CADERNOS DO ISTA, 16
O Enigma da Sexualidade

NOTAS PARA UMA
ÉTICA SEXUAL

Mateus Cardoso Peres

 
Uma moral sexual cristã, parte do problema

Os cristãos são, com efeito, muitas vezes, vistos negativamente como o último reduto a oferecer resistência, criticando a permissividade ambiente aos avanços da libertação; para outros, eles constituem positivamente a última esperança para um mundo tornado louco. Cabe aqui perguntar por que razão os cristãos, e nomeadamente os católicos, são tidos por mais intransigentes, mais reaccionários, que todos os outros. Note-se, no entanto, que a atitude de se situar a contracorrente, de não abdicar das suas convicções em favor da moda, particularmente se baseada na percepção de que a posição adversa é, em última análise, errada e até desumana, uma tal atitude está indiscutivelmente certa. A questão não é minimamente uma questão de intransigência ou cedência, mas de verdade, tanto antropológica como ética.

Estarão as posições conotadas com os cristãos definitivamente ultrapassadas? E eles próprios isolados, por coerência com a fé, num mundo que pensa, sente e vive de outro modo? Mais profundamente, a mensagem cristã e o seu impacto sobre este enigma da sexualidade está suficientemente explorada e expressa?

Começo, para tentar clarificar, por recusar a identificação - quase sempre implícita, é certo, mas mais generalizada do que à primeira vista poderia parecer - da moral “vitoriana” com a moral católica. Primeiro, há que reconhecer, nos vários períodos da história da doutrina católica (apostólica, patrística, medieval, casuística), variações significativas na abordagem e na argumentação, a ponto de dificilmente se poder falar de um único tratamento destas questões, em Igreja: há sem dúvida constantes muito firmes, mas também diferenças, como disse, sobretudo em termos de método. Depois, penso que poderiam ser apontadas divergências de peso, apesar de aproximações evidentes, entre a atitude perante a sexualidade que por comodidade se tem referido como a moral “vitoriana” e as posições dominantes da Igreja Católica para o mesmo período: diferenças de enquadramento, uma visão mais racionalizada, menos instintiva, por parte da Igreja, são alguns dos aspectos por detrás da recusa de identificação.

Resumindo, diria que não me parece que a única possibilidade oferecida hoje aos cristãos, neste campo, seja a de tentar ingloriamente defender posições que deixaram de ser consensuais, se é que alguma vez o foram, e.g., as posições de mera repressão e censura, quando não de condenação. Em nome da sua própria tradição, mais rica, apesar de tudo, do que a querem fazer parecer, compete-lhes rever posições e argumentos e esboçar alternativas, sem ceder a modas, obviamente, mas em espírito de diálogo com o mundo. É o que vamos tentar fazer nas páginas que se seguem.

Impõe-se, à partida, esboçar a crítica da moral sexual que as presentes gerações de cristãos receberam principalmente da casuística. Refiro-me, para lá das enormes diferenças das escolas e dos sistemas, ao notável esforço colectivo dos tratadistas, que, com base nas opções e no ensinamento dos Padres da Igreja e dos grandes autores medievais, elaboraram, de forma muito redutora, a partir do Concílio de Trento, a moral católica, esforço cujos resultados dominaram durante quatro séculos, do século XVI ao século XX, a vida dos membros da Igreja e tanto contribuíram para a imagem que os não-católicos têm da Igreja. Disse “de forma muito redutora” porque, visando sobretudo a necessária preparação dos ministros do sacramento da penitência, nas perspectivas tridentinas, i.e., como afirmação do poder eclesial de julgar, acaba por reduzir tudo ao pecado, infracção dos mandamentos, tal como se deve confessar; em verdade, não se trata da vida cristã como deve ser vivida, mas do pecado a evitar. Neste aspecto, o Concílio Vaticano II, apesar de algumas aberturas, não conseguiu mudar o quadro.

Sublinhando a enorme originalidade da posição tradicional em matéria de prazer e sexualidade, J.-M. Pohier, em síntese lapidar, escreve: “A Igreja católica só admite o prazer sexual num caso particular: o dos esposos legítima e indissoluvelmente unidos, num coito pénis-vagina do qual se não devem eliminar as possibilidades de fecundação. Por um lado, proíbem-se todas as outras actividades susceptíveis de levar ao prazer sexual, e não existe nenhuma outra religião, cultura ou moral, que tenha limitado tão estritamente as condições da legitimidade do prazer sexual. Por outro, neste único caso em que é permitido, ele é precisamente apenas ‘permitido'. Durante mais de quinze séculos, o cristianismo pensou que, mesmo no caso em que era permitido, este prazer não estava livre de todo o pecado, e que, de todos os modos, não podia ser justificado senão por outra coisa: se um objectivo de outra ordem (por exemplo, um dos três ‘bens' do casamento) não viesse legitimar o seu exercício, não poderia ser prosseguido como um fim, mesmo se as condições requeridas para a sua legitimidade fossem respeitadas”(1).

Convém reconhecer que esta ética cristã, embora tradicional, ou melhor, presente desde os primeiros séculos no espaço cristão sem contestação significativa, não é de inspiração cristã, não nasce das coordenadas básicas da revelação neotestamentária. Começa por ser acolhida pelos cristãos em tempo dos Padres da Igreja - a contribuição de Clemente de Alexandria parece ter sido decisiva - , do ambiente cultural em que viviam, que era o seu, onde a influência do estoicismo era preponderante, e é posteriormente elaborada, sempre em dependência da antropologia e da moral do estoicismo.

O quadro de referência estóico traduziu-se numa certa visão negativa das paixões, encaradas como doenças da alma, e, portanto, numa visão depreciativa, para não dizer amedrontada, do prazer. Impôs, sobretudo, uma concepção da moral em termos de conformidade à natureza humana, que ainda hoje parece a muitos perfeitamente indiscutível. Curiosamente, nestas questões, a natureza humana é considerada predominantemente de forma genérica, isto é, naquilo que tem em comum com os animais. Segundo Ulpiano, o célebre jurista romano de inspiração estóica, o normativo é “…o que a natureza ensina a todos os animais…daí decorre a união do homem e da mulher, a procriação, a educação” . Esta perspectiva ética da normatividade da natureza aliada à visão da sexualidade em termos genéricos, comuns a todo o mundo animal, e excluindo, portanto, ou pelo menos não considerando, o específico humano, chega aos nossos dias (2).

Da leitura redutora, ignorando praticamente a originalidade da espécie humana, decorre, por dedução, na maneira típica do jusnaturalismo, toda uma moral sexual, a que foi acima referida e que se considera como típica do catolicismo, aos olhos de todos. A sexualidade ao serviço da transmissão da vida, a exaltação da virgindade e da continência, o casamento “desculpado” pelos seus fins, embora, neste aspecto, se deva reconhecer uma evolução nos textos do magistério, sobretudo a partir da Gaudium et Spes e da Humanae Vitae , no sentido de uma mais franca aceitação da dimensão unitiva da sexualidade.

Parece-me de referir ainda algumas consequências práticas desta visão das coisas. Da manifesta dificuldade em lidar com o prazer, com o corpo, em assumir a sexualidade, decorre a ideia, errada sem dúvida, mas nem por isso menos frequente, de uma identificação entre pecado e sexualidade. Há seguramente pecados em muitos outros campos do agir: que se pense na desumanidade da luta e da concorrência sociais, no recurso à calúnia, na violência, nos processos de autodestruição pela droga e pelo álcool; da mesma forma também parece abusiva, apesar de tudo, uma identificação formal de todo o sexual com pecado. Além disso, da afirmação tradicional (e em si mesma compreensível, embora nada evidente, e portanto discutível) de que, neste campo da sexualidade, toda a matéria é grave, passa-se para outra, essa claramente errada, de que qualquer pecado sexual é necessariamente pecado grave. Como se as dimensões subjectivas do acto, a clareza da consciência, a determinação da vontade, não devessem contribuir para a classificação moral do acto, atenuando ou até eliminando a sua gravidade.

Será possível outra abordagem, outra leitura? Faz esta parte dos dados da fé cristã ou dela decorre, sem possibilidades de alternativa ou correcção? Poderão os cristãos, em matéria de tanto significado para a existência de todos e tão central na cultura do mundo dos nossos tempos, tentar elaborar, sempre na fidelidade à mensagem revelada, um outro discurso, simultaneamente mais verdadeiro e mais dialogante? Arrisco-me, depois de tantos outros, a delinear, nas considerações seguintes, o esboço do que poderia ser essa outra abordagem.

 

(1) J.-M. Pohier, Le Chrétien le Plaisir et la Sexualité , ed. du Cerf, Paris, 1974, p. 17ss.

(2) Retirada do seu contexto e por isso endurecida, não deixa de ser significativa a afirmação seguinte: “O processo sexual é universal e idêntico no homem, nos vertebrados, nos invertebrados, nas plantas. E a sua consequência natural – a morte somática - é também universal”. Cfr. Daniel Serrão, in "Antropologia da sexualidade humana", na obra colectiva Sexualidade Humana. Onze reflexões , ed. da Associação dos Médicos Católicos Portugueses. Porto 1987, p. 9.

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