CADERNOS DO ISTA, 16
O Enigma da Sexualidade

NOTAS PARA UMA
ÉTICA SEXUAL

Mateus Cardoso Peres

 
Esboço de alternativa

Toda a moral sexual cristã terá que ser elaborada na fidelidade ao dado revelado, particularmente às coordenadas do Novo Testamento, sem o que não poderá, em verdade, dizer-se cristã. Importa, com efeito, respeitar e, quando necessário, restabelecer a hierarquia das verdades (1) assim como das fontes da doutrina católica. Não é de facto admissível que, para não romper a continuidade com o magistério dos teólogos dos últimos séculos, que acabou por se impor ao próprio magistério dos pastores, se venha a menosprezar, em termos práticos, a revelação de Deus, no seu mais alto ponto, quanto a conteúdo e explicitação. Além disso, impõe-se que se tenha em vista algumas das características da cultura do nosso tempo mais directamente implicadas na vivência e na reflexão em torno da sexualidade, assim como a contribuição das ciências humanas, porque é imperativo, penso, que aquilo que se possa vir a dizer, neste campo, seja compreendido e acolhido tanto por cristãos – e não apenas aceite porque imposto pela autoridade - como por não cristãos. De facto, o que a reflexão cristã mais tradicional nos ensinou foi que a verdade moral objectiva, pelo menos nos seus grandes princípios, era naturalmente acessível, isto é, sem as luzes da fé, e de que o senso moral inato nas criaturas humanas tornava possível o debate entre todos e alguns, não poucos, consensos em matéria moral. Como é óbvio, no modesto contributo que se segue, muito do possível fica por utilizar: trata-se sobretudo de uma tomada de posição, uma opção metodológica, em cuja fecundidade se acredita.

Começando pelo aspecto da fidelidade ao conteúdo dos textos do Novo Testamento, é forçoso reconhecer, antes de mais, que a sexualidade não ocupa grande espaço nesses escritos e não parece ser uma preocupação dominante. Jesus, nas suas instruções aos discípulos, praticamente não se ocupa disso: a excepção, se é que de excepção se trata, consiste em mencionar a proibição do adultério da Lei mosaica para lhe dar nova dimensão (2). No que diz respeito aos ensinamentos dos apóstolos, há um pouco mais, mas também sem grande originalidade e apenas nos escritos paulinos (3). Mas, se as intervenções directas sobre as questões sexuais são poucas e o tema não parece de forma alguma ser central a nível do Novo Testamento, o que creio ser indiscutível, nem por isso a perspectiva da fidelidade à sua mensagem deixa de ser imperativa. Terá, porém, de ser levada a cabo não como uma mera aplicação de textos às várias situações, mas, partindo do sentido global dessa mensagem como de uma inspiração segura, mais, obrigatória, para elaborar de forma rigorosa e coerente respostas aos problemas.

Como nota prévia, necessária e esclarecedora, convém assumir o carácter humano e ético da sexualidade. Para os cristãos será evidente, à partida, que Eros não é divino. Aquela atitude de liberdade e contestação dos cristãos primitivos que levava os outros a acusá-los de ateus tem aqui o seu lugar. Atitude essa que percorre a Bíblia, desde a primeira página, o chamado relato sacerdotal da criação (4), passando pelas troças do Salmista ao culto dos ídolos (5), para ser confirmada na actuação missionária de Paulo face aos gentios (6), e que se traduz numa visão dessacralizada, ou mesmo desdivinizada, do mundo, ao mesmo tempo que se é convidado a reconhecer a bondade das criaturas, com Deus que “viu que era tudo muito bom”. Acrescento que esta abordagem – justificada pela afirmação, frequentemente feita com alguma dose de credibilidade, de que a situação actual tem bastante de neopagã - não me parece de todo inacessível aos partidários de posições ditas humanistas. Certamente, a lucidez para não reconhecer carácter divino a Eros e a coragem de o levar às últimas consequências não são o monopólio de crentes.

Ao recusar o carácter divino de Eros, é-se forçado a considerar a sexualidade em coordenadas éticas. Por um lado, não se lhe reconhece o direito de se impor soberanamente, de se não submeter ao que lhe é exterior nem pactuar com outros universos, por outro, a experiência de todos impede que se ignore pura e simplesmente a sua existência, a sua exigência, ao mesmo tempo que, na espécie humana, essa exigência aparece mal regulada, ou insuficientemente integrada e canalizada, para muitos como uma ameaça. Por todas estas razões, a sexualidade, nem divina nem animal, incontornavelmente humana, busca, pede um sentido e pede-o – pediu-o sempre à ética. Mais: pode ter-se a sexualidade como um valor, pode considerar-se o prazer um valor, mas não um valor absoluto, um ídolo, objecto de idolatria: relativo, é forçosamente enquadrável num projecto de vida mais global, orientado para valores mais absolutos.

Convém, assim, apesar de parecer excessivamente genérico, que nos situemos nas perspectivas de Evangelho, verdade sólida sobre a qual se poderá construir, embora quase sempre esquecida nas propostas dos cristãos neste domínio. Refiro-me ao facto da Boa Nova de uma salvação, efectivamente realizada em Cristo e oferecida a todos que a ela queiram aderir, que nela se empenhem na fé. Pensam os cristãos que o facto de a salvação da humanidade ter “justificado” a morte do Filho de Deus demonstra o enorme apreço que cada ser humano, sem excepção, tem aos olhos de Deus. Já na revelação da Antiga Aliança, em torno da sua criação à imagem e semelhança de Deus, se tinha acentuado o seu valor inultrapassável, no seio da criação, mas a notícia da salvação pelo sacrifício de Cristo não só confirma como alarga essa coordenada de antropocentrismo optimista de toda a Revelação. Por isso, não se pode deixar de ver que, neste domínio como em qualquer outro, aliás, se nos impõe uma atitude básica de respeito pela dignidade da pessoa humana, um dado indiscutível de toda a ética cristã. Daqui decorre necessariamente a reprovação de toda a exploração, porque pessoas não são coisas, nem podem ser tratadas como objectos. A grande maioria dos nossos contemporâneos está de acordo com isto, particularmente no que diz respeito à pedofilia e ao comércio de seres humanos associado à prostituição. Penso que se pode ir mais longe, por razões de coerência, e reprovar também, com o consentimento na degradação de si mesmo, a exploração livre e reciprocamente consentida. Tem-se, muitas vezes, invocado, mesmo em termos legais, a barreira do “consentimento livre de pessoas adultas”, como barreira a respeitar pela sociedade, o que se justifica porque o respeito pelas pessoas engloba forçosamente o respeito pela sua liberdade de opção. Mas é uma perspectiva minimalista, necessária sim, mas não suficiente, e no horizonte da verdade moral, que é o mesmo que dizer da autenticidade humana, cabe perguntar: aqueles que livremente aceitam ser objectos sexuais serão mais felizes? Não se poderá, nem deverá, talvez, intervir em tais situações; mas só porque voluntárias, já estão certas? Salvas as devidas proporções, penso que se poderá aqui estabelecer um paralelo esclarecedor: só porque não podemos ou sabemos fazer algo de útil, vamos consentir e concordar com o lento suicídio de drogados e alcoólicos?

Como primeiras aquisições da nossa busca temos, portanto, o princípio da dignidade e responsabilidade humanas e o reconhecimento de que, no quadro da fé cristã, não nos podemos contentar como o mero reconhecer da liberdade de opção: não é suficiente (7). Disse “no quadro da fé cristã”, mas acrescento que, na perspectiva mais geral de uma busca racional de sentido para a sexualidade humana, também se pode intuir que não é suficiente. Contentar-se com a exaltação da liberdade, limitando-a apenas pela regra de não prejudicar outro ser humano, mesmo que esse nisso consinta, seria, no fundo, desistir de buscar um sentido, de elaborar uma valorização, o que constituiria provavelmente caso e inédito na história das culturas e, como tal, não parece muito humano.

Que mais há a considerar? O cristão que queira buscar enfrentar-se com o enigma da sexualidade – e quem poderá eximir-se de o fazer? - deverá, antes de mais, situar-se no terreno sólido da sua relação face a Deus. O Deus por quem o cristão opta, no acto radical da sua conversão, é um Deus com um projecto de libertação e realização das pessoas, que o cristão faz seu, e que se traduz, não num código de proibições e permissões, mas na percepção de valores, objectivos e métodos, que também assume, e que deverão constituir os fundamentos teológicos de uma ética de salvação; tudo isto virá a exprimir-se, entre outras coisas, no primado da intenção e da consciência (8).

Há uma inequívoca dimensão escatológica na existência cristã, não forçosamente no sentido da “fuga do mundo”, ou de “desprezo do mundo”, mas seguramente na perspectiva da contestação e, porque não?, da transformação do mundo. Mais explicitamente: a dimensão escatológica de todos os cristãos não tem de ser vivida sempre da mesma forma. Há vocações e vocações: a uns é dado, numa lógica de corte com o mundo, anunciar o reino futuro, a outros, numa lógica de encarnação, contribuir para a transformação do mesmo mundo. Uns e outros contestam o tempo presente. Infelizmente, deu-se, no decorrer dos séculos, uma quase exclusiva identificação, em Igreja, com a lógica do corte, em detrimento da outra. Embora contestada no Concílio Vaticano II, esta tendência chegou aos nossos dias, com as mais claras marcas precisamente no campo do tratamento cristão da sexualidade. Lembremos a exaltação da virgindade e a desvalorização do matrimónio como do prazer, por parte dos Padres da Igreja, a partir do século III (9). Não deixa de impressionar uma tão longa e consistente tradição, com tão poucas vozes alternativas. No entanto, o que é realmente normativo da fé e do agir segundo a fé é a Revelação, nomeadamente a do Novo Testamento, que, segundo o consenso dos intérpretes, tem um teor de equilíbrio bem diferente.

Aliás, a regra viva do agir cristão, a imitação e o seguimento de Jesus (10), aponta para o primado da caridade, entendida em seu sentido forte como mandato de colaboração no projecto de Deus, serviço que visa o bem do outro, a sua construção, assim como a do mundo, nunca a sua destruição, mas a libertação de toda a desfiguração do pecado, com o retomar do projecto inicial da criação, a realização, no amor, de toda aquela bondade que o Deus criador viu com gosto no que tinha acabado de fazer (11). Contrapondo-se a esta apreciação inicial, como não invocar o “Faço novas todas as coisas” com que, segundo o Apocalipse (12), se porá fim à atribulada caminhada histórica da humanidade. Embora de uma amplidão tão grande que pode parecer nada operacional, em termos éticos, esta perspectiva de uma recuperação e transformação, no amor à maneira de Cristo, na ágape, não deixa de ser significativa. Não se trata de negar ou tentar destruir, mas de transformar Eros, também ele criatura de Deus, também ele passível de redenção, abri-lo a outras dimensões, sem o desnaturar, enquadrá-lo numa vida com sentido, um sentido cuja última palavra é a do hino à caridade. “Se não tiver amor... nada sou, nada me adianta”.

Tudo isto é, sem dúvida, muito genérico. Mas, de facto, face às nossas modernas interrogações éticas, neste como noutros pontos, encontram-se apenas algumas referências fundamentais a ter em conta, as que decorrem muito directamente da novidade de vida em Cristo, sem que as suas implicações práticas ou disciplinares estejam minimamente delineadas. É o tempo dos começos, da abertura, mas é também um tempo em que impera um grande apreço e respeito pela liberdade cristã. Recorde-se a maneira exemplar como Paulo reage ao que lhe escrevem de Corinto, a respeito da reivindicação de uma liberdade sem critérios, relativamente à fornicação (13). Reconhece-se que há abusos e deturpações, com especial incidência neste campo (14). Mas isso não é motivo para pôr em questão ou negar a liberdade cristã. Além disso, não se faz apelo ao que a sexualidade é, à sua natureza, mas à situação de “comprados por alto preço” e a caminho do Reino, como fundamento, indiscutível entre cristãos, para a conclusão de que há actuações que ajudam e outras que são prejudiciais, até para a própria liberdade. É um contributo seguramente muito limitado, mas, por isso mesmo, faz-nos sentir que o essencial de uma moral cristã é mesmo o assumir de um ideal a alcançar, embora já presente como dom e dinamismo – e não apenas o conhecimento, aliás sempre aleatório, da natureza de que somos feitos - a partir do qual se pode elaborar a ética necessária.

 

(1) Cfr. Mt 23: 23-24; UR 11 § 3.

(2) Cfr. Mt 5:27.

(3) Além da inclusão de fornicação e impureza nas listas de vícios (as obras da carne, Gal 5:19), assim como da continência nas das virtudes (ib. 23), e da afirmação de que o desregramento sexual é fruto da descrença no Deus criador (Rm 1: 20-27), são de mencionar as respostas aos “casos” submetidos pelos cristãos: a situação incestuosa (5), a fornicação (I Co 6: 12ss) e a defesa das relações conjugais (7: 1-5).

(4) Gen 1: 1- 2: 4 a .

(5) Sl 113: 4-8; cf. também Is 44: 9ss.

(6) Act. 14: 15 ; 17:24 .

(7) Escusado seria dizer (mas nunca se sabe) que o não atribuir valor absoluto à liberdade de opção não significa não lhe reconhecer o seu valor. Não sendo a única referência, esta liberdade é um dado necessário, incontornável.

(8) Cfr. Mt 5:28; Mc 7:18ss.

(9) Entre muitos outros exemplos possíveis, recomenda-se Eric Fuchs, Le Désir et la Tendresse , Labor et Fides, Genève, 1982, pp.

(10) Mt 11:29; Ef 5:1; Fil 2:5; 1Pe 2:21, etc.

(11) Gen 1:31.

(12) Apoc 21:5.

(13) 1Co 6:12 -20.

(14) Cfr. Gal 5:13 ; 1Pe 2:16 ; Judas 4.

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