CADERNOS DO ISTA, 16
O Enigma da Sexualidade
 

A SEXUALIDADE
NOS PADRES DA IGREJA
José Manuel Fernandes

 

Num tema tão vasto e díspar como o nosso – a sexualidade nos Padres da Igreja – as afirmações dever-se-ão fazer com prudência, cientes de que nos movemos em terreno, não só complexo, mas na maioria das vezes enigmático. Enigmático porque nos falta a ampla compreensão do ambiente cultural em que os autores eclesiásticos viveram.

Os juízos de valor que o cristianismo antigo teceu sobre a sexualidade humana, tanto no que respeita à sua origem, como no seu significado, acarretaram numerosas tensões que na maior parte das vezes desembocaram em dramáticos conflitos. As razões para estes acesos debates encontram-se nas concepções eclesiológicas e espirituais, assim como teológicas e de cariz antropológico.

Nas fontes cristãs antigas que possuímos, grosso modo , podemos encontrar tanto adeptos de um comportamento rigorosamente ascético de tipo encratita, como partidários de comportamentos mais tolerantes.

Nos finais do século I encontramos em alguns evangelhos apócrifos (Evangelho dos Egípcios, Evangelho copta de Tomé ), assim como noutros apócrifos relacionados com os Apóstolos (Pedro, Paulo, André, João e Tomé), interpretações encratitas sobre a sexualidade humana. O testemunho neotestamentário alerta-nos para este facto.

«O Espírito diz abertamente que, nos últimos tempos, alguns hão-de apostatar da fé, dando ouvidos a espíritos enganadores e a doutrinas diabólicas, seduzidos pela hipocrisia de mentirosos, cuja consciência foi marcada com ferro em brasa. Proibirão o casamento e o uso de alimentos, que Deus criou para serem consumidos em acção de graças, pelos que têm fé e conhecem a verdade. Pois tudo o que Deus criou é bom e nada deve ser rejeitado, quando tomado com acção de graças. Com efeito, tudo é santificado pela palavra de Deus e pela oração.» (1Tim 4,1-5).

No século II os montanistas defenderão a dissolução dos vínculos conjugais na expectativa da iminente destruição do mundo. Não esqueçamos que será dentro deste movimento, mesmo se já numa segunda geração, que Tertuliano fundamentará ainda mais o seu rigorismo sexual, assim como a condenação das segundas núpcias (1).

A compreensão da história da salvação, subjacente a estas posições, enuncia-se da seguinte forma: para os encratitas, Deus criou o homem e a mulher, proibindo-lhes de tocar a árvore do conhecimento do bem e do mal. No momento em que os nossos primeiros pais transgrediram este mandamento, uniram-se sexualmente e deram início a uma sucessão ininterrupta de pecado, concupiscência, nascimentos e mortes.

A revelação de Jesus Cristo consistiria em oferecer aos crentes os meios necessários (o baptismo) para quebrar a cadeia da geração corrupta e inaugurar uma humanidade nova, humanidade que se pautaria pela própria vida do Senhor Jesus, casto e pobre. O ideal que se configura é o do monakhós. Traduziríamos por monges (2), mas outras significações são possíveis: simples, solitários, unificados e eleitos (3). Não deixa de ser curioso o facto de esta palavra aparecer pela primeira vez no Evangelho de Tomé no lógion 16 (4), escrito que como sabemos é de natureza gnóstica. Que outro desejo poderia almejar o gnóstico do que o de se unir ao Todo? Numa vida marcada pela duplicidade a unificação é o único remédio para o combate da dispersão, é a única garantia para a entrada no Reino (5).

«Jesus disse: Felizes de vós, os unificados eleitos, porque encontrareis o Reino. Pois foi dele que viestes e a ele regressareis de novo» (6).

O monakhós é o homem solteiro e solitário, discípulo e imitador do Senhor, a quem é garantida a entrada no Reino e que deste modo já participa da vida angélica. É neste contexto que se desenvolve o pensamento de que o nascimento do homem é pecaminoso, de que o recém-nascido está marcado pelo pecado da origem e só o baptismo se assegura como remédio e início de vida nova.

Este complexo de crenças, para as quais o sexo com o seu uso, mesmo dentro do matrimónio, deve ser sempre e em todos os casos considerado negativamente, originou formas de vida solitária. Algumas marcadas por atitudes desconcertantes como a castração (Justino, Apol. I, 29,2), outras por experiências de convivência ascética como as agapetas , isto é, virgens que coabitam com um asceta ou um clérigo solteiro. Não é difícil adivinhar que esta experiência ascética foi condenada pelos Padres da Igreja.

«Tenho vergonha de o repetir – ó sacrilégio! É profundamente triste mas é inteiramente verdade! – como a peste das agapetas se introduziu nas Igrejas? Donde veio esta nova categoria de esposas sem que antecipadamente tenha havido casamento? Donde veio esta nova categoria de concubinato? Acrescentarei ainda mais: donde saíram essas cortesãs que se entregaram a um só homem, vivendo debaixo do mesmo tecto, partilhando o mesmo quarto e o mesmo leito, e que nos tratam de mal intencionados, se manifestamos as nossas suspeitas?» (Jerónimo, Epístola XXII, 14)

A oposição ao encratismo encontrou fortes adeptos. Clemente Alexandrino que dedica todo o livro III dos Stromata à refutação das doutrinas encratitas e gnósticas, considera santo o matrimónio, tanto ou mais do que a continência e justifica a sua razão de ser na continuação da espécie e conservação do mundo. Não passa desapercebida a identificação imprópria que Clemente faz – assim como outros Padres – entre os encratitas e os gnósticos. Este facto não impediu, porém, que algumas ideias de sabor encratita acabassem por encontrar lugar dentro da ortodoxia. Por exemplo, a ideia de que a perfeição religiosa consiste na virgindade à imitação de Cristo ou mesmo a doutrina do pecado original.

Será no século IV que o debate sobre a sexualidade regressará com maior vigor dentro das comunidades cristãs. As metamorfoses pelas quais passará a Igreja deste período caracterizar-se-ão pelo forte desenvolvimento monástico. O vigor das doutrinas encratitas e do ethos ascético resistirá às pressões eclesiásticas. A espiritualidade encratita, baseada no princípio de que o verdadeiro cristão é aquele que reza num estado de perpétua continência, para estar sempre unido a Deus, encontrará defensores que condicionarão a teologia e a espiritualidade monástica ortodoxa. Pensemos no priscilianismo hispânico.

Na outra margem da história deparamos com grupos recém-convertidos ao cristianismo que pugnarão contra o valor cristão da virgindade para justificar uma concepção aristocrática da vida sexual e conjugal profundamente ligada a valores da tradição pagã.

Entre estes conflitos, ásperos com frequência, os Padres da Igreja tentam a difícil via de uma mediação que quer ao mesmo tempo condenar energicamente os excessos encratitas e maniqueus, se necessário até com o auxílio de legislação imperial, e salvaguardar o supremo ideal cristão da virgindade, sem com isto dever expressar um julgamento de reprovação às núpcias e à procriação. Esta situação motivou uma vasta literatura sobre a virgindade. A esta imensa tarefa consagraram-se os maiores vultos cristãos tanto da patrística grega como da latina. Porém, com uma significativa diferença. Enquanto que no oriente a especulação teológica sobre a sexualidade move-se principalmente na direcção de uma polémica contra os extremismos ascéticos, no ocidente esta especulação defenderá a virgindade cristã contra aqueles que lhe são opositores.

 
 

(1) Veja-se Sebastián Fuster PERELLÓ, Milenarismos. El Cristianismo en la encrucijada del Año 2000 , Edibesa: Madrid 1997, 24-42.

(2) O termo grego monax ó j só a partir do século IV é que ganhou o sentido que hoje atribuímos à palavra monge.

(3) Para justificarmos esta posição veja-se o que Henri-Charles PUECH apresenta sobre esta palavra no seu comentário ao Evangelho de Tomé: «Un monakhos, c'est-à-dire, ainsi que l'atteste notamment le logion 49, un « Élu », un « Vivant », mais, plus précisément, et comme permet de l'établir en rigueur l'étude des termes sémitiques iah?id (en hébreu), ih?idaya (en syriaque), dont monakhos est, en grec et en copte, la traduction ou la transposition : un « isolé », un « solitaire » ; aussi bien, quelqu'un qui se conduit toujours de façon unie, identique (monotropos, en grec) ; un « ascète », un « continent », un « célibataire », qui a renoncé à tout commerce sexuel, est « mort à la chair » ; un homme « simple », intérieurement « simplifié », parvenu à la haplotês, à la « simplicité » du cœur et du regard ; au bout du compte, et à l'extrême, celui qui a rétabli en soi l'unité, réalisé l'unification intérieure, est devenu ou redevenu « un », « l'Unifié », si l'ont veut, ou, approximativement, «l'Un », « l'Unique », En quête de la Gnose II. Sur l'Évangile selon Thomas , Gallimard: Paris 1978, 283s.

(4) «Jesus disse: Sem dúvida, os homens pensam que vim lançar paz sobre o mundo, e não sabem que vim lançar divisões sobre a terra, fogo, espada, guerra. Porque haverá cinco numa casa e três estarão contra dois, e dois contra três, o pai contra o filho, o filho contra o pai, e manter-se-ão de pé, sendo unificados», Lógion 16. A tradução portuguesa, revista por José Augusto Martins Ramos, é-nos oferecida em: O Evangelho segundo Tomé , Estampa: Lisboa 2 2001.

(5) Cf. Ramón Trevijano ETCHEVERRÍA, Estudios sobre el Evangelio de Tomás, Ciudad Nueva: Madrid 1997, 246-248.

(6) Evangelho de Tomé , log. 49.

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