro V. Neste livro, o bispo de Lyon procurará restabelecer a verdadeira natureza do Espírito em oposição às deformações gnósticas. Podemos perguntar de que Espírito se trata. Não corresponde, é certo, àquela parcela espiritual que os gnósticos afirmam possuir, mas ao próprio dom do Espírito Santo oferecido gratuitamente à aceitação livre de todos os Homens para ser nestes o princípio de uma vida nova, santa e incorruptível (35). Vida que é uma verdadeira comunhão com Deus cuja maior manifestação, segundo St. Ireneu, a encontramos no martírio (36). Aquilo que, nesta passagem do livro II, o bispo de Lyon chama “elemento espiritual” é o que no livro V 9, 1 apresentará como o terceiro composto do homem perfeito e espiritual a saber: o próprio Espírito Santo. Os outros dois elementos são a carne e a alma. Os papéis específicos do elemento espiritual e do elemento carnal que são já apresentados neste texto serão depois retomados ao longo do livro V: o Espírito comunica o que lhe é próprio, isto é, vida, santidade e glória, enquanto a carne que nada tem destes elementos por si própria, apenas os pode receber da liberdade do Espírito (37).

Voltando à nossa apresentação do conteúdo do livro II de St. Ireneu é importante referir que a partir de Adv haer II 20-28 o nosso autor elabora as suas críticas em torno da exegese gnóstica, mais concretamente da exegese ptolomaica (38). Nesta crítica ressalta de novo o problema tocante às realidades que estão fora do Pleroma . Estas são imagem das realidades do Pleroma (39). Ptolomeu declara, conforme nos informa St. Ireneu, que os próprios doze Apóstolos são imagens e figuras dos doze eónes (40). Não nos parecerá estranho que, seguindo esta linha de pensamento, os gnósticos considerem Judas como imagem e figura do duodécimo éon, ou seja, aquele que se viu arrastado pela paixão (41). A crítica do bispo de Lyon não se faz esperar e aponta que a imagem deve corresponder à realidade representada. Imagem e figura podem diferenciar-se do original pela matéria, mas devem preservar a semelhança com o original através da forma (42). Para St. Ireneu a nossa similitudo é-nos dada em Cristo, pois “veio para salvar a todos mediante a sua pessoa, todos, digo, os que por sua obra renascem em Deus, crianças, meninos, adolescentes, jovens e adultos” (43).

Para terminarmos a nossa visão do livro II devemos ainda apresentar as interrogações que St. Ireneu coloca sobre o papel do Demiurgo. Segundo os gnósticos, o Salvador utilizou o Demiurgo para que este produzisse imagens das realidades internas ao Pleroma sem que tivesse consciência de tal acto. Então, qual o valor deste Demiurgo que realiza as imagens de um mundo que lhe é inacessível e do qual é inconsciente? (44). Como podemos compreender, o bispo de Lyon critica e refuta o dualismo das diversas gnoses, ou seja, a tese dos dois mundos onde um é imagem do outro. Os seres que constituem a Criação são, para os gnósticos, imagem e semelhança dos seres do Pleroma . Na perspectiva gnóstica há uma similitude entre a emissão dos eónes e a geração humana, conceito fortemente rejeitado por St. Ireneu como já vimos (45).

Passemos ao livro III, onde o bispo de Lyon confronta os sistemas gnósticos com as Escrituras. O nosso autor parte do pressuposto da veracidade de todas as Escrituras face às recusas levantadas pelos gnósticos em relação a determinados textos escriturísticos. St. Ireneu procurará demonstrar que, a partir das Escrituras, só existe um Deus Pai e Criador (46) e um só Jesus Cristo, Filho de Deus e filho do homem (47). Termina este livro recordando a pregação da Igreja sobre o depósito da fé e dirige um apelo aos gnósticos para que se convertam (48).

A partir deste livro a tonalidade da obra ireneana muda consideravelmente. As razões desta mudança prendem-se sobretudo com a sua fundamentação escriturística. No livro IV evidenciam-se as ligações entre o Antigo e Novo Testamento, isto é, apresenta-se a continuidade entre estas duas partes da Escritura e, por último, o livro V oferece-nos uma visão da escatologia cristã. Façamos uma pequena análise do livro III.

Num primeiro momento, St. Ireneu refere que a utilização dos termos Deus e Senhor na Escritura correspondem ao único Deus verdadeiro. Valendo-se do testemunho dos Evangelistas (49) e dos Apóstolos (50), o nosso bispo afirmará que estes vêm na continuidade do testemunho da Lei e dos Profetas. Em cada uma das análises que St. Ireneu elabora sobre as Escrituras ressaltam as preocupações de trazer à luz a mesma verdade: há um único Deus Criador que antes de nos enviar o seu próprio Filho já se tinha revelado aos homens através da Lei e dos Profetas (51). Parece claro aos olhos do bispo de Lyon que ao demonstrar a unicidade de Deus ficava salvaguardada a própria unidade de Cristo. Na verdade, a tese da unicidade de Deus e a da unidade de Cristo estão intimamente ligadas (52). Como poderíamos admitir uma verdadeira assunção da nossa carne pelo Verbo de Deus se não admitíssemos que o único Deus verdadeiro tudo criou pelo mesmo Verbo?

É certo para o nosso autor afirmar que o Deus único é naturalmente inacessível a toda a criatura mas, ao mesmo tempo, misericordiosamente revelado a todos no seu Filho único (53). Os gnósticos apenas conhecem e concebem as naturezas irremediavelmente isoladas, afastadas umas das outras, isto é, de um lado as naturezas pneumáticas que ascendem para junto de um Deus transcendente e do outro as naturezas psíquicas incapazes de se elevarem acima de um Demiurgo subalterno de natureza psíquica. Podemos afirmar que esta tese de um Deus único, ao mesmo tempo naturalmente inacessível a toda a criatura e gratuitamente revelado a todos no seu Filho, é de uma importância extrema na teologia de St. Ireneu: tema que aparecerá constantemente como forma de criticar os gnósticos que julgavam indigno um Deus por sua vez bom e capaz de se dar a conhecer a todas as criaturas.

Depois de demonstrar que as Escrituras proclamam unanimemente a existência de um Deus único e verdadeiro, Criador do Universo e Pai do Cristo, o nosso autor aborda a tese que faz objecto da segunda parte do livro III: a unidade de Cristo, Verbo de Deus encarnado para a Salvação de todos os Homens, verdadeiro Deus e Homem. Neste caso, o bispo de Lyon enfrenta duas opiniões contrárias. Uma defende que um ser pertencente ao Pleroma divino desceu ao nosso mundo e se manifestou de forma visível, embora não assumisse a nossa carne e, portanto, não fosse verdadeiro homem. A outra admite que o Cristo foi plenamente homem, mas um puro e simples homem nascido da união entre José e Maria apenas distinguindo-se dos outros seres humanos pela sua grande santidade.

St. Ireneu dirige então os capítulos 16-18 do livro III contra os adeptos das teorias dualistas que, admitindo a vinda de um ser divino no nosso mundo, consideram impensável que este tivesse assumido a nossa carne, a nossa natureza humana, fazendo-se verdadeiramente homem. Estas teorias dividem Cristo em dois seres, unidos de forma acidental e transitória. De um lado, um Jesus aparentemente pertença do nosso mundo humano; do outro, um Cristo ou um Salvador membro do Pleroma divino que terá descido sobre Jesus em forma de pomba no momento do Baptismo no Jordão (54). Esta descida teve como objectivo a revelação do Pai (innominabilem Patrem ) retomando, após a Paixão, o seu lugar no Pleroma.

 
.
Notas

(1) Por uma questão de economia de espaço não analisaremos a obra do bispo de Lyon intitulada Demonstratio, assim como prescindiremos da bibliografia final, do texto latino e de várias notas explicativas.

(2) Este termo significa plenitude e pertence ao grego clássico. Aparece na versão dos LXX e surge dezassete vezes no Novo Testamento. Encontramo-lo também no neoplatonismo tardio. Será, no entanto, o gnosticismo a conceder-lhe um valor técnico influenciando cristãos e neoplatónicos. Na linguagem neotestamentária deparamo-nos com expressões deste género: do pleroma da divindade , isto é, da plenitude divina; do pleroma de Cristo , ou seja, da abundância dos seus dons; do pleroma dos tempos , isto é, da sua realização/acabamento; do pleroma universal , isto é, da totalidade dos seres. Com efeito, o sentido gnóstico pode transparecer em todas estas expressões. Apontemos rapidamente os traços gerais do aparecimento do Pleroma no mito gnóstico. Os gnósticos defendem que no princípio e na origem do Todo está a figura de um Deus impossível de conhecer na sua essência e indefinível. Num momento determinado, este Ser supratranscendente e quase solitário pensa manifestar-se e projectar-se para o exterior. Normalmente esta projecção ou comunicação realiza-se emitindo , emanando ou gerando uma série de entidades divinas que são como que a face inteligível ou perceptível deste Uno. Estas emanações ou gerações intradivinas constituem o que se chama Pleroma ou Plenitude da Divindade. Não existe entre os gnósticos concordância na forma de explicar como se constitui este Pleroma , pois o número de eónes que o compõe varia de sistema para sistema. É provavelmente Valentim (sec. II), gnóstico egípcio, quem melhor expõe, na sua doutrina, a noção de Pleroma . Valentim toma de Platão a ideia de oposição entre a eternidade e o tempo, entre a Entidade imutável, vivente (supra temporal) e as entidades móveis (as que presidem aos períodos cósmicos); o Pleroma , reunião de todas as entidades, assemelha-se ao mundo inteligível que contém os protótipos do real. Basílio, gnóstico alexandrino (séc. II), faz do Pleroma o mundo do Espírito puro (que subordina a um “deus que não é”; a um absoluto superior à categoria de ser). Para outras informações cf. Antonio Orbe , I ntroducción a la Teología de los siglos II y III , Salamanca: Sígueme 1988, 87s e Antonio Piñero [ Ed.], Textos gnósticos. Biblioteca de Nag Hammadi I: Tratados filosóficos y cosmológicos , Madrid: Trotta 2 2000, 43-46.

(3) Cf. André Benoît, Saint Irénée. Introduction à l'étude de sa theologie, Paris: P.U.F 1960, 159-161.

(4) Cf. Adv haer I 18, 1.

(5) Adv haer I 18, 2 . Para a tradução dos textos ireneanos seguimos a edição brasileira, fazendo as adaptações necessárias: I, II, III, IV, V Livros . Introdução, notas e comentários por Helcion Ribeiro; organização das notas bíblicas por Roque Frangiotti; tradução por Lourenço Costa, (Patrística, nº 4), São Paulo: Paulus 1995.

(6) Cf. Adv haer I 23-28.

(7) Adv haer I 29, 1 .

(8) Cf. Adv haer I 4, 5.

(9) Adv haer I 13, 6 .

(10) Cf. André Benoit, Saint Irénée , 151-161.

(11) Cf. Adv haer II 1-30.

(12) Cf. Adv haer II 31, 1-35, 3.

(13) Cf. Adv haer II 1-11.

(14) Cf. Adv haer II 12-19.

(15) Cf. Adv haer II 20-28.

(16) Cf. Adv haer II 29-30 e cf. André Benoît, Saint Irénée , 161-169.

(17) Cf. Adv haer II 7, 1.

(18) “De outro modo, como podem criaturas tão variadas, numerosas e até inumeráveis ser imagem dos trinta Eónes que estão no Pleroma, cujos nomes reproduzimos no primeiro livro, assim como eles os nomeiam?”, Adv haer II 7, 3 .

(19) No latim o termo que aparece é Excogitationis , ou seja, imaginação, invenção.

(20) Cf. Adv haer II 7, 4.

(21) Cf. Adv haer II 7, 1.

(22) Cf. Adv haer II 7, 2 .

(23) Cf. Adv haer II 7, 5-6.

(24) Cf. Adv haer II 7, 7; cf. Jacques Fantino , L'Homme image de Dieu chez S. Irénée de Lyon , Paris: Cerf 1986, 53.

(25) “Se as coisas deste mundo são sombra e imagens do alto, como ousam dizer alguns deles, é necessário que admitam também que eles são corpos. Com efeito, são os corpos situados no alto que fazem sombra, porque os espirituais não podem fazer sombra a ninguém. Mas admitamos, o que é impossível, que haja uma sombra das coisas espirituais e luminosas na qual teria descido, como dizem, a sua Mãe. Neste caso, visto que aquelas coisas são eternas, é eterna também a sombra que produzem e, portanto, as coisas daqui, que estão na sombra daquelas, não passam, mas perduram. Se, porém, essas são transitórias, também devem ser transitórias aquelas de que são a sombra; mas se as coisas do alto perduram, também perdura a sua sombra”, Adv haer II 8, 1.

(26) Cf. Adv haer II 8, 3 .

(27) É aguda a crítica lançada por St. Ireneu: “Mas se cada um foi emitido separadamente e conforme à sua própria geração, à semelhança dos homens, ou serão gerados pelo Pai e, portanto, consubstanciais e semelhantes ao gerador; ou serão diferentes e, então, é preciso admitir que foram produzidos por outra substância. Ora se forem semelhantes ao Pai que os gerou, serão, como ele, impassíveis para sempre; se porém, derivam de outra substância passível, de onde virá esta diversidade de substâncias no seio de um Pleroma de incorruptibilidade? E ainda, nesta hipótese, cada um aparece distinto e separado dos outros como os homens, não unidos e misturados uns aos outros, mas cada um com forma distinta, definida, e respectiva grandeza: coisas que são próprias dos corpos e não dos espíritos. Portanto, não digam que o Pleroma é pneumático, assim como eles não o são, se é verdade que os Eónes, semelhantes a homens, se banqueteiam ao lado do Pai, o qual possui os traços determinados, manifestados por aqueles que foram emitidos por ele”, Adv haer II 17, 3 .

(28) Adv haer II 19, 1 .

(29) Adv haer II 19, 2 .

(30) Adv haer II 19, 2 .

(31) Adv haer II 19, 3 .

(32) Dentro da literatura gnóstica, encontramos numerosas referências à semente espiritual, à centelha de luz, ou mesmo, à chispa divina. Referimos um pequeno texto que nos poderá elucidar sobre a introdução da luz na matéria. Como é sabido, esta introdução deveu-se à Sabedoria. “(Esta criatura) abrió los ojos | y vio una enorme extensión de materia infinita. Entonces se exaltó orgullosamente y dijo: «Yo soy dios y no hay otro fuera de mí». Al decir esto pecó contra el todo. Entonces una voz surgió de arriba, de la suma potestad, diciendo: «Erras, Samael» -es decir, «el dios de los ciegos»-. Él dijo: «Si existe otro ser ante mí, que se me revele». Al momento la Sabiduría extendió su dedo | e introdujo la luz en la materia y la persiguió hacia abajo hasta las regiones del caos, remontando luego hacia su luz. De nuevo la oscuridad [...] en la materia. Este arconte, por ser andrógino, produjo para sí un gran eón, 95 una grandeza infinita. El arconte discurrió crear hijos para sí, y se creó siete hijos, que eran andróginos como su padre. Y dijo a sus hijos: «Yo soy el Dios del todo». Entonces Zoé, la hija de Pistis Sofia, clamó y le dijo: «Erraste, Saclas» -cuya interpretación es «Yaldabaot»-. Luego sopló en su rostro y su soplo se le convirtió | en un ángel de fuego. Y este ángel ató a Yaldabaot y lo arrojó al Tártaro, al lugar que está bajo el abismo”, La Hipóstasis de los Arcontes (NHC II 4), 94, 19-95, 12, in Antonio Piñero [ Ed. ] , Textos gnósticos. Biblioteca de Nag Hammadi I , 385.

(33) Cf. Adv haer II 19, 4 -6.

(34) Adv haer II 19, 6 .

(35) Cf. Adhémar d'Alès, La doctrine de l'Esprit Saint chez S. Irénée , in Recherches de Science Religieuse 14 (1924) 496-538.

(36) Adv haer V 9, 2 .

(37) Cf. o extenso comentário ao Adv haer V 9, 1-4 que aparece em Antonio Orbe, Teología de San Ireneo I. Comentario al Livro V del “Adversus haereses” , Madrid: BAC 1985, 401-461.

(38) Cf. Adv haer II 20-23.

(39) Cf. Adv haer II 20, 5.

(40) Cf. Adv haer II 21, 1.

(41) Cf. Adv haer II 20, 2.

(42) Cf. Adv haer II 23, 1 .

(43) Adv haer II 22, 4. As cinco etapas que St. Ireneu nos apresenta, englobam todo o desenvolvimento da vida humana, desde o nascimento até à morte. Qual é a intenção do nosso autor? A presente frase contém uma fórmula rica de sentido. O bispo de Lyon não diz que o Filho de Deus veio salvar todos os seres humanos sem mais nada. Diz sim que o Filho de Deus veio salvar todos os seres humanos que por Ele renasçam em Deus ( qui per eum renascuntur in Deum ). Parece seguro poder afirmar-se que este novo nascimento, de que St. Ireneu fala, seja o Baptismo. Ver nesse sentido os textos: Adv haer I 21, 1; III, 17, 1; V 15, 3.

(44) Cf. Adv haer II 30, 3s.

(45) Cf. Adv haer II 17, 3.

(46) Cf. Adv haer III 6-15. Ao defender esta posição, St. Ireneu tem consciência de que está a proteger um conceito fulcral para a Economia da Salvação , ao mesmo tempo que combate as genealogias descabidas dos gnósticos.

(47) Cf. Adv haer III 16-23.

(48) Cf. Adv haer III 24s. Cf. André Benoît, Saint Irénée , 178s.

(49) Cf. Adv haer III 9-11.

(50) Cf. Adv haer III 12.

(51) Cf. Adv haer III 9, 1-3.

(52) Cf. Manlio Simonetti , Il problema dell'unità di Dio da Giustino a Ireneo , in Rivista di Storia e Letteratura Religiosa 22 (1986) 201-240.

(53) Cf. Adv haer III 11, 1-6.

(54) Sobre a questão do Baptismo de Jesus no Jordão ver Daniel Vigne , Christ au Jourdain. Le Baptême de Jésus dans la tradition judéo-chrétienne , Paris: Gabalda 1992, 78-81; 87-91. No Adv haer III 17, 1-4, St. Ireneu procura restabelecer, contra as exegeses aberrantes dos gnósticos, o verdadeiro significado do prodígio realizado no Baptismo de Cristo no Jordão. Este prodígio consistiu, não na descida de um pretendido Cristo ou Salvador sobre Jesus, mas na descida do Espírito Santo sobre o Filho de Deus encarnado. A justificação teológica desta asserção inspira ao bispo de Lyon um texto singularmente denso, onde o Espírito Santo aparece como o Dom por excelência prometido por Deus desde a Antiga à Nova Aliança. Este Dom é concedido em plenitude ao Filho de Deus feito homem, para depois irradiar a partir deste para toda a Igreja. Este Espírito faz renascer os Homens para a vida de Deus e os transfere da sua velhice, da sua antiguidade para a novidade de Cristo. Destrói as barreiras que separam os Homens e torna a todos um em Cristo.

 



pesquisa no site
powered by FreeFind

ISTA
CONVENTO E CENTRO CULTURAL DOMINICANO
R. JOÃO DE FREITAS BRANCO, 12 - 1500-359 LISBOA
CONTACTOS:
GERAL: ista@triplov.com
PRESIDÊNCIA: jam@triplov.com
SECRETARIADO: bruno@triplov.com
COLÓQUIO "INQUISIÇÃO": inquisitio@triplov.com