VIVER COM OS OUTROS (fim)
Mateus Peres

 

4. Por que será isto assim, por que há-de o aumento de relações sociais de todo o tipo traduzir-se pela multiplicação dos conflitos?

É indiscutível que o assegurar da humanidade em cada um de nós se faz pelo contacto frequente, intenso e diversificado com a humanidade. Os homens fazem-se humanos na relação com os humanos e, se essa relação não existir ou for deficiente, não se consegue alcançar a plena condição humanas. É como se o contacto com "os outros" despertasse e desenvolvesse as nossas capacidades de auto-realização. A relação ao outro - e isto é tanto mais verdadeiro quanto mais o outro for outro, for diferente -, a inserção num novo meio social, sobretudo se diversificado e rico, devem ser vistas como a oportunidade insubstituível de crescimento. Só essa relação obriga a alcançar o que ainda se não tinha alcançado, a ser o que ainda se não era e, portanto, a deixar de ser o que já se era.

Concentremos a atenção nesta ambivalência: passar a ser o que não se era, deixar de ser o que já se era. Toda a possibilidade de crescimento, a nossa única "chance" de realização, de aproximação, melhor, de conquista da autenticidade passa pela agressão ao que se é já, assim como ao que se adquiriu, passa pela desestabilização e perda, no fundo - e a linguagem em nada nos parece abusiva - uma certa experiência de "morte" é necessária para crescer em vida. E sendo verdade que o mais profundo em todos os seres é a tendência - e nos conscientes o desejo - de permanecer na existência (6), a vida, no seu dinamismo, nas suas possibilidades de crescimento e realização passa, e passa sempre, pelo abalo até aos fundamentos.

Daí o medo do futuro, da mudança, de viver. Daí a resistência e, mais, os bloqueios. Segundo os psicanalistas, aqueles acabam por provocar retrocessos. Pelo processo dos recalcamentos e pela tentativa de eliminação das próprias instâncias que nos desafiam ao passo seguinte da caminhada, tenta-se o recuo, o regresso atrás ao tempo em que ainda não se sentiam as pressões e os apelos a vançar. E tudo isto coexiste com o - também ele - profundíssimo e constitutivo desejo de viver, de plenitude, de felicidade, que não se satisfaz, que nunca se satisfaz com o presente, quanto mais com ilusórias fugas rumo ao passado. No fundo, o medo de viver é o medo de morrer, mas não parece possível viver, e mais plenamente, sem consentir na morte. Como não evocar a sabedoria evangélica: "Aquele que tiver encontrado a sua vida perdê-Ia-á; e aquele que tiver perdido a sua vida por minha causa há-de encontrá-la" (7).

5. Mas não esqueçamos que é na confrontação com os outros que esta ambivalência é vivida. Os outros são a ameaça. E quanto mais diferentes e marcados pela alteridade, mais são instintivamente vistos como ameaçadores. E por isso, porque vistos como representando perigo, pretende-se negar e destruir o outro, pelo menos destruí-Io enquanto outro, desfazer a sua alteridade.

Mas os outros são também a nossa única "chance" de sermos, vivermos, sofrermos e gozarmos, em plenitude.

Que se pense, a título de exemplo, no tempo da adolescência, a época da transição por excelência, em todo o processo de desenvolvimento. O distanciamento face ao mundo das crianças, mais, o desconforto da perda da infância, a confrontação com os adultos, com os quais não é por ora possível identificar-se, e que são "os outros", o encontrar o único refúgio, tantas vezes, na solidariedade dos da mesma faixa etária, igualmente confrontados e inseguros, igualmente insatisfeitos, os "nós" que permitem enfrentar os "outros", toda esta situação de desconforto, de insegurança e descoberta é muitas vezes vivida em registro trágico e leva a pensar na morte. O próprio afastamento em relação à infância é intuído como a sua morte, na maioria dos casos, com algum exagero - mas não estão dramaticidade e exagero interligados? De forma habitual, não passa daí, mas nem sempre, e uma certa ameaça difusa é profundamente sentida. E, no entanto, a única possibilidade de atingir a constituição da própria personalidade, a singularidade e a responsabilidade, a capacidade de amar e de construir, passam por este desconforto e esta percepção de perigo, renascem desta morte.

Falámos de ameaça, mas quem diz ameaça diz provocação da nossa agressividade. Obviamente nem todas as relações representam a mesma ameaça de morte, como nem todas trazem em si o mesmo potencial de apelo à vida. Lugar muito especial deve ser reconhecido ao amor, à relação amorosa. E talvez por isso é necessário admitir que, aqui, mais do que em muitas outras experiências, nos deparamos com a maior das ambiguidades. O amor pode assumir formas tão possessivas que acaba por tentar, e por vezes, conseguir reduzir o outro a coisa minha ou a coisa nenhuma, quando na linha da oblatividade faz do outro um interlocutor, um co-responsável, um sujeito.

Há também que reconhecer uma imensa escala de realizações. Desde, na posição mais baixa de sucesso, as crianças autistas, fechadas nos seus gestos repetitivos, os esquizofrénicos, adultos ou adolescentes, nas sua recusa do real, os alunos que vandalizam as escolas da cintura industrial com que se não identificam e em que sistematicamente partem todos os vidros e todas as lâmpadas, as "máfias", as seitas, os grupos em guerra contra tudo e todos quer entregando-se a explosões ocasionais de violência racista contra ciganos ou pretos, quer não passando de um terrorismo meramente verbal, até num outro extremo da escala, encontrarmos figuras como São Domingos de quem o primeiro biógrafo testemunhou que era o mais dado e acolhedor de todos os homens, "nemo communior", e São Francisco, em fraternidade com todo o criado.

6. Como já disse mais de uma vez, é de admitir que essas sucessivas mortes, com maior ou menor intensidade, mais englobantes umas, mais pontuais outras, que todo este processo nos conduza um nascimento, ao nosso próprio nascimento, no sentido de realização e manifestação das potencialidades ocultas e não-assumidas, se não mesmo negadas. Mas esta perspectiva pode (e deve) alargar-se a uma dimensão muito mais ampla: e se o segredo da vida, se o segredo do próprio Universo for de tipo pascal? Se as convulsões, as desavenças, as guerras, os sofrimentos, se tudo isso for "as dores de parto" de que fala o ApóstoloS?

A propósito, dizia há pouco que o ponto de partida da caminhada histórica não era o Uno, mas o Caos. Embora, não apenas esse ponto de partida mas toda a linha que a partir dele se desenha dependam no ser desse mesmo Uno. Colocando-nos no ponto de vista da fé cristã, como temos vindo a fazer, pode acrescentar-se que o ponto de chegada, o alvo visado pelo plano de Deus, também não é o Uno, mas a pluralidade, ou com mais exactidão, a comunhão. Uma comunhão que implica o afastamento da unicidade, mas não pode passar sem a alteridade, na harmonia.

Verdade entrevista no mistério da Santíssima Trindade, a máxima unidade na plena diferença, ela é-nos também sugerida nos relatos bíblicos da criação: enquanto o relato sacerdotal apresenta a obra do Criador, como feita de distinguir, separar e multiplicar, o segundo relato apresenta, nesse quadro, a confrontação do Homem com os outros seres, com os animais, a quem põe o nome, e, num tempo posterior, na descoberta maravilhada e motivadora da Mulher, na sua alteridade..

Viver com os outros tem um dimensão pascal, que é mesmo a única viável, mas tem também, como sempre, como tudo, uma dimensão sacramental. Nas relações com os outros, preferencialmente na relação com o outro mais carregada de esperança e de risco, como é a do amor, está, quer se saiba quer não, quer se queira quer não, a relação com o Outro. As dimensões de humanidade, de confiança, de acolhimento e de respeito que saibamos introduzir nessas relações e pelas quais saibamos lutar, desenham em profundidade um posicionamento que atinge os fundamentos, a nossa relação com a Causa da nossa existência, o Sentido para lá do sentido, o Alvo, a Meta, a Paz.

7. Para terminar, cabe perguntar: "qual é a moral da história?" Será de delinear uma ética da relação com os outros? Ou, mais modestamente, que poderemos nós fazer? Em vez de uma resposta, três breves apontamentos.

Num primeiro, chamaria a atenção para a importância da relação connosco mesmos como base de toda e qualquer atitude mais correcta e construtiva para com os outros. A necessidade de nos assumirmos nós mesmos, com os nossos medos, travões, impaciências, sabendo que estão na origem de muito dos nossos juÍzos sobre os outros: "porque não prestam, porque não merecem confiança".

Ad secundum, consideraria que por mais verdadeira e espontânea que seja a atitude de defesa e de rejeição do outro, no fundo de nós mesmos, e com muito mais verdade, há o desejo de comunhão com o outro, com os outros, com o Outro, porque para isso fomos feitos.

Bem vistas as coisas, a recusa de relação, o repúdio do outro frusta-nos muito mais do que qualquer outra solução, positiva, da confrontação.

Em terceiro e último lugar, já que o valor base é a vida e a qualidade da vida, a primeira obrigação moral tem que ser vista na linha da abertura, do acolhimento, do amor e, formulando as mesmas verdades pela negativa, o maior erro humano o da recusa e da resistência a viver com os outros. Não seria mal se nos decidíssemos a repensar a moral, toda ela, a esta luz.

Mateus Cardoso Peres

 
NOTAS

1 Cfr. O Documento Libres pour Ia Mission elaborado pela Comissão de missione Ordinis da Ordem Dominicana em preparação do Capítulo Geral de Bologna (1998) e publicado na suas Ada, 15655. Nesse texto, essas linhas a identificar são as que apelam a uma presença apostólica de tipo evangélico.

2 Não há mesmo quem veja nesta meta física da saudade a essência da nossa identidade colectiva de portugueses e a perspectiva mais genuína do que se possa chamar a filosofia portuguesa?

3 Cfr. GS 10, 38 e 45.

4 Shakespeare, Macbeth, a. V, SC. V: "Life '5 but a walking shadow; a poor player that struts and frets his hour upon the stage and then is heard no more; it is a tale told by an idiot, full of sound and fury, and signifying nothing" .

5 Se necessário fosse comprovar a afirmação, lembraria os bem documentados casos de meninos-lobos e a curiosa história referida ao Imperador Frederico II (1194-1250) que, para apurar qual seria a língua primitiva mandou fazer a experiência de isolar um grupo de recém-nascidos a quem proibiu que alguma vez fosse dirigida a palavra, em qualquer língua. A experiência, porém, não resultou: as crianças em vez de começarem a falar em grego ou hebreu ou em qualquer outra venerável linguagem, morreram todas com poucos anos.

6 São Tomás de Aquino, Summa Theologiae (Ia-Ilae, 94, 2);"Inest enim prima iclinatio homini ad bonum secundum naturam in qua communicat cum omnibus substantiis, prout scilicet quaelibet substantia appetit conservationem sui esse secundum suam naturam".

7 Mt 10:39.

8 Rm 8: 22.