Cadernos do ISTA . número 17
A verdade em processo

 

OS ESTUDOS BÍBLICOS HOJE:
Pluralidade dos métodos,
das abordagens e dos resultados

FRANCOLINO J. GONÇALVES

École Biblique et Archéologique Française . Jerusalém

 

2. Os manuscritos de Qumran e os estudos histórico-críticos do livro de Jeremias

Entre os livros proféticos, Isaías é, de longe, o que está melhor representado nos manuscritos que foram achados em Qumran. É o livro profético de que lá se encontrou o maior número de exemplares. Além disso, 1QIsa contém o livro quase na íntegra. É verdade que os manuscritos isaianos de Qumran forneceram informações preciosas sobre a transmissão do texto do livro. No entanto, não desempenharam um papel significativo na renovação dos estudos histórico-críticos de Isaías.

Não se pode dizer o mesmo do livro de Jeremias, menos bem representado em Qumran. Encontraram-se vários fragmentos desse livro nas grutas 2 e 4. Os especialistas não estão de acordo sobre o número de manuscritos a que eles pertencem: Quatro para uns, seis para os outros. Segundo a divisão proposta por Tov, adoptada na edição oficial, a biblioteca de Qumran teria tido pelo menos seis exemplares do livro de Jeremias (1).

Para o que nos interessa, o mais importante é assinalar que os manuscritos de Qumran documentam já as duas formas do livro representadas pela tradução grega dita dos Setenta (LXX) e pelo texto hebraico ou texto massorético (TM). 2QJer (2Q12), 4QJer a (4Q70) e 4QJer c (4Q72) representam uma forma do livro aparentada ao TM. 4QJer b (4Q71) e 4QJer d (4Q72a) documentam um texto aparentado à LXX (2).

O facto da existência das duas formas do livro em Qumran estimulou e renovou os estudos histórico-críticos de Jeremias. Teve também repercussões no estudo dos outros livros proféticos.

Existem diferenças importantes entre a LXX e TM do livro de Jeremias. Uma das mais notáveis consiste no lugar que ocupam os “Oráculos contra as Nações” assim como na organização dos mesmos. No TM, os Oráculos contra as Nações são introduzidos em Jr 25,13-38, mas, de facto, encontram-se no fim do livro, em Jr 46-51. Na LXX, eles estão no centro do livro, em Jr 25,14-32,24. As Nações visadas são as mesmas nos dois casos, mas são mencionadas em ordem diferente. A outra grande diferença entre a LXX e o TM consiste na extensão dos textos. O TM é mais longo cerca de um sétimo. Tem palavras, frases, parágrafos e até passagens relativamente longas, sem correspondência na LXX. As passagens próprias ao TM mais longas são Jr 17,1-4; 29,6-20; 33,14-26; 39,4-13; 51,44b-49a; 52,27b-30.

As diferenças entre o TM e a LXX foram já assinaladas por Orígenes e Jerónimo. Na Carta a Affricanus, cerca de 250, Orígenes escreve, no § 7 : «Também observei muitos exemplos em Jeremias, onde encontrei até muitas mudanças e deslocações no texto das profecias». Orígenes encara as diferenças entre os dois textos como defensor da Bíblia grega, que era a Bíblia cristã. Pelo contrário, Jerónimo toma partido pela Bíblia hebraica. No Prólogo à tradução de Jeremias a partir do hebraico cerca de 390-392, escreve: «Além disso, rectificámos segundo a autoridade do original a ordem das visões completamente perturbada entre os Gregos e os Latinos». No comentário ao livro de Jeremias, cerca de 415-420, Jerónimo assinala também o que chama as numerosas omissões do grego. Depois destas declarações, é claro que, na sua tradução latina que veio a tormar-se a Vulgata no Ocidente cristão, Jerónimo seguiu o texto hebraico. O mesmo aconteceu com a versão siríaca. Pelo contrário, a Vetus Latina e os Padres da Igreja, tanto os Latinos como os Gregos, seguiram o antigo texto grego, anterior às revisões de Teodocião, Áquila e Símaco, que tenderam a conformá-lo com o texto hebraico corrente.

Eichhorn foi o primeiro, em 1777, a estudar de maneira crítica as diferenças entre o texto hebraico e o texto grego de Jeremias (3). As suas conclusões contradiziam a convicção de Jerónimo, tornada tradicional, segundo a qual o texto grego era uma forma abreviada e perturbada do hebraico. Segundo Eichhorn, tudo parece indicar que o TM é uma edição revista e aumentada da Vorlage hebraica da LXX. O exegeta conclui que a LXX e o TM representam duas edições do livro. Eichhhorn ainda não duvida de que o próprio Jeremias seja o autor de ambas. No decurso do séc. XIX, uma série de estudos tendiam a mostrar que, em muitos casos, o TM de Jeremias é uma ampliação do texto curto traduzido do hebraico para grego. Podem mencionar-se os de Movers (4), Scholz (5) e Streane (6). Em sentido contrário, Spohn defendeu, em 1824, que a LXX é uma forma abreviada do TM (7). A hipótese segundo a qual o texto hebraico usado pelo tradutor grego era idêntico ao TM continuou maioritária até há pouco tempo. As diferenças entre o TM e a LXX dever-se-iam ou a acidentes na transmissão textual ou à inépcia do tradutor, ou ainda à sua vontade deliberada de mudar o texto, em particular de o encurtar.

Documentando a existência das duas formas do livro de Jeremias em hebraico, os manuscritos de Qumran tornam improvável a hipótese tradicional segundo a qual as diferenças entre o TM e a LXX se deveriam ao tradutor grego. A LXX e o TM representam antes duas edições do livro que coexistiam já em Qumran em hebraico, talvez a partir de fins do séc. III a. C., ou, pelo menos, a partir do séc. II ou do séc. I a. C. Os manuscritos jeremianos de Qumran lançaram assim sobre novas bases a questão da relação entre as duas formas do texto. Já levantada no séc. III da era cristã, essa questão foi praticamente a única que a exegese crítica do livro de Jeremias tratou até ao séc. XIX.

No estado actual das pesquisas, a história das últimas etapas da formação do livro de Jeremias deve passar necessariamente pela comparação das duas formas do livro representadas pela LXX e pelo TM (8). A montante delas, esbarra-se com a questão da relação entre o livro e o deuteronomismo, a questão clássica do estudo de Jeremias desde o comentário de B. Duhm, publicado em 1901.

 

(1) M. B aillet, «Textes bibliques», em M. B aillet, J.T. Milik, e R. de Vaux (eds), Les ‘petites grottes’ de Qumran (DJD III), Oxford, Clarendon Press, 1962, pp. 62-69; Emanuel T ov, em E. U lrich et al. (eds), Qumran Cave 4. X. The Prophets (DJD XV), Oxford, Clarendon Press, 1997, pp. 145-207.

(2) J. Gerald Janzen,Studies in the Text of Jeremiah (HSM 6), Cambridge, MA, Harvard University Press, 1973, pp. 173-184; Emanuel T ov, «Three Fragments of Jeremiah from Qumran Cave 4», RQ 60/15 (1992) 531-541.

(3) J.G. Eichhorn, Bemerkungen über den Text des Propheten Jeremias, Repertorium für Biblische und Morgenländische Literatur 1 (1777) 167-168.

(4) F. C. M overs, De utriusque recensionis vaticiniorum Ieremiae, Graecae Alexandrinae et Hebraicae masorethicae, indole et origine commentatio critica, Hamburg, Perthes, 1837.

(5) A. S cholz, Der masorethische Text un die LXX-Übersetzung des Buches Jeremias, Regensburg, 1875.

(6) A. W. S treane, The Double Text of Jeremiah, Cambridge, 1896.

(7) M.G.L. S pohn, Ieremias vates e versione Iudaeorum Alexandrinorum ac reliquorum interpretum graecorum emendatus notisque criticis illustratus, 2 vol., Leipzig, 1824.

(8) P.-M. B ogaert, «Le Livre de Jérémie en perspective : les deux rédactions antiques selon les travaux en cours», RB 101 (1994) 363-406.

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