EPIFANIA - QUE PODER E QUE IMPÉRIO?
JOSÉ AUGUSTO MOURÃO







EDITORIAL

Epifania - que poder e império?
(Is 60, 1-6; Ef 3, 2-3 ª 5-6; Mt 2, 1-12)

•  Nós respondemos àquilo que nos atrai: ruídos, a pele de superfícies difusas, pontos luminosos, rasto de estrelas, contos maravilhosos (como este, dos Magos). Porque é aí que se manifesta o mistério que nos move. Desde o século III que os comentadores de Mateus viam na estrela um anjo. Para Orígenes não havia dúvida que a estrela que guiava os magos era uma potentia, um espírito angélico com forma astral. Nos oito sermões leoninos sobre a Epifania, a estrela representa o Sacramentum Gratiae, isto é, o elemento material através do qual a Graça ilumina os sentidos e conduz a Cristo; os magos são as primitiae gentium, prova da conversão de todos os povos que não pertencem ao tronco de Israel, e a sua tripla oferenda refere-se a Jesus enquanto Deus, Rei e Homem. O próprio Tomás de Aquino, séculos mais tarde, considera o astro como um sinal exterior do Espírito Santo.

•  Festa da epifania, da aparição visível não só para aqueles a quem já foi manifestado o mistério, como para aqueles que ainda esperam o cumprimento da promessa. Tempo da manifestação do mistério (Ef 1,9) escondido em Deus antes do princípio dos dias e realizado "nestes nossos dias que são os últimos" (Heb 1,1-2). Já no Antigo Testamento Deus aparece em pessoa (teofanias) manifestando a sua glória ou tornando-se presente através dos seus anjos. Mas Deus nunca ninguém o viu. Foi em Jesus que a glória de Javé se manifestou em toda a sua luz. Em Cristo, o mistério de Deus se revelou. Ele é o sacramento do Pai e nele se manifestou o amor de Deus por nós (Jo 4,9). A epifania é o cumprimento da "missão" do Filho e, ao mesmo tempo, o ponto de partida para a missão individual de cada cristão.

•  Desde muito cedo que a tradição cristã viu nos Magos o sinal da catolicidade da salvação trazida pelo Cristo. Na descrição que nos chega do Pseudo Beda (VIII) Baltazar, de rosto sombrio e tez escura ( fuscus ) vem a caminho, anunciando a salvação da imagem pela incarnação de Deus: não há crença, arte, que não seja de carne: a mirra indica o acesso da carne à eternidade. Belchior, já velho, com barba e cabelos soltos, túnica cor de jacinto, capa cor de laranja, vem vindo, mostrando a face oculta do poder, dizendo que a questão da cultura é inseparável da questão da violência, do direito, da tranquilidade, da ordem, do policiamento dos costumes, das máscaras da Omnipotência e da Liberdade. E vem Gaspar, imberbe ainda, que traz uma túnica cor de laranja, capa roxa e sapatos laranja, e traz o incenso. Por amor, de tão longe se vem, se vai, se vive - as fronteiras da cor cedendo ao rasgão da carne que sofre e ama, em parte porque alguém nos olha, nos move, nos nomeia.

•  Agora se cumprem os profetas: Ele é o esperado das nações e o salvador de todos os povos. Deus reuniu num só povo todas as nações. Agora a Igreja está no mundo como sacramento da unidade ao serviço do seu Senhor. Desde que foi dada à publicidade, enviada pelo Espírito do Pentecostes, princípio de agregação e de unidade, ela é serva da Palavra (2 Tim 3,1). Ela anuncia o reino que está como devir, tendendo (catolicamente) para o advento do mundo unido. Os cristãos actuam hoje esta catolicidade, tornando-se presentes ao mundo em que vivem, pelo testemunho e novidade de vida que é já para os pagãos sinal iminente do Reino, e dando testemunho de algo essencial: o mysterium iniquitatis não tem a última palavra nas vicissitudes humanas. A própria eucaristia nos dá a consciência da pertença a um povo único, e é esta consciência que nos dá o sentido da universalidade da salvação.

•  Andamos nisto há séculos: as vicissitudes da evangelização são também visíveis: redução da diferença (dos pagãos), inquisição, juramento anti-modernista, fundamentalismos. A missão cristo-católica foi um dos factores essenciais da evangelização. Há imagens imperialísticas, v.g. S. Francisco (Salvador da Baía) olhando para o Cristo, o pé em cima do globo. Esta imagem é bem um show multimedia barroco, um lugar triunfal, perverso, a incarnação do catolicismo dos tempos modernos. Aí está em germe o discurso sobre a globalização e da redução ao mesmo. O primeiro mundialista foi sempre o papa. Hoje ainda, o papa utiliza, para saudar a multidão, o duplo dativo urbi et orbi . Para ele o mundo é aquilo que se vê a partir de Roma - segundo uma óptica orbital. Os papas herdam ainda hoje do imperialismo panóptico dos Césares, mesmo quando abençoam as massas através da televisão. O "globalismo"é um europeísmo que mergulha as suas raízes na profundidade da história, e Roma é o seu centro. Entropia romana: o mundo contraiu - se por influência do panoptismo católico.

•  Contar a epifania de Deus é o conto interminável de quem vive de esperar a salvação. Os acontecimentos que convoca Is 60 inscrevem-se no devir do mundo e no advento de Deus que virá recapitular tudo em Cristo. A categoria do crente é o futuro. Todos os votos são imperfeitos: incluem-se na luz/ trevas que incluem tudo. De momento acendem-se luzinhas no escuro - para questionar a luz - e dizemo-nos uns aos outros que qualquer amor é já um pouquinho de saúde; que a Lei vem a caminho; que as gisandras estalam; que Deus é o sítio da alegria; que o novum é a vitória sobre a violência, a vingança, o terror organizado, o catarismo das belas almas, o fanatismo fundamentalista. Os criminosos de guerra hoje somos nós que alimentamos uma guerra hipócrita pela civilização que custou já tantas vidas quantas o massacre do World Trade Center e que aceitamos complacentemente a criação de tribunais militares de excepção, nós que pretendemos dar lições em matéria de direitos humanos àqueles que trazemos agrilhoados ao nosso medo.

•  A fecundidade operatória do cristianismo vem-lhe da incarnação, não de ser uma religião do sacrifício, holocaustos e imolação pelo pecado. Incarnar é revestir o que passa, não como fluindo inexoravelmente para a morte, mas o que, passando pela morte, está ao serviço da vida. Incarnar é revestir a vontade de um outro: alteração alterante. Acolher o imprevisível (como Isabel, Maria), maximizar a procura da água e da relação. Nenhuma incarnação é conservadora porque incarnar é alterar-se (a partir do Outro), acreditar no que, através do corpo é suscitação de nascimentos, mudanças, imprevisibilidade. Um cristianismo de pantufas é um cristianismo caduco, sem possível, desincarnado: o sentido que não surpreende não é bom. Um cristianismo de entranhas frigorificadas (de gente insensível à beleza e à miséria do mundo) seria apenas uma empresa de ritos a gerir, um sistema de trocas como o são todos os sistemas: ritual, maníaco, apocalíptico.

•  Só há natal, epifania possível onde o estremecimento, a ternura, a divina surpresa (da estrela, do Menino, dos magos) faz o seu caminho. O Magnificat é o canto do surpreendente trabalho de Deus no nosso corpo que não está condenado à crispação porque o tempo o altera, mas que está prometido à alegria, ao acolhimento do pastor do Sl 22 - o que lembra a noite do coração que todos transportamos. É daí que se avista o possível da paz e da justiça. Chamem-nos líricos - o lirismo é o estado de enamoramento permanente que só alguns (santos) conhecem. A prosa do mundo é que Deus é longe e a justiça impura (imprópria); que tudo está bem como está e não há dada a esperar (de bem) de nada. Essa é a prosa do Anticristo. No tríptico da Epifania de J. Bosco (1510), outro “mago” assoma, inquietante, por trás dos réis que vêm adorar: o Anticristo.

•  A Epifania era uma das datas favoritas para a coroação dos reis da Alemanha. Não podemos, neste tempo de globalização, portanto de indiferenciação prescindir de novo de mensagens como a dos reis magos. Apesar do massacre que foi a colonização do México, o fundador de Lima, F. Pizarro, estabelece o 6 de Janeiro como a data formal de fundação a sua capital e dá-lhe as armas heráldicas de um escudo azul com estrela e três coroas de ouro, em honra dos três reis.

•  A epifania põe em causa qualquer estratégia do visível: o mais tangível do tangível não se vê. Não querer ver tudo nu, não assistir a tudo, não procurar compreender tudo e tudo "saber" é uma questão de decência. O medo de perder o mundo é o medo do desmembramento: a sensação de que o todo se quebrou, algures. Há saber que envenena e empanturra. Temos de perguntar, isto é, pôr a descoberto o que vamos sendo e que é apelo, mobilidade profunda, esforço de libertação, transfiguração. A resposta do mito é apaziguadora (função calmante da resposta). Não se rompe com a saturação do sentido senão cedendo à intensa e frágil visitação dos afectos: só o amor liberta. A compulsividade das evidências magoa mais do que o jogo do olhar entre o visível e o invisível. A loucura de Deus é ser Emanuel, Nome, Corpo, Dom, justiça - é esse Deus que assoma hoje à porta pelo milagre dos Magos. Entremos no mistério desta festa. Ajoelhemo-nos diante do ícone do Deus invisível.

Cardaes, Dia de Reis, 2004









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