CADERNOS DO ISTA, 6



Ética laica
e ética cristã
Manuel Sumares

PORQUE OS DIREITOS HUMANOS ENQUANTO TAIS DIZEM MUITO POUCO A NÓS. CRISTÃOS ACERCA DO QUE A ÉTICA DEVIA SER
um argumento em forma de uma questão disputada
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Nota prévia: Discutir aqui a relação entre a ética laica e a ética cristã na forma de uma questão disputada parece-me singularmente apropriado, digamos um acto de justeza, por duas razões. Primeiramente, trata-se de uma reflexão feita no contexto do Instituto São Tomás de Aquino. Constitui, portanto, ao mesmo tempo uma tácita expressão de agradecimento aos padres dominicanos pelo amável convite de participar na Semana de Teologia, promovida por eles no verão de 98 em Fátima, e uma homenagem ao Doutor Angélico, cuja forma de argumentação tentarei, livre e ludicamente, apropriar ao explorar e explanar o meu tema.

Mas, além disso e em segundo lugar, muito do que eu vou propor aqui é pensado na sombra da obra recente de Alasdair MacIntyre que, no seu último livro, Three Versions of Moral Enquiry, redescobre na arte de argumentar desenvolvida por Aquino a chave para o renovado sentido da tradição (1). Em livros anteriores (principalmente em After Virtue e em Whose Justice? Which Rationality? ), MacIntyre tinha já equacionado a tradição com um longo argumento, quer dizer, uma narrativa em episódios, sustentada pela prática das virtudes relevantes da ordem moral e intelectual capazes de aguentar as “crises epistemológicas”, provocadas pelo confronto com outras tradições (outros longos argumentos). Com os pontos vulneráveis postos em relevo, é-se obrigado a rearticular as linhas fundamentais de orientação da tradição em que nos movemos para regenerar as suas virtualidades de desenvolvimento. Afinal, tradições - como argumentos - ou ganham a fazer vingar a sua lógica, os padrões que configuram, ou são secundarizadas, senão caducadas.

É interessante notar nesta última obra de MacIntyre sobre as três versões da pesquisa moral uma tentativa de retomar o trabalho de Aquino no contexto da contemporaneidade: como Aquino procurou conjugar, dentro do muthos cristão, a perspectiva neo-platónica de Agostinho de Hipona com a filosofia aristotélica, MacIntyre esforça-se por arbitrar o racionalismo moderno (“os enciclopedistas”) e a dispersão pós-moderna (“os geneologistas”, à moda de Nietszche). E tudo isto em nome de uma “tradição” apta em subsumir the best available accounts , as propostas avançadas nas suas versões mais fortes, por dentro dos padrões estruturantes deste muthos , diferenciando-se internamente pela via do afrontamento. O que se pede é que a tradição “saque” - por assim dizer - por dentro de si a sua aptidão para produzir inteligibilidade e para dar perspectiva à vida propriamente humana, isto é, uma vida necessariamente marcada pela exigência ética (2).. É precisamente isto que se pode à tradição cristã e à ética que dela se deriva.

Isto dito, avanço para a minha sucinta explanação em forma de uma questão disputada.

A Proposição: No fim de contas, tanto a ética laica como os direitos humanos que dela derivam, têm pouco a dizer aos cristãos acerca da natureza da ética e de como eles devem comportar-se.

Objecção 1 - a modernidade apesar de tudo: Nesta fase da nossa história é difícil recuperar a esperança racionalista da modernidade num único sistema de verdade. Com efeito, o fim da modernidade continua a chegar e, com ele, a ideia mesma de uma só medida para avaliar a veracidade das nossas proposições e a correcção moral das nossas acções. Mas, apesar de estarmos imersos num mundo francamente pluralista, algo de inegável importância nos foi legado e nos será imprescindível na construção de uma sociedade verdadeiramente global: o sentido da nossa maturidade enquanto espécie e a viva intuição de que a história e a direcção que tomará nos pertence. A maturidade conota a autonomia, significando na esfera do comportamento humano um auto-responsabilizar-se pelas razões que legitimam as acções e pelas consequências que elas provocam. Assim, se a maturidade implica uma postura autónoma, ambas exigem a coerência e a responsabilização quer têm como base a pura capacidade de raciocinar a determinar a melhor via de resolver os dilemas éticos que podem surgir.

A emergência de uma ética laica assim concebida constitui, então, uma conquista do espírito propriamente humano à procura do que pode conseguir o assentimento dos seres humanos qua seres humanos, para além de particularidades culturais e de específicas práticas eclesiais.

Isto dito, a relação da ética laica com a ética cristã é algo complexo: há claros pontos de contacto, talvez de inspiração tácita, mas há sobretudo autonomização da primeira em relação à segunda. Na sua forma consequencialista (ou seja, as “acções são correctas ou erradas segundo as consequências que produzem”), faz apelo ao que Max Weber chamou a “Ética da responsabilidade”, tendo aderentes em cristãos notáveis como Dietrich Bonhoeffer e Reinhold Niebuhr. Na sua vertente deontológica, denotando a ética que tem como categotrias fundamentais as noções de “obrigação”, ou “dever”, e a “correcção dos actos” e correspondendo a uma “ética de intenção” (Weber, de novo), há que reconhecer as suas origens na filosofia de Immanuel Kant e no seu pietismo.

Mas é principalmente no utilitarismo que se pode apreciar a extensão da doutrina cristã de agape para a conceptualização universalizante da filosofia. O eixo de raciocínio utilitarista consiste na convicção de que o amor que se deve ao próximo, sendo igual ao amor que se tem por si próprio, implica logicamente que de vemos amar todos igualmente. E se amar alguém envolve a procura do seu bem, então isto obriga-nos igualmente a procurar o bem de todos. Aonde o bem de um entra em conflito com o bem de um outro, um equilíbrio tem de ser encontrado. A regra que deve ser utilizada neste caso é de procurar imparcialmente a maior extensão do bem para o maior número, enquanto se diminue o bem de um pequeno número quando é necessário asssegurar o bem da maioria.

Portanto, a ideia dos direitos humanos e do desenvolvimento de uma ética laica não estão exactamente em contradição com a ética transmitida na tradição cristã. Não somente representam um esforço em estabelecer um denominador comum entre os seres humanos para o bem de todos, mas também constitui uma evidência da maturidade emergente da humanidade neste nosso fim de século - aliás, um sentimento o qual muitos teólogos (de - antes e durante as grandes guerras - Bultmann e Bonhoeffer a - actualmente - Jonh Hick e Keith Ward) têm feito apelo ao longo do século XX.

Objecção 2 - as consequências da pós-modernidade: Sim, como se diz em Objecção 1 , a ética laica e a ética cristã acabam por ter uma cumplicidade histórica de fundo mas a ambas pertence o onus de terem fracassado e de se terem tornado - pelo menos nas suas formas legitimizadoras das instituições que as promovem - simplesmente caducas. No fim do século vinte o “nós” de solidariedade humana e as ideias de comunidade e de universalidade encontram-se inexoravelmente em estado de fissura. O ponto de referência político-cultural no Ocidente é o Holocausto: depois de Auschwitz não pode haver a ilusão que a humanidade é uma, que a universalidade constitui a condição humana. A fragmentação em grupos e em interesses rivais definem a condição pós-moderna: a agonística torna-se, assim, um aspecto inevitável da vida contemporânea.

Justamente porque esta é a situação da contemporaneidade as grandes narrativas que apoiam a ideia de uma ética racional e ideologicamente neutral, isto é, uma ética laica, ou a ideia de uma ética cristã extensível à humanidade inteira soam a ocas. A única via para uma ética capaz de responder à sensibilidade contemporânea é a que procura assegurar que as diferenças, quer dizer, posicionamentos minoritários e oposicionais, sejam respeitados. Enquanto discursos totalitários tendem a silenciar outras vozes e discursos ao advocar regras gerais e critérios que excluem as vozes marginais, o único princípio ético que permanece indesconstrutível e, dixet Derrida, a justiça que se deve perante indícios de diferença, sinais que irrompem com as formas de vida política enclausuradas, ou melhor, que tendem a auto-enclausurarem-se na recusa ou no medo perante o diferente.

Nestas circunstâncias, qualquer futuro para as duas formas da ética em questão teria de ter em conta a irredutibilidade do plural e o projecto de emancipação em relação a estratégias de poder, seguramente subjacentes às tentativas de formulação dos direitos humanos. Se algum universal se pode manifestar, então este seria a suspeita universal e a fixação nos contextos e nos jogos de desejo. Neste caso, a ética laica assumiria o paganismo que implicitamente postulava ao recorrer à razão enquanto tal para fundamentar os seus princípios. Agora, os constrangimentos do monoteísmo e da visão unitária do platonismo ficam desfeitos pelo plural: o rizoma advém no lugar da árvore. Quanto à ética cristã, resta assumir a errância, a sua vocação pre-constantiniana da marginalidade e do não poder. Rsistência seria a última palavra, nisso estas éticas podem ser cúmplices.

Objecção 3 - ser assumidamente liberal, burguês e neo-pragmatista: Os direitos humanos enquanto tais não existem. Mas pode acontecer que, enquanto um conglomerado de etnias e de nacionalidades, se decida a criar - por razões práticas e transcendendo fronteiras que demarcam a ética cristã da ética laica - uma "cultura de direitos humanos", com a qual se aprende gradualmente a identificar-se. Por outras palavras, o estabelecimento de tal cultura não se realiza na defesa de um conjunto de direitos que supostamente existe na natureza humana desde a emergência da espécie. A questão de direitos tem muito mais a ver com a educação do imaginário pela via da aculturação do que pelo cálculo racional.

Imagens da verdadeira humanidade funcionam decisivamente em quem seria classificado como merecedor de direitos humanos. Em situações extremas, um tratamento "desumano" justifica-se pelo não-reconhecimento consciente do estatuto do humano a um ser que tem a aparência de um ser humano: os sérvios que torturam os muçulmanos bósnios, os americanos brancos que dizimaram os índios, etc., etc., não duvidaram da sua própria humanidade e a aplicação de direitos que respeitassem esta humanidade, isto é, a sua. Os que participam na escravatura, em violações, em tortura, e em limpezas étnicas não reconhecem a suas vítimas como pertencendo à mesma humanidade, mas antes a uma versão inferior. Uma cultura de direitos humanos precisa de uma educação sentimental para alargar os parâmetros de quem merece ser chamado "gente". No fim de contas, o projecto de uma cultura de direitos humanos coincide com o projecto de luzes e as pretensões de uma ética laíca: a educação de gerações de pessoas para uma tolerância que respeita diferenças. Uma ética epecificamente cristã não acrescentando nada de especial, salvo talvez a sua capacidade de motivar os crentes para colaborar nestes projectos.

Quanto às pessoas más, é errado atribuir as suas acções à irracionalidade. A chave para a resolução dos actos nocivos à sociedade pode encontrar-se na privação da segurança e da simpatia que estas pessoas ressentem nas suas histórias de vida. Não há melhor remédio para estes males de que uma educação e de uma socialização, apoiadas por uma economia produtiva que convida a participação generalizada da população e por uma cultura produtora de imagens de inclusão social e de repugnância relativamente a actos de humilhação.

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Notas

(1) Entende-se que o meu uso do pensamento de MacIntrye vai também ser livre: mais o espírito do que a letra, propriamente dito.

(2) Que o trabalho de MacIntyre desenvolve em filosofia começa a entrar no domínio da teologia pode ser verificado na recente publicação, V irtues and Practices in the Christian Tradition: Christian Ethics after MacIntyre , editado por Murphy, Kallenberg, e Nation (Trinity Internacional Press, 1997). Mas quem tiver interesse nesta via deve ver sobretudo as obras do teólogo metodista, Stanley Hauerwas, que rejoga com notável eficácia o que aprendeu de MacIntyre, com o que aprendeu na universidade de Yale com Georga Lindbeck e Hans Frei, isto é, com a teologia pós-crítica (ou pós-liberal). Uma outra pista seria o notável trabalho teológico do anglo-católico John Milbank que também aproveita, embora criticamente, as perspectivas abertas de MacIntyre e a Escola de Yale. Avanço aqui a opinião que Milbank está em vias de produzir uma teologia de uma qualidade e de um poder excepcional. (cf. Theology and Social Theory, Blackwell, 1990; The Word Made Strange, Blackwell, 1997).

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