CIÊNCIAS E CRENÇAS (2)
Ana Luísa Janeira

 
 

OBSERVAR E EXPERIMENTAR

 

O discurso moderno enquadra-se num conjunto de desvalorizações, aquilo que nega (perspectiva negativa) e de valorizações, aquilo que propõe (perspectiva positiva): descrédito face à erudição livresca, expectativa prestigiante perante as ciências exactas. Para tal entusiasmo concorrem principalmente o lugar de destaque ocupado pela Física e Geometria e a importância atribuida aos novos aparelhos e técnicas. Iluminados pelo fulgor de Locke e Newton, interpretados segundo teses experimentalistas, os cientistas sobrevalorizam a prática, a experimentação. Esta estrutura mental funciona segundo conexões que determinam, por exemplo, a nível da educação, dois pólos privilegiados: a natureza educa-se, para se conseguir uma elite educada e ordenada é preciso capitalizar esforços, dentro de um léxico disciplinar, que inclui o ensino das ciências e visa uma normatividade social. Assim, o substrato natural de cada indivíduo necessita de uma intervenção cultural, luz a iluminar a mocidade. A disciplina do entendimento pressupõe um aproveitamento do espaço e um investimento no tempo.


Qual o contributo que se pode esperar das ciências? Organizam um país. Porquê? Porque se opõem ao ócio e à desordem. Porque defendem o método e os hábitos de trabalho. O exercício intelectual por meio das ciências pressupõe leis e impõe regras. Em suma, o rigor científico serve para organizar, controlar, gerir, capitalizar as exigências requeridas pelas Luzes.

Na sua globalidade, esta época acordou um lugar especial ao conceito de ordem. Na verdade, as figuras (filosóficas, científicas, artísticas) que emergem estão sempre associadas a ideias relacionadas com marcha ou combinatória, dado que: há necessidade de expressar a sucessão, o encadeamento e as hierarquias entre dados sensoriais ou imagens; é preciso exprimir o sistema, a subordinação e a classe entre seres vivos. Por isso, os enciclopedistas dão a conhecer as cadeias entre acontecimentos passados e os mecanismos perceptivos que condicionam o nosso relacionamento com o mundo exterior. Por isso, os Naturalistas enchem as suas descrições e análises com frequentes pormenores, visando estabelecer dependências entre estruturas lógicas e processos de conhecimento, no interior dos Três Reinos da História Natural.

Neste contexto, o primado da Metafísica dos factos e relações materiais (Bacon, Locke, Condillac) sobre a Metafísica do espirito e causas últimas (Descartes, Leibniz), por um lado, e o primado da Gnosiologia sensualista e empirista em desfavor do essencialismo e racionalismo, por outro, condicionam uma configuração sistema epistémica, onde a representação inclui regularidades precisas entre a ordem do conhecer (observação) e a ordem do ser (fenómeno), entre a ordem do sentir (sensação) e a ordem do pensar (indução).

Em seguida, aparecem condições para um novo palco, com cenários propulsionados por uma modernidade que não permite nenhuma identidade entre o passado mais próximo e o dinamismo futuro. Combinatória de possíveis, esta nova lógica autodefine uma área de limites e proibições, logo implica inexoravelmente uma interface de escolhas e impossibilidades, com repercussões a nível das crenças, contestadas ou diminuídas. Lógica essa bem afastada da precedente: a configuração epistémica do ouvir-ler não inviabilizou o olhar-ver, e permitiu-Ihe o advento, por transformação; por seu turno, o observar-experimentar nunca poderia ter emergido sem uma revolução no pensar. Os adquiridos vão preparar-se para ser consagrados como operatividades promissoras, socorridos pela precisão instrumental.

Pertencendo ao conjunto do conhecimento empírico, passivo e reactivo por essência, o ouvir e o ver opõem-se ao observar e ao experimentar, partes do universo teórico-experimental.

Lembre-se, a propósito, quanto a crítica dos idola proposta por Francis Bacon e quanto a dúvida metódica defendida por René Descartes foram importantes como exercícios preambulares requeridos pela atitude científica, ao arrepio das ilusões, erros e devaneios sensoriais. Na verdade, os primeiros acontecem numa sequência habitual, como mera expressão vital da normalidade psíquica, ao passo que os segundos implicam um processo articulado com momentos e fases. Além disso, recorde-se, as hipóteses representam instâncias onde actuam categorias de natureza intelectual, montadas muitas vezes na contracorrente do puro sentir.

Do abismo entre sistemas em confronto, da luta que divide gerações, vai resultar um empirismo extremo, um diálogo de surdos com a tradição especulativa e religiosa, a ponto de alguns abundarem em contrasensos, por confusão entre teoria e retórica: por esta ser combatida, o lugar daquela não é devidamente valorizado, no contexto de trabalhos cheios de descrições e sem rigor conceptual. O conhecimento científico da época associa dois grandes vectores em torno do observar: o nomear-classificar (ciências naturais e médicas); e o calcular-experimentar (ciências matemáticas e ciências físicas). Disso resulta uma detecção cuidada de semelhanças e diferenças. A ordem e a mathesis primam sobre o demais.

A par disso, verifica-se um outro movimento desdobrado: a preocupação sistemática em desenvolver a capacidade das vias sensitivas, através de equipamento e de lugares singulares (termómetros, telescópios, balanças); a necessidade de construir condições privilegiadas para potencializar, avaliar e testar as informações espontâneas obtidas pelos sentidos, mediante espaços individualizados para a produção (Observatórios Astronómicos, Museus de História Natural, Gabinetes de Física, Laboratórios de Química). Todo este conjunto de actividades demonstra quanto o senso-comum, entendido como obstáculo epistemológico, está afastado na sua expressão de um olhar = fitar com os olhos, ou de um ver = conhecer e perceber pelo sentido da vista. Os gestos de repúdio serão imperativos e servidos pela normatividade soberana: o direito de abolir e de proibir. Assim sendo, os jesuítas são culpados do que fizeram, porque fizeram, e do que omitiram, porque omitiram. Assim sendo, o pensamento cartesiano aparece como entrave à divulgação das teses newtonianas, na medida em que se deve abandonar a Física dedutiva em favor de uma área prometedora e predominante, como é a área da Física matemática: os problemas da extensão e do movimento cedem perante a aquidade de outras prioridades; a investigação quantitativa dos fenómenos físicos sai dominante e vencedora.

Entretanto, os governos começam a perceber como é lucrativo intervir na concentração dos conhecimentos e na optimização dos recursos científicos, ao que as Academias correspondem perfeitamente. A par disso, a política do crescimento económico, o impacto dos ciclos de emigração e o investimento proveitoso nas missões feitas por naturalistas através do Novo Mundo ajudam a definir um projecto com repercussões nas ciências. Apesar de muitos destes aspectos, no todo ou na parte, terem merecido, de há muito, a atenção de inconformistas, face ao estado vigente, não resta dúvida que este discurso, dominador e até parcial, foi importante, para que os anseios de uns tantos e os desejos de uma minoria esclarecida pudessem deixar o impossível para ocuparem o factual.

Dentro dessas impossibilidades, porque a lógica do ouvir orientava a configuração preponderante nos espaços académicos existentes, será de incluir a impraticabilidade de algo semelhante a uma Royal Society ou de uma Académie Royale des Sciences de Paris, antes de se imporem as regras do observar, anulando a prepotência das normas anteriores. Geram-se, então, efectivamente as condições essenciais para a ciência moderna. Na verdade, usar-se a palavra anteriormente não significava, por si, entendê-Ia como sinónima do universo teórico-experimental que Copérnico e Galileu ajudaram a definir e que Newton consagrou. Uma coisa são os vocábulos-ideias, outra coisa os conteúdos (compreensão e extensão) atribuídos. Além disso, urge ainda integrar o texto no contexto, havendo casos onde as reservas prevaleciam sobre os entusiasmos, ou onde se exorcizavam contactos com a modernidade científica; todavia, isso não permite afirmar que a mesma não se encontrava mesclada, amalgamada e obscurecida entre contradições de retórica e muitos panejamentos de pura erudição.

O conjunto destas constatações indica que as elites avançadas da Inglaterra, França, Itália, Rússia, etc. começam a estar preparadas para o movimento geral tendente a acolher o pensamento e a ciência de Newton, nos seus quadros institucionais.



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