Cadernos do ISTA . número 17
A verdade em processo

 

OS ESTUDOS BÍBLICOS HOJE:
Pluralidade dos métodos,
das abordagens e dos resultados

FRANCOLINO J. GONÇALVES

École Biblique et Archéologique Française . Jerusalém

 

b. Perda de vista do conjunto do livro.

Tendo-se debruçado quase só sobre as partes que considera autênticas, a exegese histórico-crítica estudou só uma parte, nalguns casos pequeníssima, de cada um dos livros proféticos. Não tendo prestado a devida atenção às partes secundárias, a exegese histórico-crítica não só ficou parcelar, mas perdeu de vista a forma real de cada um dos livros.

Tomando a imagem de um puzzle, poderia dizer-se que a exegese histórico-crítica desmontou as peças de que é formado determinado livro profético, reorganizou só uma série delas e deixou as outras espalhadas na mesa. Além de parcelar, o puzzle reconstituido pelos exegetas é necessariamente hipotético. Anormal no caso de qualquer um dos livros proféticos, a situação é caricatural no caso do livro de Isaías, por causa da divisão que dele se fez em duas ou três obras diferentes. Com efeito, desde há cerca de um século estudou-se cada uma das partes do livro de Isaías por si mesma, sem relação com a outra ou com as outras duas.

Por mais curioso que possa parecer, a exegese histórico-crítica não se preocupou muito com saber como é que os dois ou três livros foram reunidos num só volume e por que razão foram postos sob o nome de Isaías. De maneira mais ou menos implícita, os exegetas pensam que os dois ou três livros foram simplesmente justapostos. Muitos nem sequer levantaram a questão das razões desta justaposição. Entre os que levantaram essa questão, houve quem visse na justaposição dos diferentes livros um fruto do acaso. Segundo uns, os dois ou três livros foram justapostos porque os seus autores eram homónimos (1). Outros avançaram razões económicas. Sobrando-lhe um grande bocado de rolo depois de copiar o livro de Isaías (cap. 1-39), um escriba teria copiado nele os cap. 40-55 ou 40-66, para não desperdiçar esse material precioso (2). Uma e outra explicação não passam de conjecturas, para as quais nem sequer se procurou um qualquer fundamento nem no texto nem fora dele. A segunda até é pouco verosímil. Com efeito, sendo caro o pergaminho, preparavam-se normalmente os rolos com as dimensões necessárias para a obra a copiar. Houve também quem sugerisse (3) que os cap. 40-55 ou 56-66 foram atribuidos a Isaías por causa da autoridade excepcional de que ele gozava. Tal explicação talvez não passe de um círculo vicioso. Com efeito, ela supõe que Isaías gozava já de uma autoridade especial no momento em que os cap. 40-66, ou talvez só as suas partes mais antigas, foram inseridos no livro de Isaías. Ora, essa suposição não está provada, longe disso. Uma coisa é certa. Isaías não foi desde sempre o profeta por excelência ou, pelo menos, não foi sempre e universalmente reconhecido como tal. Com efeito, segundo Jr 26, 17-19, o grande porta-voz de Iavé no tempo de Ezequias não era Isaías, mas o seu contemporâneo Miqueias. Jeremias 26, 17-19 supõe que Miqueias desempenhou junto de Ezequias e de todo o povo, nomeadamente aquando da ameaça de Senaqueribe em 701, o papel que 2 R 18, 14-20, 19; Is 36-39 e 2 Cr. 32, 1-23 atribuem a Isaías. Embora seja difícil datar com exactidão Jr 26, 17-19, esse texto talvez não seja anterior ou, pelo menos, muito anterior à inserção das partes mais antigas dos cap. 40-55 no livro de Isaías. Nesse caso é legítimo perguntar se, ao contrário do que alguns aventaram, Isaías não terá ganho a sua autoridade especial e não se terá tornado o profeta por excelência, graças à atribuição que lhe foi feita da autoria dos cap. 40-66.

A explicação mais corrente é a que faz apelo à existência de uma escola isaiana. Segundo esta hipótese, que Margoliouth (4) parece ter sido o primeiro a propor e à qual Mowinckel (5) deu posteriormente um novo impulso, os cap. 40-55 foram acrescentados ao livro de Isaías (cap. 1-39), por serem obra de um discípulo anónimo de Isaías do tempo do exílio. Finalmente, os cap. 56-66 foram acrescentados aos cap. 1-55, por serem da autoria de um ou de vários discípulos do autor anónimo dos cap. 40-55 (6). É verdade que Is 8, 16-18 parece supor a existência de discípulos de Isaías (7). Mesmo que tenha havido um grupo de discípulos de Isaías durante a sua vida e no período que se seguiu imediatamente, nada permite afirmar que esse grupo se perpetuou durante mais de dois séculos. O facto de os oráculos de Isaías terem sido transmitidos e comentados não prova a existência de uma escola isaiana. O mesmo aconteceu com os oráculos dos outros porta-vozes de Iavé dos séc. VIII-VII e com alguns posteriores. A tradição conservou um número maior ou menor de oráculos desses porta-vozes de Iavé, reuniu-os em colectâneas e enriqueceu cada uma delas com outros textos mais ou menos extensos. É pouco verosímil que tenha havido em Jerusalém escolas ou confrarias de discípulos de cada uma das personagens que estão na origem dos livros proféticos. Como observa Clements (8), a hipótese que faz apelo à existência de uma escola isaiana para explicar a formação do livro de Isaías talvez não passe de uma variante da convicção tradicional relativa à unicidade de autor. Não podendo atribuir a totalidade do livro a uma só pessoa física, atribui-se a uma pessoa colectiva, a uma escola ou a um grupo de discípulos de Isaías.

 

(1) G. Fohrer, Das Buch Jesaja. 3 , Zürich-Stuttgart, Zwingli Verlag, 1964, p. 2; A. P enna, Isaia (Sacra Bibbia), Torino-Roma, Marietti, 1964, p. 378.

(2) O. Eissfeldt, Einleitung in das Alte Testament, Tübingen, J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1934, p. 388; R. H. P feiffer, Introduction to the Old Testament, New York/London, Harper & Brothers, 1941 3, pp. 447-448.

(3) G. Fohrer, Das Buch Jesaja. 3, Zürich-Stuttgart, Zwingli Verlag, 1964, p. 2.

(4) G. Margoliouth, « Isaiah and Isaianic », The Expositor 9 (1910) 525-529.

(5) S. Mowinckel, Prophecy and Tradition. The Prophetic Books in the Light of the Study of the Growth and History of the Tradition, Oslo, Dybwad, 1946

(6) Por exemplo, D. R. Jones, «The Traditio of the Oracles of Isaiah of Jerusalem», ZAW 67 (1955) 226-246; J. H. E aton, «The Origin of the Book of Isaiah», VT 9 (1959) 138-157; J. S chreiner, «Das Buch jesajanischer Schule», em J. S chreiner (ed.), Wort und Botschaft, Würzburg, 1967, pp. 143-162; D. B ourguet, « Pourquoi a-t-on rassemblé des oracles si divers sous le titre d’Esaïe? », Études Théologiques et Religieuses 58 (1983) 171-179.

(7) Invoca-se também Is 50, 4. No entanto, esse texto não fala de um discípulo de Isaías nem de qualquer outro ser humano. O autor desse texto declara-se discípulo do próprio Iavé.

(8) R. E. Clements, «The Unity of the Book of Isaiah», Interpretation 36 (1982) 119-120 (117-129); I dem, «Beyond the Tradition History. Deutero-Isaianic Development of First Isaiah’s Themes», JSOT 31 (1985) 96-97 (95-113).

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