CADERNOS DO ISTA, Nº 9
A UTOPIA DA PAZ NA BÍBLIA (fim)
JOSÉ ORNELAS CARVALHO
2 A TRADIÇÃO BÍBLICA CRISTÃ

Constatação prévia

O NT não tem uma doutrina desenvolvida sobre a paz, como a entendemos hoje, no sentido de solução pacífica dos problemas entre as nações, de modo a evitar a guerra. A tradição bíblica cristã tem muito a dizer sobre o relacionamento entre povos e nações e sobre a construção de um harmónico relacionamento dos homens em toda a terra, mas não desenvolveu, à partida, uma estratégia virada para as "relações internacionais".

A razão de ser deste facto não é idêntica ao que encontrámos na tradição de Israel, em que os horizontes se fechavam, de um modo geral, ao âmbito do próprio povo. Aqui a perspectiva é, como veremos, a da pessoa, do ser humano, independentemente da sua origem, do seu povo ou língua. Precisamente devido a esse facto, os escritos do NT não traçam uma estratégia de relacionamento entre estados ou grupos de pressão, mas começam por interessar-se pela pessoa. Penso que este ponto de vista é importante para entender o NT, não apenas sob o tema da paz, mas sobre qualquer outro tema. Isto não significa, de modo nenhum, que a mensagem de Jesus de Nazaré seja apenas de âmbito individual. Nada mais falso! O que significa é que toda a sociedade é vista na perspectiva da pessoa e esta como relacionada com os seus semelhantes, o mundo e Deus.

O ambiente político-social do início da era cristã torna este facto mais compreensível. O império romano, apesar de todos os defeitos, conseguira forjar uma realidade política jamais conseguida até então e que, em muitos aspectos, ainda não foi superada: a unificação da maior parte do mundo conhecido de então, sob o poder de Roma, cujo domínio foi possível, não tanto pela força das legiões, mas sobretudo pelo seu direito, que concedia aos súbditos, não apenas a submissão, mas também a dignidade e a todas as pessoas a livre circulação (mesmo hoje, em termos de livre circulação, ainda não atingimos, na Europa e na bacia mediterrânica, as dimensões territoriais do império romano!).

Sem ignorar os problemas políticos que gerava o domínio imperial, não há dúvida que o espírito universal do NT — que se expandiu fundamentalmente a partir das cidades romanas — se insere muito bem no ambiente diversificado, ecléctico e universalista do império, herdeiro da civilização helenista.

Para entender o que o NT nos diz sobre a paz, tomaremos vários quadros, sem a preocupação de construir um pensamento muito articulado entre eles, mas procurando sublinhar os elementos fundamentais que cada um deles nos oferece para a construção da paz.

2.1 Glória a Deus e paz na terra

O primeiro quadro provém de Lucas, o evangelista que mais utiliza o termo eirênê - paz (4). Nas narrações da infância, o conceito de paz assume mesmo uma importância decisiva, como expressão concreta da realização das promessas feitas por Deus a Israel. Aquando do nascimento de Jesus, a proclamação dos anjos anuncia aos pastores o evento fundamental da história, em termos de instauração da paz:

Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens que ele ama (Lc 2,14).

O significado desta proclamação ressalta da solenidade do momento e dos dois elementos fundamentais que o constituem: a glória de Deus e a paz aos homens.

O anjo acabara de dar aos pastores o sinal da grande nova que viera trazer-lhes: encontrareis um bebé envolto em faixas e deitada em manjedoura (Lc 2,12). O evento decisivo da salvação não se apresenta com o triunfalismo dos grandes da terra, mas no aspecto pacífico e promissor de um recém-nascido. No entanto, este menino é sinal do cumprimento das profecias, mais do que uma vez feitas no passado, que anunciavam, o nascimento de um menino, como sinal da acção salvadora de Deus em favor do seu povo. Os destinatários da mensagem assumem também uma importância significativa: não é aos grandes estrategos políticos, mas à gente humilde e desprotegida do povo que se manifesta a grande novidade. Mais do que uma escolha de campo, em termos de classe social, este anúncio aos mais pequenos revela, aliado à figura do menino, que a salvação agora oferecida não é apanágio dos grandes, que sempre se apoderam dos melhores bens da humanidade. A partir de agora, os bens messiânicos prometidos estarão acessíveis a todos, desde os mais pequenos aos maiores.

Em contraste com a pequenez dos pastores, o coro dos anjos representa a universalidade cósmica do anúncio. Não é apenas aos pequenos e grandes de Israel, mas a todo o universo que o nascimento de Jesus diz respeito. Além disso, os anjos representam o mundo de Deus, que se torna presente entre os homens. No sinal pacífico e aparentemente impotente do menino revela-se a totalidade do poder salvador de Deus que os anjos anunciam.

A proclamação dos anjos começa por interpretar o nascimento de Jesus como glória de Deus. Para nós, o conceito de glória tem uma conotação de exterioridade e até de uma certa falta de consistência, que não se encontra na ideia bíblica de glória. O próprio termo hebraico para traduzir glória (kabôd) pertence à família do adjectivo pesado (kabêd), que alude à importância de uma pessoa, àquilo que ela é. Aplicado a Deus, o conceito de glória está ligado, com frequência, no AT, a manifestações externas de grandeza e de poder, como as nuvens, o fumo, o tremor de terra, que manifestam, por assim dizer, a comoção cósmica perante a manifestação de Deus, o soberano e criador do universo. Esta ideia de glória como expressão do ser de Deus mantém-se no NT, mas as manifestações são muito diferentes. S. João, por exemplo, vê na hora da crucifixão e morte de Jesus na cruz, a hora da glorificação de Jesus e do Pai. Não se trata de um eufemismo para abafar a tragicidade do momento, mas da mais clara afirmação daquilo que Deus é: amor capaz de dar a vida.

A esta luz se entende o sentido da proclamação dos anjos. O nascimento deste menino é a manifestação da glória (do ser) de Deus, pois nele se cumprem as promessas de salvação e, além disso, essa salvação não se manifesta através do poder e da magnificência, que a restringiria aos grandes e poderosos, mas revela-se a partir dos mais pequenos, porque se encontra acessível a todos, sem discriminação.

A razão de ser de todo este processo encontra-se nos últimos elementos do anúncio: os homens a quem ele quer bem. É particularmente Lucas que, entre todos os evangelistas, põe em especial relevo a dimensão universal da salvação. A paz proclamada pelos anjos aos pastores de Belém, não ignora a função especial de Israel na história da salvação — ela realiza-se em cumprimento das profecias feitas aos filhos de Abraão e começa por ter lugar entre eles — mas estende-se a toda a humanidade, ultrapassando o conceito limitado de paz, que encontrávamos no AT. Deus continua a considerar Israel como seu povo eleito, mas isso não significa qualquer discriminação em relação aos outros povos, pois a todos eles se estendem as promessas feitas a Israel. A glória de Deus manifesta-se, pois, numa dupla universalidade do seu amor: a pequenez do menino revelado aos humildes, sem exclusão de ninguém, e a abrangência universal, que inclui todos os povos da terra.

Mas a glória-amor de Deus não é algo que apenas a ele diz respeito. No anúncio dos anjos, a paz na terra encontra-se ligada aos homens. À luz dos texto da tradição de Israel que acabámos de analisar, é evidente que aquilo que Lucas entende por paz vai muito além da ausência de guerra, abrangendo a plenitude dos bens messiânicos prometidos e agora revelados de uma forma insuspeitadamente superior. Se o conceito bíblico de paz representa, como vimos, a abundância, não apenas dos bens necessários à felicidade humana, mas a própria realização plena da pessoa e da sociedade, o nascimento do menino representa verdadeiramente o cumprimento de todas as promessas, pois é através dele, que o ser humano, frágil na sua natureza, pode ultrapassar as barreiras da própria limitação, acedendo à totalidade da vida que lhe é comunicada por Deus. Na perspectiva de Lucas, com Jesus, o homem novo, nasce uma nova humanidade, que responde à sede de vida e de harmonia dos homens de todos os tempos. Ele é a plenitude da paz, porque oferece a possibilidade de uma felicidade e de uma harmonia, que ultrapassam as barreiras dos povos, das culturas e da própria morte.

Por toda a cena perpassa a noção elementar de paz, como superação de barreiras e expressão de comunhão: os anjos e os pastores exprimem a nova proximidade entre o mundo de Deus e o dos homens, que permite a renovação da humanidade, expressa no nascimento do menino; enquanto que a paz entre os homens alude à possibilidade de uma nova fraternidade, que ultrapassa as divisões de raça e de cultura, a que já aludimos.

Assim, o anúncio dos anjos, exprime, em termos de paz, a plenitude dos bens oferecidos por Deus aos homens, com a vinda de Jesus, introduzindo neste mundo um novo dinamismo, capaz de saciar a sede de vida, de felicidade e de harmonia do homem. A glória de Deus revela-se na paz do homem, isto é, na sua felicidade plena.

Nas narrações da infância do evangelho de Lucas, dois outros passos significativos, incluídos em dois hinos, que celebram a realização das promessas e a presença da salvação, permitem entender esta proclamação cósmica da paz. O primeiro encontra-se no hino de Zacarias, o pai de João Baptista:

...graças à entranhada misericórdia de nosso Deus, pela qual nos visitará o sol nascente das alturas, para iluminar os que jazem nas trevas e na sombra da morte, e dirigir os nossos pés pelo caminho da paz (Lc 1,78s).

A paz é consequência da misericórdia de Deus, mas é um caminho humano: Deus conduz o homem pelos caminhos da plenitude da paz, isto é, da realização plena do projecto humano (salvação), em contraposição com as trevas e a morte em que ele se encontra.

O segundo texto é também a exclamação de louvor de Simeão, um ancião, homem justo, que esperava a consolação de Israel, que toma o menino nos braços e louva a Deus, por ter podido ver realizada a sua esperança:

Agora, Senhor, podes deixar ir em paz o teu servo, segundo a tua palavra, porque os meus olhos viram a tua salvação, que preparaste diante de todos os povos: luz para se revelar aos povos e glória do teu povo Israel (Lc 2,29-32).

Simeão representa todos aqueles que esperavam a "consolação de Israel". O seu louvor começa por uma exclamação de felicidade realizada. Chegado ao fim dos seus dias, amadurecido na esperança de ver realizar-se a promessa e tendo-a finalmente constatado, o ancião considera-se saciado e exprime essa felicidade e saciedade pela palavra paz: podes deixar ir em paz o teu servo! Com a chegada do dom de Deus em Jesus, Simeão vê completar-se o sentido da sua vida; pode deixar este mundo como um homem feliz.

Também neste hino se encontram presentes os temas caros a Lucas: a universalidade da salvação, destinada a todos os povos e a glória de Israel, agora manifesta. Do mesmo modo que a glória de Deus exprime aquilo que ele é, assim a chegada dos bens messiânicos e a sua extensão a todos os povos constitui a glória de Israel, isto é, revela aquilo que ele é: um povo escolhido por Deus e objecto do seu amor fiel, que deve levar a salvação aos outros povos. Este é, segundo Lucas o destino de Israel e a sua glória.

O significado desta paz, como plenitude dos bens messiânicos prometidos, é expresso, de forma programática, por Lucas, na cena da sinagoga de Nazaré, com recurso a uma passagem do profeta Isaías, colocada na boca de Jesus:

O Espírito do Senhor está sobre mim, pois me ungiu para levar a Boa Nova aos pobres. Enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e dar vista aos cegos, a pôr em liberdade os oprimidos, e a proclamar um ano agradável ao Senhor (Lc 4,18s).

A plenitude dos bens messiânicos passa pela salvação integral da pessoa e manifesta-se na palavra e nos gestos de Jesus. Por duas vezes, Lucas associa expressamente a acção libertadora de Jesus à transmissão da paz: à mulher pecadora, que lhe lava os pés com as próprias lágrimas e àquela que sofria de um fluxo de sangue, havia doze anos, ele declara: Vai em paz, a tua fé te salvou (Lc 7,50; 8,48). Para estas mulheres, o contacto com Jesus significou paz, como regeneração total do seu ser, a começar pelo restabelecimento da saúde e pelo dom do perdão que desaliena e restabelece a dignidade da pessoa. As curas físicas por ele operadas, são o primeiro sinal da plenitude da regeneração da vida, o começo da paz. Por isso a fé, entendida como adesão à sua pessoa, constitui o fundamento da paz, pois é ela que torna possível a comunhão com o Senhor da vida.

A paz é, pois, o conjunto dos bens messiânicos que têm a sua origem em Deus e se tornam presentes em Jesus, permitindo a superação congénita da fragilidade humana, afectada pelo engano, o pecado, o egoísmo e a morte. Por ser aquele que baptiza no Espírito Santo (Lc 3,16), Jesus tem a possibilidade de fazer participar na vida de Deus, fonte de todos os bens, aqueles que a ele aderem pela fé, como afirma a carta aos Efésios: Ele é a nossa paz (Ef 2,14).

É neste sentido que o evangelista João alia o dom da paz com a morte e ressurreição de Jesus. No solene discurso da última ceia, depois de ter anunciado a vinda do Espírito (Jo 14,25s), Jesus deixa a paz como seu legado especial aos discípulos, distinguindo-o dos modelos de paz que eles podem encontrar no mundo; e, depois de ressuscitado, a primeira palavra que lhes dirige é para lhes dar a paz, que eles tinham perdido, com a ausência e a morte do Mestre:

Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não vo-la dou como a dá o mundo. Não se perturbe o vosso coração, nem se atemorize (Jo 14,27).

Ao cair da tarde daquele dia, o primeiro da semana, estando trancadas as portas da casa onde estavam os discípulos com medo dos judeus, veio Jesus, pôs-se no meio e disse-lhes: A paz esteja convosco! (Jo 20,19).

A morte e ressurreição de Jesus representam o ponto culminante do seu dom da vida aos seus, a oferta da plenitude da paz. Não se trata apenas de libertar os discípulos do medo e da desorientação da morte, mas de lhes tornar possível a plenitude da vida, através do dom do Espírito que, a partir da ressurreição, ele pode enviar de junto do Pai.

2.2 A denúncia da paz: Não penseis que vim trazer a paz à terra

Perante o quadro optimista desta mensagem inicial do evangelho, há expressões de Jesus que parecem muito estranhas:

Julgais que Eu vim estabelecer a paz na Terra? Não, Eu vo-lo digo, mas antes a divisão. Porque, daqui por diante, estarão cinco divididos numa só casa: três contra dois e dois contra três; vão dividir se o pai contra o filho e o filho contra o pai, a mãe contra a filha e a filha contra a mãe, a sogra contra a nora e a nora contra a sogra (Lc 12,49-53).

Então, disse-lhes: Agora, porém, quem tem bolsa, tome-a, como também o alforje; e o que não tem espada, venda a sua capa e compre uma (Lc 22,36).

Desde os dias de João Baptista até agora, o reino dos céus é objecto de violência, e são os violentos que se apoderam dele (Mt 11,12).

Para entender este tipo de ditos é necessário ter em conta, antes de mais, os diversos sentidos que o termo paz pode assumir, na tradição bíblica, desde a ideia de harmonia e de ausência de conflitos, à de súmula de todo o bem, equivalente a felicidade. É evidente que, ao dizer que não veio trazer a paz à terra, Jesus não entende, como mostra a sequência da frase, o sentido pleno de paz, mas da paz como convivência harmónica. Nesse sentido, é evidente que a adesão ao Reino de Deus supõe uma ruptura com tudo aquilo que se lhe opõe e isso acarreta, não raramente, desacordo entre pessoas. Do mesmo modo as alusões à espada e à violência não constituem nenhuma apologia do uso da força para implantar o Reino, mas a constatação de que os que o aceitam precisam de uma atitude forte e decidida, para enfrentar as dificuldades decorrentes da sua opção.

Mas estes ditos constituem, além disso, um importante ponto de referência para clarificar a ideia evangélica de paz, na linha da denúncia feita pelos profetas (5). A paz não se identifica simplesmente com o calar-se dos canhões ou a ausência de conflitos, mas é um projecto dinâmico e construtivo, destinado a possibilitar o desenvolvimento de pessoas e sociedades livres, dignas, justas e felizes. Um projecto destes exige disponibilidade, desapego e esforço, que não se compadecem com atitudes ambíguas de pseudoconciliação de valores inconciliáveis. A violência evangélica tem início na própria pessoa, pois a verdadeira paz é incompatível com o "deixa-me em paz!", dos que não querem ser incomodados no seu egoísmo, comodismo ou tendências adversas à edificação do Reino. Quem não for capaz de se inquietar com os problemas da humanidade, quem nunca empreender nada para não ter problemas, refugiando-se na "sua paz", nunca entenderá a paz do evangelho.

Além disso, o projecto evangélico, visando a transformação das pessoas e da sociedade, entra inevitavelmente em confronto com os interesses de indivíduos e estruturas a quem não interessa a liberdade e a dignidade dos outros. O conflito é inevitável a todos os níveis. A esse respeito, Jesus é muito claro: o ideal da paz não pode ser motivo para evitar o conflito, porque isso significaria a deturpação da paz. Frequentemente os construtores da paz são apelidados de rebeldes, de agitadores, de perturbadores da ordem pública, por aqueles que, para defender os seus interesses e o seu poder, instalam sistemas injustos e opressores. Não raro, esses sistemas de poder revestem-se de uma aura de sacralidade e encontram, nos meios religiosos, muita gente que lhes dá apoio e que condena, em nome de Deus, qualquer alteração dos sistemas, pois as ditaduras procuram, com frequência, ser generosas com as instituições religiosas, desde que estas se mantenham cegas às injustiças e submissas àqueles que as praticam.

Jesus e os profetas denunciaram essa paz de injustiça e de morte, recusando a resignação e a submissão. Não foram violentos, mas sofreram violência e tiveram de pagar cara a aversão daqueles que denunciaram. Nessa perspectiva, o evangelho é uma gritante denúncia da inautenticidade e da manipulação da paz. Por estranho que pareça, a paz do evangelho gera inevitavelmente conflitos, divisões e separação de águas e a história de Jesus é o exemplo claro desse conflito.

2.3 Entender o caminho de Jesus na luta pela paz

Para entender melhor esta luta pela paz, como Jesus a propõe, analisemos brevemente um episódio evangélico que se reveste de especial importância nesta questão, embora, à primeira vista, pareça não ter muito a ver com o tema. Trata-se do reconhecimento de Jesus como Messias, por Pedro, em Cesareia de Filipe, que veremos na versão de Marcos, pois é a que melhor espelha o conflito de valores em causa (cf. Mc 8,27-9,1).

A declaração de Pedro "Tu és o Messias" (Mc 8,29) constitui, segundo Marcos, o primeiro reconhecimento humano de que Jesus é o enviado escatológico de Deus, em cumprimento dos anúncios dos profetas. Com esta declaração, Pedro reconhece que Jesus é aquele que vem trazer a paz e a salvação a Israel. Mas, na linha da maior parte dos textos da tradição bíblica que analisámos, esse papel de Messias era concebido segundo o modelo do poderoso rei David, que submetera os povos vizinhos e garantira a segurança, a prosperidade e a glória de Israel. No tempo de Jesus, com a Palestina dominada pelos romanos, a mentalidade mais corrente esperava que, quando viesse, o Messias havia de libertar o povo eleito do jugo estrangeiro, fazer resplandecer o poder e a glória de Israel perante todas as nações e, a nível interno, limpar a nação dos malvados e dos corruptos. Tratar-se-ia de um Messias "pacificador", mas não de um Messias de paz.

Era esta, com toda a probabilidade, a ideia subjacente à declaração messiânica de Pedro. Por isso Jesus, sem negar ser o Messias, proíbe os discípulos de falarem dele a quem quer que seja e começa a dar-lhes um novo ensinamento:

Começou a ensinar-lhes que o Filho do Homem devia sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, os sumos sacerdotes e os escribas, ser morto e, depois de três dias, ressuscitar (Mc 8,31).

Não raras vezes este texto foi explicado como denotando uma atitude passiva de Jesus, perante os detentores do poder e uma recusa de entrar no domínio da política e da transformação social. Nada mais falso! Jesus pretende, de facto, provocar um completa revolução da forma de pensar e de agir, traduzida numa proposta nova de viver, que liberte o homem do mal e da própria morte; aquilo a que chama o Reino de Deus. A sua palavra e os seus gestos tornam-se, por isso, tão incómodas aos detentores do poder, que tentam reprimir a sua acção e planeiam a sua morte.

Do ponto de vista do nosso tema, a atitude de Jesus pode explicar-se recorrendo a três hipóteses:

a) Perante a oposição que enfrentou, Jesus podia ter optado por desistir da missão que Deus lhe confiara, por fechar os olhos aos males e carências dos homens e, nesse caso, é provável que o "deixassem em paz". Mas essa era exactamente a paz cómoda que ele denunciava, a qual deixava tudo como estava, para não ter problemas. Essa atitude significaria traição ao desígnio de Deus, que o enviara, e aos homens, a quem viera trazer a salvação. Jesus não o segue.

b) Um segundo caminho seria o de responder à violência com outra violência. É esse o processo seguido pela generalidade das revoluções humanas e certamente aquele que os discípulos esperavam que Jesus tomasse, contando com a força imbatível do Deus dos exércitos. Ele teria aniquilado os seus inimigos, purificado a nação e instalado o poder dos justos. Mas Jesus não segue esse caminho e talvez possamos vislumbrar alguns motivos para essa recusa. Antes de mais, Deus não tem inimigos e, mesmo aqueles que se lhe opõem não deixam de ser seus filhos e suas filhas, que ele nunca pode destruir. Além disso, um reino imposto pela força é sempre uma ditadura, mesmo que seja o reino do bem. O Reino de Deus não é dessa ordem: é uma oferta e não uma conquista; e quem nele entra fá-lo por livre opção, pois, de outro modo, não é cidadão mas escravo. A violência é o que mais frontalmente se opõe ao Reino de Deus e, por isso, Jesus não pode construir com ela a sua comunidade.

c) Então, se não desiste nem usa a violência para fazer valer o seu caminho, Jesus tem de aceitar sofrer as consequências da revolução que provoca. O seu sofrimento e a sua morte são a consequência directa da radical fidelidade a Deus e aos homens, aliada à recusa absoluta do uso da força na construção do Reino de Deus.

Esta radicalidade deve distinguir-se, porém, de qualquer tipo de fatalismo, fanatismo ou valorização masoquista do sofrimento. Jesus não é insensível à dor e ao fracasso, mas confia na força do Pai, superior ao poder destruidor dos homens. O Reino, que parece fracassar com a sua morte, tem em si a força de Deus e vai ter sucesso. Jesus não morre resignado, desesperado, ou imerso num fanatismo fatalista, mas plenamente confiante no poder e na bondade do Pai, que o ressuscitará a ele e fará crescer a semente lançada no coração dos homens.

Deste modo, o seu caminho ergue-se como estrada de construção da paz, entendida como dom da plenitude da vida, feito por Deus aos homens. Ele não lutou simplesmente pela paz, mas fez-se a si próprio dom de paz, que permite a vida. A recusa liminar da violência assume, neste contexto, uma importância especial. Mais do que a cessação de hostilidades, sempre necessária, a paz significa a construção da dignidade, da liberdade, da fraternidade e da vida. Esses valores, ou melhor, pessoas nessa atitude, não se conseguem por decreto e, muito menos, pela força; só pode ser resultado de um dom, feito palavra, gesto solidário, oferta de vida. Trata-se é de multiplicar a vida, desde a multiplicação do pão até ao dom total de si próprio, não numa atitude proselitista ou de domínio, mas como serviço que gera vida e fraternidade à sua volta.

2.4 Bem-aventurados os construtores da paz

A construção da paz, em todos os seus aspectos, constitui para os discípulos, uma tarefa primordial da missão. Ao iniciar o discurso de envio dos discípulos, a primeira palavra que Jesus lhes recomenda é a da paz:

Ide! Envio vos como cordeiros para o meio de lobos. Não leveis bolsa, nem alforge, nem sandálias, e não vos detenhais a saudar ninguém pelo caminho. Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: "A paz esteja nesta casa!" E, se lá houver um homem de paz, sobre ele repousará a vossa paz; se não, voltará para vós (Lc 10,3-6).

A paz é uma oferta e um desafio que deve acompanhar os anunciadores do Reino. Mas eles devem ter presente que, como aconteceu com o Mestre, também hão-de deparar com incompreensão, falta de acolhimento, oposição e perseguição. Em tal contexto, nunca hão-de recorrer à força para impor a mensagem, mas devem apenas oferecer e propor, esperando que a palavra seja acolhida por quem for digno dela.

No evangelho de Mateus, o discurso das bem-aventuranças, contém duas referências significativas a este tema, que mostram bem a importância da edificação da paz, na perspectiva cristã:

Felizes os pacíficos, porque receberão a terra em herança...
Felizes os construtores da paz, porque serão chamados filhos de Deus (Mt 5,5.9)

A primeira destas bem-aventuranças tem, como ponto de referência, a terra prometida, dada por Deus a Israel como herança. Na tradição bíblica, a terra de Israel, foi um dom de Deus ao seu povo, mas a sua posse foi fruto de uma conquista militar, que contou com a assistência de Deus. Na perspectiva neotestamentária, o conceito de terra compreende o mundo inteiro, ao qual se destina a Boa Nova, mas estende-se para além de qualquer realização humana, na esperança da terra prometida da plenitude da vida, no mundo de Deus. Este mundo novo, tanto na perspectiva terrena, como da pátria definitiva, não se conquista com a força, mas é recebido de Deus como herança. Condição para entendê-lo e possuí-lo é mesmo a recusa à violência, que o tornaria inatingível. Daí a bem-aventurança dos não violentos (6), cuja atitude os torna aptos a acolher e a participar no mundo novo que Deus lhes oferece.

A segunda bem-aventurança dirige-se explicitamente aos obreiros da paz, que serão chamados filhos de Deus. Segundo o conceito de paz que temos vindo a reconhecer nos textos bíblicos, a acção destes construtores da paz não se limita a apaziguar os conflitos, mas abrange toda a actividade que contribui para a felicidade, a justiça, a dignidade e a vida. Estas pessoas são felizes, pois Deus as chama de seus filhos e suas filhas, porque, pelo seu operar, se parecem com ele, que é dador de vida e de paz por excelência.

2.5 A comunidade dos discípulos e a construção da paz

À luz da tradição evangélica, que temos vindo a analisar, a dinâmica da paz nunca pode ser entendida apenas no âmbito individual, como se se tratasse de uma ascese ou de uma mística pessoal, ou de preservar a área da existência privada, do contacto perturbador dos problemas externos. A bem-aventurança e o dinamismo da paz são, pelo contrário, claramente dialógicos e intervenientes, abrindo-se naturalmente à comunidade, de forma criativa e fraterna.

A comunidade surge, na perspectiva dos evangelhos e de toda a tradição cristã, como o desafio à concretização da dinâmica da paz. Penso não ser arbitrário apontar, a modo de conclusão, quatro dinamismos fundamentais que fazem parte da vivência da utopia da paz na comunidade: a reconciliação, a partilha dos bens, a universalidade e o exercício da autoridade como serviço.
a) No evangelho de João, o ressuscitado, ao tornar-se presente entre os discípulos, invoca sobre eles, por duas vezes, a paz. A primeira, como vimos acima, destina-se, antes de mais, a eles próprios, libertando-os, com a sua presença, da desorientação e do medo; a segunda está unida à missão que lhes confia, com o poder do Espírito, de serem intrumento da reconciliação. Trata-se, pois, do resumo da missão dos discípulos, numa visão muito semelhante à de Paulo, na segunda carta aos Coríntios:

Disse-lhes Jesus de novo: A paz seja convosco! Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio. Dito isto, soprou sobre eles e disse-lhes: Recebei o Espírito Santo. Aqueles a quem perdoardes os pecados, ficarão perdoados; aqueles a quem os retiverdes, ficarão retidos (Jo 20, 21-23).

Se alguém está em Cristo, é uma nova criatura; as coisas velhas passaram; eis que se fizeram novas. Tudo isto provém de Deus, que nos reconciliou consigo, por meio de Cristo, e nos confiou o ministério da reconciliação (2Co 5,17s).

Tanto para Paulo como para João, a reconciliação com Deus passa pela reconciliação numa comunidade. Não se trata simplesmente da instituição do sacramento da penitência, que constitui apenas uma forma, se bem que importante, da dinâmica da reconciliação, que permite a vida comunitária. Este processo tem a sua origem em Deus, que reconcilia e convoca, motivando e tornando possível, pela presença do Espírito, a comunhão e a vida fraterna, apesar da diversidade e da fragilidade dos membros da comunidade.

Numa sociedade formada por pessoas imperfeitas e dilacerada por divisões de todo o género, o dinamismo da reconciliação constitui o primeiro pressuposto da paz, que tem de estar constantemente presente no relacionamento humano. Essa foi aliás uma nota característica do comportamento de Jesus, que não veio chamar os justos, mas os pecadores (cf. Mc 2,17).

b) O segundo pilar da construção comunitária da paz afirma a universalidade da reconciliação. A comunidade de Jesus, a partir da sua ressurreição e da vida do Espírito, sente-se mandatada a levar a Boa Nova até aos confins do mundo, concretizando a proclamação dos anjos, que anunciavam a paz aos homens que Deus ama. Nascida em ambiente judaico, a comunidade cristã não nega as suas origens, mas sabe-se destinada a abolir as divisões entre os povos e a levar, a todos eles, a benção de Abraão e as promessas dos profetas, concretizadas em Jesus Cristo:

Recebereis a força do alto e sereis minhas testemunhas, em Jerusalém, na Judeia e na Samaria, até aos confins do mundo (Act 1,8).

Porque ele é a nossa paz, o qual de dois [povos] fez um só; derrubando o muro da divisão e da inimizade e abolindo, na sua carne, a lei dos mandamentos e prescrições, para criar, em si mesmo, de dois [judeus e pagãos], um homem novo, fazendo a paz, e reconciliando ambos num só corpo com Deus, por intermédio da cruz, levando, assim, a morte à inimizade (Ef 2,14-16).

Não se trata de um projecto de domínio universal, mas da consciência do dever de oferecer a todos os homens os bens messiânicos. Por isso, os primeiros cristãos não sentiram necessidade de fundar uma estrutura política própria, nem de conquistar o poder para atingir os objectivos desta missão. Pelo contrário, como mostra a confluência dos povos e línguas, no dia de Pentecostes, o respeito pela diferença e a renúncia à conquista do poder, que sempre se exprimiria como domínio e exclusão de alguém, revelam-se como essenciais ao projecto de paz universal proposta pelo evangelho.

c) As outras duas dimensões do projecto comunitário cristão, no que diz respeito à construção da paz, referem-se a dois dinamismos fundamentais da organização da sociedade: os bens e o poder. Ao apresentar o ideal de comunidade, os Actos dos Apóstolos referem-se, por duas vezes, à partilha dos bens, como nota característica da vida dos primeiros aderentes ao evangelho:

Todos os crentes viviam unidos e tinham tudo em comum. Vendiam as suas propriedades e bens, distribuindo o produto entre todos, de acordo com as necessidades de cada um (Act 2,44-45).

A multidão dos que haviam acreditado tinha um só coração e uma só alma. Ninguém considerava seu o que possuía, mas, entre eles, tudo era comum... Não havia necessitados entre eles, porque os que possuíam terras ou casas vendiam-nas, traziam o produto da venda e depositavam-no aos pés dos apóstolos; então, distribuía-se a cada um, na medida das necessidades que tivesse (Act 4,32-35).

Não sabemos quanto durou e qual o grau de eficácia da total comunhão de bens da comunidade de Jerusalém, mas é certo que esta descrição inspirou e continua a inspirar inúmeras comunidades e, além disso, constitui um ideal de partilha, absolutamente necessário à construção da paz. Uma grande parte dos conflitos, entre pessoas, sociedades e nações, tem a ver com a disputa pelos meios de subsistência e pelas riquezas do planeta; e uma fonte constante de instabilidade e de guerra reside no clamor faminto dos deserdados deste mundo, que gritam justamente e exigem o direito aos meios de subsistência e a uma vida digna.

A utopia da paz passa pela inversão dos processos ligados à posse dos bens. Na perspectiva evangélica, Deus é o criador e providenciador de todos os bens. Os homens que os detêm, são, de algum modo, administradores daquilo que lhes foi liberalmente dado pelo Criador. Por isso, é em acção de graças que usam dos bens deste mundo e com generosidade que os partilham com os outros, pois eles a todos se destinam.

A partilha dos bens pode assumir formas diferenciadas, e passa antes de mais, pela justa organização das sociedades e dos sistemas económicos, de modo que todos tenham os meios necessários para a vida, mas não há dúvida de que não haverá paz enquanto um abismo separa as sociedades cada vez mais ricas daquelas que os nossos sistemas económicos deixam à margem da estrada do progresso e do bem-estar.

d) Um outro elemento determinante na organização de qualquer sociedade tem a ver com o modo como se exerce o poder. Todos os grupos humanos precisam de normas e de organismos de coordenação, que lhes permitam regulamentar o relacionamento mútuo e conseguir os próprios objectivos, mas também é verdade que, como o domínio dos bens, a conquista do poder é uma outra fonte constante de conflitos e de guerras destruidoras, a todos os níveis da comunidade humana.

Na perspectiva bíblica, como temos repetidamente afirmado, a construção da paz não é compatível com o abstencionismo de intervenção na vida pública. Precisamente porque a existência de uma comunidade pressupõe papéis de autoridade e de liderança, é que Jesus exige que os seus tenham como fundamento dessa autoridade o serviço e não a conquista do poder:

Quem de vós quiser ser o primeiro, seja o último de todos e o servo de todos (Mc 9,33).

Sabeis que os que são considerados governadores dos povos senhoreiam sobre eles e que os grandes, entre eles, dominam sobre os outros. Não deve ser assim entre vós! Mas quem, de entre vós, quiser tornar-se grande, será o vosso servo; e quem, de entre vós, quiser ser o primeiro, será o escravo de todos, pois o Filho do Homem também não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida como resgate pela multidão" (Mc 10,42-45).

A norma da liderança da comunidade é aferida pela atitude do próprio Jesus, que não renunciou ao seu poder e autoridade, mas fez deles um serviço, até à sua entrega total e ao dom da vida. Tal não significa que sejam ilegítimas as estratégias de conquista democrática do poder e o seu exercício; não há dúvida, porém, que a conquista do poder democrático apenas tem sentido enquanto projecto de liderança e de serviço aos cidadãos. O serviço, como contribuição da pessoa à comunidade, é o princípio fundamental do repúdio de qualquer imposição violenta e ditatorial, mesmo daquilo que possa ser considerado bom e santo, e a legitimação evangélica do exercício da autoridade.

CONCLUSÃO

Na Bíblia, a paz é, antes de mais, o dom de Deus que permite a realização plena da pessoa e da sociedade, abrindo os horizontes da felicidade, para além daquilo que as forças humanas conseguem realizar. Porém, sem deixar de ser dom de Deus, é também um projecto de construção humana, pois não existe em abstracto, mas reside, ou não, nas pessoas e na sociedade.

Dado que não se equaciona simplesmente com a ausência de guerra, a paz exige mais do que pacifismo abstencionista e resignação, como forma de evitar conflitos. Ela requer tanto o conflito e a coragem da denúncia, como o amor e a dedicação na construção da vida, da fraternidade, da justiça, da dignidade e da esperança.

Como expressão plena da vida, a paz não pode ser erigida em sistema a impor a quem quer que seja, pois não passaria de um intervalo anunciador de novos conflitos. A mensagem evangélica da paz tem a pretensão de ser universal, mas essa universalidade tem como pressupostos o respeito pela diversidade e a renúncia ao domínio e à violência.

Por isso, a edificação da paz exige um empenhamento de serviço e de coragem, frequentemente incómodo e suscitador de oposição e repressão, muitas vezes pago com o próprio sangue. Mas esse testemunho mostra que a vida e a paz não se perdem quando se dão, mas apenas quando se pretende poupá-las. Foi o dom pacífico dessas vidas que derrubou muros, fez cair ditaduras, alimentou bocas famintas e tornou mais próxima a utopia da paz entre os homens. As suas vidas não se perderam, nem da memória dos homens, nem das mãos poderosas de Deus.

Bem-aventurados os construtores da paz,
porque, desde agora e para sempre,
Deus os chamará seus filhos e suas filhas.


José Ornelas Carvalho

NOTAS
4 O termo eirênê é utilizado 92 vezes no NT, sendo 25vezes nos evangelhos e destas 4 em Mateus, 1 em Marcos, 6 em João e 14 em Lucas.
5 Cf. acima, pg. 7ss.
6 O termo grego traduzido por pacíficos (praeis) significa, amável, gentil, opondo-se à atitude de força e de violência.