Cadernos do ISTA . número 17
A verdade em processo

 

OS ESTUDOS BÍBLICOS HOJE:
Pluralidade dos métodos,
das abordagens e dos resultados

FRANCOLINO J. GONÇALVES

École Biblique et Archéologique Française . Jerusalém

 

I. ESBOÇO DA HISTÓRIA DOS ESTUDOS BÍBLICOS ATÉ CERCA DE 1970
A. O estudo tradicional da Bíblia

No mundo ocidental, os escritos bíblicos foram e continuam a ser os livros mais lidos e estudados. Durante muitos séculos o seu estudo foi feito numa perspectiva exclusivamente religiosa e confessional. Tendo unicamente a preocupação de perceber imediatamente a palavra de Deus, a exegese tradicional prestava pouca ou nehuma atenção às múltiplas e variadíssimas palavras humanas nas quais a palavra divina se expressa ou incarna.

1. Relativo desinteresse do judaísmo pelo estudo das suas Sagradas Escrituras

De facto, o estudo da Bíblia, não só do Novo mas também do Antigo Testamento, foi sobretudo obra de cristãos. É verdade que a liturgia sinagogal gira à volta da Torá (Lei ou Pentateuco) e comporta também a leitura das outras duas partes do Tanak (1), isto é, dos Livros Proféticos e dos Escritos (sobretudo os livros poético-sapienciais).

No entanto, a primazia de que o Tanak goza na liturgia judaica contrasta de maneira flagrante com a escassez da sua leitura fora da sinagoga. O estudo judaico tradicional tem por objecto, não o Tanak ou a Torá escrita, mas a chamada Torá oral. Segundo a tradição rabínica, Moisés recebeu de Deus no Sinai uma dupla Torá: uma escrita e outra oral, a segunda completando a primeira. A Torá oral acabou por ser escrita, dando origem à Mixná (2), ao Talmude, à Tosefta (3) e às numerosas colecções de midraxes (4). A Torá oral é, na prática, a verdadeira fonte das normas de conduta. Ora a aplicação da Mixná e do Talmude às circunstâncias mais variadas da vida exige o seu estudo constante e aturado. Enquanto a Torá é sobretudo lida e celebrada na liturgia, a Mixná e o Talmude são estudados e postos em prática. Os próprios termos que designam as duas “escrituras” expressam essa diferença entre elas. Ao passo que Miqrá, outro nome tradicional das Escrituras judaicas, significa literalmente leitura, convocação (5), Talmude significa literalmente ensino, aprendizagem, estudo. Na formação judaica tradicional, o estudo da Mixná, embora seja precedido pelo estudo do Tanak, começa muito cedo, entre os oito e os dez anos. Um pouco mais tarde, o jovem judeu entra finalmente no estudo do Talmude, estudo esse que poderá prosseguir durante a idade adulta. O estudo do Talmude é a tarefa das escolas rabínicas ou talmúdicas. Os seus mestres consagram a vida inteira ao estudo e ao ensino do Talmude. Há quem veja no estudo da Mixná, em particular, o equivalente ao sacrifício que se oferecia no Templo.

No entanto, houve sempre no judaísmo grupos minoritários que só aceitavam a autoridade das Escrituras. No virar da era, quando ainda existia o templo, foi o caso dos saduceus e do grupo que nos deixou a biblioteca encontrada em Qumran. Segundo a opinião comum, esse grupo fazia parte dos essénios, de que falam Filão de Alexandria e Flávio Josefo. Na época rabínica os representantes desta tendência foram os caraítas, que têm várias semelhanças com as gentes de Qumran. Um dos indícios do parentesco espiritual entre os dois grupos é a presença do chamado Escrito de Damasco na biblioteca de Qumran e na Gueniza de uma sinagoga caraíta do Cairo (6). O nome caraítas (do hebraico q eraîm) significa literalmente “leitores”, subentendendo-se, das Escrituras (em hebraico Miqrá) (7). O iniciador do caraísmo foi o rabino Anan ben David, que viveu em Bagdad no séc. VIII d. C. Espécie de protestantes do judaísmo, os caraítas afirmam o princípio da sola Scriptura, rejeitando a Torá oral, isto é, todo o sistema rabínico expresso na Mixná e no Talmude. O caraísmo depressa se propagou na Mesopotâmia e na Pérsia. No séc. IX chegou à Palestina e, passando por Constantinopla, de lá se difundiu na Europa central e oriental. Com algumas centenas de membros em todo o mundo, o caraísmo está actualmente em vias de extinção.

 

(1) Acrónimo de Torá-Nebî’îm-K etubîm (Lei-Profetas-Escritos), uma das designações mais frequentes das Sagradas Escrituras judaicas.

(2) “Repetição” ou “Segundo texto”. Corpo legislativo judaico, compilado cerca de 200 d. C. por Jehuda Ha-Nasi. Rege toda a vida judaica tanto no domínio individual como no domínio colectivo.

(3) “Acrescento”.

(4) Comentários aos livros bíblicos de cariz homilético e edificante.

(5) Miqrá é o correspondente etimológico e semântico do árabe Qur’an (Alcorão).

(6) Encontraram-se vários exemplares desse escrito em Qumran e dois na sinagoga caraíta do Cairo. Os dois manuscritos provenientes da sinagoga do Cairo datam do séc. X. Acharam-se casualmente em 1890.

(7) Outro nome por que são conhecidos os caraítas é bené miqrá (literalmente “filhos da leitura”, isto é, “filhos das Escrituras”).

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