CADERNOS DO ISTA, 16
O Enigma da Sexualidade

NOTAS PARA UMA
ÉTICA SEXUAL

Mateus Cardoso Peres

A sexualidade, um enigma, um desafio

As considerações que se seguem não são mais do que uma simples achega, uma abordagem sem pretensões desta tão complexa questão, inevitavelmente onerada por tantos preconceitos culturais e ideológicos, se não mesmo por inconfessados interesses pessoais. Fixando-me no primeiro aspecto, o da complexidade, diria ainda que me assumo como ignorante, neste domínio; não ignorando absolutamente tudo, como é óbvio, sei sobretudo que não sei, e suspeito que quem julga saber também não sabe. Além disso, tenho como provável que, no estado actual das coisas, não há certezas, e muito menos certezas absolutas, em questão de sexualidade.

O ponto de partida parece-me evidentemente a interrogação: a sexualidade, o que é? Num dos seus textos menores, mas nem por isso menos belo, Paul Ricoeur aborda a sexualidade humana como enigma, exactamente como o nosso programa (1). De facto, utiliza as três chaves da maravilha, da errância e do enigma, mas é sobretudo neste último aspecto que, com ele, queremos fixar a atenção: até porque, em parte, resulta da problemática coexistência dos dois primeiros. Diz, pois, Ricoeur: “quando dois seres se abraçam, não sabem o que fazem; não sabem o que querem; não sabem o que procuram; não sabem o que encontram. Que significa o desejo que os atrai um para o outro? É o desejo do prazer? Sim, sem dúvida. Mas, pobre resposta; porque ao mesmo tempo pressentimos que o próprio prazer não tem o seu significado em si mesmo: que é figurativo . Mas de quê? Temos consciência viva e obscura de que o sexo participa de uma rede de potências cujas harmonias cósmicas estão esquecidas mas não abolidas; que a vida é bem mais do que a vida; quero dizer que a vida é bem mais do que a luta contra a morte, do que o atrasar do desenlace fatal; que a vida é única, universal, toda em todos e que é neste mistério que a alegria sexual faz participar…”. Para concluir a sua introdução a este número especial da revista Esprit , o autor afirma ainda que “o enigma da sexualidade é que ela permanece irredutível à trilogia que faz o homem: linguagem (2) -utensílio-instituição”. A linguagem não a consegue traduzir, não se deixa reduzir ao instrumental, nem enquadrar no institucional.

A sexualidade é e continua ser um enigma. Não que não se tenha tentado, de muitas formas, maneiras, por muitos conhecimentos e ciências (antropologia cultural, psicanálise, psicologia, biologia, etc.) desvendá-lo, ou pelo menos, situá-lo.

Segundo Rousseau e tantos outros, a sociedade nasce de um pacto que integra a repressão do instinto (“…a voz do dever que sucede ao impulso físico”). “Toda a civilização se ergue sobre o constrangimento e a renúncia aos instintos”, segundo Freud, que vai falar de uma “hostilidade inevitável entre amor e civilização”.

Quer se aceite quer não este esquema da “hostilidade inevitável”, há que reconhecer o facto de uma determinação recíproca, ou pelo menos, de a vivência do amor condicionar todas as culturas, e de que em todas as sociedades, sem excepção conhecida, se tenha positivamente tentado regulamentar a sexualidade. Com efeito, pode dar-se por adquirido que em toda a sociedade, reconhecida como humana, se encontram, embora de formas múltiplas, definições valorativas, em matéria de sexualidade. Os antropólogos salientam, através da diversidade dos dados e das abordagens, certas constantes como a proibição do incesto, o reconhecimento institucional do casamento; de forma mais genérica, fala-se de práticas educativas, existentes em todos os grupos humanos, embora sob formas infinitamente variáveis, em ordem a modelar os comportamentos sexuais (3).

Reconhecer a sexualidade como enigma não desarma, antes corrobora o desafio que sempre representou para a ética. A abordagem ética, o tratamento ético, aparece-nos assim como a tentativa de lhe dar um sentido; exactamente porque à pergunta “que significado tem?” não se encontra uma resposta cabal e satisfatória – por isso permanece como enigma - responde-se, sob a pressão da necessidade social de regular e proibir, dando-lhe um sentido, isto é, elaborando e propondo um tratamento ético.

Vê-se aqui uma das características fundamentais do fenómeno humano: os seres humanos, na sua indeterminação radical, na sua carência de claras e seguras indicações do instinto, por não se acharem “programados”, em contraste com o que nos revela o mundo animal, são compelidos, na sua imperativa busca de realização, de plenitude, a fazerem-se a si mesmos, por si mesmos. Daí a elaboração colectiva, socio-cultural, de propostas em torno da autêntica realização e dos seus caminhos e processos, numa palavra, a ética, sempre presente, sempre diferente. Tudo isto necessita sem dúvida de ser matizado, mas, no fundo, parece ser verdadeiro.

No fundo, é como se se tivesse decidido: “a sexualidade será o que nós quisermos que ela seja”, evidentemente em função das nossas concepções e dos nossos ideais de pessoa, de relação, de amor, de corpo, de prazer, de vida e da sua transmissão, etc., mas também respeitando o que ela, a sexualidade humana, for, na sua espessura, na sua originalidade. Não será a ética sempre o resultado mais ou menos conseguido da encarnação de um ideal humano, melhor, humanista, com um aspecto da realidade humana, social, na convergência do plano do ser, visto à luz da função “utópica”. Na tradição filosófico-teológica ocidental, contudo, tem-se estado muito mais atento a esta segunda coordenada do que à primeira: habituámo-nos a “deduzir” o dever-ser do ser, o que também cria dificuldades, porque, se não se domina o ser, se os dados científicos são parcos ou mesmo errados, como o foram durante tanto tempo da história da cultura ocidental, se não se sabe, como vai ser?

Tudo isto constituiu sempre, de facto, um grande desafio para os cristãos, embora muitas vezes ingenuamente ignorado. Mas hoje há mais: muita gente, mesmo não-cristã, faz, com alguma razão, uma leitura acentuadamente negativa e ansiosa do que “vai por aí”. Estamos em época de profundas transformações (4), particularmente neste campo, de que resultam profundas perturbações e perplexidades, já para não falar de sofrimentos. No fundo, neste domínio, houve sempre uma certa margem de insegurança e turbulência, mas, além disso, neste tempo cultural, neste tempo ideológico, deu-se – dizem muitos - a passagem de uma sociedade altamente repressiva, condenatória, para a permissividade sem restrições. Passámos, e em pouco tempo, da “moral vitoriana” para a “libertação sexual”. Como pêndulo que se solta de um extremo e vai até ao extremo oposto, as sociedades ocidentais teriam passado de um exagero repressivo a um outro, libertário.

Será isto inteiramente verdade? Há seguramente algo de verdade nisso. Há também, talvez, algo de exagero. Na verdade, sempre se conheceram desvarios, loucuras, crimes, mas, hoje, são muito publicitados, quando dantes eram abafados e escondidos; e, além disso, não são condenados, como se os critérios tivessem perdido a validade, como se os valores tivessem desaparecido. Reclama-se por isso, e com frequência, pelo menos em certos meios, a instauração de valores e de critérios morais. De todos os modos, esta situação problemática tem também o condão de revelar e acentuar o afastamento, para não dizer a incomunicabilidade, entre Igreja e Mundo. A Igreja é vista como divorciada das pessoas e das suas vidas reais, como o espaço da incompreensão e da rigidez, como irremediavelmente reaccionária face a um mundo que redescobre o sexo como um valor em si e tem tendência para recuperar algo do tratamento pagão clássico, divinizando-o.

No fundo, poderia dizer-se que ambas as atitudes parecem superficiais, meramente estéticas. Passa-se da apreciação do sexo como mau, entenda-se, abjecto, vil, indigno, “feio”, para uma outra apreciação toda positiva, como inevitável, necessário, belo, etc. Passa-se do não gostar para o gostar. E se a primeira posição tem o seu quê de hipocrisia, a segunda não escapa à acusação de ingenuidade.

 

(1) Cf. "La merveille, l'errance, l'énigme", in ESPRIT Nouvelle Série, 289 (Novembre 1960), pp.1674-1676.

(2) «…ela é Eros e não Logos. Por isso a sua restituição integral no elemento do Logos permanece radicalmente impossível». ibid., p. 1675.

(3) Cf. "Sexualité humaine", Enc. Universalis , v. 14, pp 920 s.v.

(4) Cf. GS 4,§2º e 5.

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