TODOS OS SANTOS
JOSÉ AUGUSTO MOURÃO, op







EDITORIAL

A santidade é o mais forte de todos os sentimentos verdadeiros por ser uma alegria que rejubila com a alegria que se aprofunda, para além de qualquer contrariedade ou perturbação. Quem deseja ainda ardentemente vestir-se de sanctitas? Quem acredita na sensualidade do invisível?

Falo de um afecto, não de uma peanha, falo da “alegria que nasce em nós da alegria que o outro sente” (Lllansol). Falo da festa misturada de luto e de alegria, de dor e de felicidade como tudo o que é eterno. Falo da alegria da linguagem que os textos de hoje nos doam, por mais enigmáticos e paradoxais nos pareçam. "Felizes os que sofrem": a co-pertença do sofrimento à alegria é paradoxal. A famosa distinção entre tristeza e alegria é bem mais poderosa do que a que vingou: opressão ou liberdade. A alegria torna-nos sempre livres, enquanto a liberdade nos pode tornar tristes ou não.

Esta é a festa de todos os santos e de todos os fiéis defuntos que morreram no amor eterno de Deus. Esta é a festa de todos os santos anónimos que continuam a erguer o mundo: quem não encontrou na vida o amor, a humildade, a bondade e a fidelidade que os santos irradiam? Nem sequer na mãe a quem chamamos “santa”, sempre calada e abnegada, ou no pai, sempre tão firme e doce?

A santidade é o impensado do nosso tempo, como a morte ou a graça. Apesar dos inúmeros processos de canonizações a correr. "A santidade é uma diferença. Emerge algures, na espessura das vidas. Será perceptível ou não. Exemplificável ou não. Depende da organização e do seu pólo agregador. É este que mede, avalia, aprecia e tipifica a diferença" (Augusto Joaquim). Esta vida partiu para as extremas do humano. Vai Ter de produzir uma diferença real. Os antigos diziam que havia um cheiro inconfundível. A santidade difundia um odor forte, sem ser inebriante, nítido sem ser cortante, persistente sem ser enjoativo. Era o seu modo de estabelecer a diferença real. Não seremos capazes de estabelecer uma diferença real entre a intrujice e a bondade, a hipocrisia e o sentimento verdadeiro?

A "santidade" secularizou-se, como tudo o resto. Conserva a virtude de agir por substituição: os heróis do nosso tempo são estrelas do cinema na intimidade, desportos radicais, modelos anoréxicos e lisos, o ouro e o brilho de ser conhecido, visto, publicitado. Essa é a santidade do ídolo, do atleta ou da estrela a que sacrificam as multidões. A graça que discernimos no rosto do santo é a graça do ícone litúrgico, eclesial, de uma realização do mundo – o que chamamos o Reino de Deus. Porque a beleza do santo não lhe pertence. A luz que o ícone lhe reconhece vem-lhe de um outro. Pulchritudo boni ou pulchritudo Dei in homines diffusa splendor sanctitatis.

Que diz o Cordeiro, de pé, investido de poder, cercado de uma corte de eleitos? Que diz este herói marcado pelo combate de várias cruzes? Diz ele que a testemunha vem marcada pela paixão de um combate, que arriscou a vida em função do horizonte das Bem-aventuranças, que resistiu ao amolecimento de que padecem todas as formas de vida. Que mais diz o Cordeiro? Que as nossas verdades, circunstanciais, são apenas as verdades dos nossos interesses, da nossa cegueira, das nossas expectativas e tendências. Que o Livro não é o nosso espelho, mas a nossa confrontação e desmascaramento. Que a marca da imolação subsiste como aparência, como traço de passagem da vida à morte.

Que mais diz o Cordeiro? Que a pátria da criação vem do futuro, que o futuro é uma visão; aprender a ver obriga a saber sonhar. Que a incerteza provoca também a excitação feliz da multiplicidade dos possíveis. Que o sonho figura o tempo da liberdade. Que mais diz o Cordeiro? Que o Deus do AT. e do N.T. introduziu na História a dinâmica do "Novum", a impaciência dos limites e o combate sempre recomeçado contra a paralisia das ordens estáveis do eterno retorno do mesmo. Que o mundo das Bem-aventuranças não é o mundo maravilhoso e liso do irreal que consola. Que a utopia cristã se chama esperança, urgência de conversão e não futurologia. Que mais diz o Cordeiro? Que o nosso estatuto é o de filhos e que só Deus é santo.

Do monte dos macarismos soam palavras que só os loucos dizem entre si, irrisórias, duras para quem leva uma vida dilacerada: "Bem-aventurados os pobres, os que choram, os que têm fome e sede". Quem estranhará a acusação antiga de que o cristianismo conduz à efabulação do além, ao Céu vazio que é o céu dos pardais? Porque há a realidade crua. Há a morte à porta contra a qual nada se pode. Há uma revolução informática em curso que vai acelerar e rever conceitos como o do emprego e trabalho. São as pequenas e médias empresas que geram empregos. "Quanto aos excluídos, vou ser muito directo: estão destinados a morrer" (José Tribolet).

A Vida é invisível, invisível no sentido em que de facto - a dor, o inebriamento - inevitavelmente se frui, fora do mundo, independentemente de qualquer ver (M. Henry). Não se trata, pois, de uma oposição entre o visível e o invisível ou entre duas formas de realidade. Para o santo de Deus, Jesus, o Samaritano não estava imerso nos sonhos diáfanos da "bela alma" quando se debruçou sobre o homem coberto de sangue para ao socorrer e cuidar levando-o para um albergue. Como podem as sete obras de misericórdia corporais afastar-nos do mundo? Como não construir hospitais em tempos de barbárie? Como não cuidar dos feridos em tempo de guerra? Tanta mão invisível que dá comer a essa multidão de mendigos que dorme ao relento sem que o comum do cidadão se incomode. Não são esses os santos dos nossos dias, invisíveis, como o amor é invisível?

As Bem-aventuranças não instituem a crítica sábia das nossas certezas ou felicidades. Elas circunscrevem o outro lugar que o nosso coração habita. A bem-aventurança se não é deste mundo, deve necessariamente habitar neste mundo. É em nós que a Cruz faz a sua morada. Os que choram, continuarão a chorar: Deus é alguém que se faz próximo daquele que chora. Deus presente, quer dizer retirado, não na "figura da morte", mas no rosto dos mortos - dos exterminados. Deus não tem medo do pobre porque é pobre. Deus não se esconde.

Os santos lembram-nos, não o que somos, mas, drasticamente, o que deveríamos ser. Eles propõem uma imagem familiar do sagrado. A sua presença na cidade ou nas extremas é poder de contestação e de contradição: política, social e onto-antropológica: uma "outra" forma, específica, de ser homem e mulher. O santo e o pecador são homens e o primeiro índice de uma humanidade em caminho para a sua realização é a certeza aguda duma solidariedade com o pecado de todo o homem. O santo e eu somos homens; ele dá testemunho da humanitas communis e da humanitas perfecta. Imitadores de Deus, que eles nos transmitam aquilo que os tornou tão próximos dele e de nós que nos reconhecemos neles, nossos irmãos comuns. A luz tabórica que brilha no rosto do santo vem do seu futuro e do nosso. Eles são exemplo da melhor humanidade do passado e projecção da melhor humanidade futura. Que a sua luz ilumine também o nosso rosto, agora do Monte das Bem-aventuranças.

LISBOA, 1.11.2003

 









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