CADERNOS DO ISTA, 6


 

ANTIGO TESTAMENTO
E DIREITOS HUMANOS (2)

Francolino J. Gonçalves, OP

 


2. Antropologia bíblica e direitos humanos

Os mitos sobre a origem da humanidade são as expressões mais acabadas das concepções antropológicas do mundo do Antigo Testamento. Esses mitos, tal como se encontram em Gn 1,26-28 e Gn 2,4b-8.18-24, apresentam a humanidade como descendente de um só casal primordial e, por conseguinte, como uma grande família, cujos membros são todos irmãos. Gn 2,4b-8.18-24 poderia implicar uma certa subordinação da mulher ao homem (1), mas tal não é o caso em Gn 1,26-28, onde o homem e a mulher estão indubitavelmente num pé de igualdade. Todos os membros da família humana são iguais. Outro traço fundamental dos seres humanos é a liberdade. Os seres humanos são livres e, por conseguinte, responsáveis pelo seu destino. É o que ressalta, de maneira dramática, de Gn 3,1-24. Segundo esse texto, os males de que sofre a humanidade são da sua responsabilidade. Repare-se que o castigo divino não se abate sobre a humanidade de maneira automática e cega. Antes de a condenar, Deus pede explicações à humanidade culpada e dá-lhe a oportunidade de apresentar a sua defesa (Gn 3,8-13). Há algo de semelhante no episódio de Caim (Gn 4,9-10). Não estamos longe do Art. 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Segundo a concepção bíblica, a humanidade tem um lado divino. Gn 2,7 diz que «Yahvé Deus modelou o homem com barro da terra. Soprou-lhe nas narinas e deu-lhe respiração e vida. E o homem tornou-se um ser vivo ». A vida dos seres humanos é, por conseguinte, o sopro que Yahvé insufla nas suas narinas. Com um carácter mais abstracto e menos antropomórfico, Gn 1,26-27 não descreve o fabrico do homem, mas nem por isso supõe uma relação menos íntima entre Deus e o ser humano. Antes pelo contrário. «Deus disse : “Façamos o ser humano à nossa imagem e semelhança, de modo (ou para) que tenha poder sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todos os animais selvagens e todos os répteis que rastejam sobre a terra. Deus criou então o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus o criou, homem e mulher os criou » (2).

Sem nos embrenharmos nas discussões sobre a interpretação deste texto, assinalo só um ou outro aspecto que pode ser relevante para a questão dos direitos humanos. Começo pelas palavras imagem ( selem ) e semelhança ( d e mût ). Em hebraico, elas são praticamente sinónimas, mas d e mût sublinha o matiz de parecença. As duas palavras aramaicas correspondentes estão documentadas numa inscrição do séc. IX a. C. encontrada em Tell Fekheriye (Síria), na qual designam uma estátua. A meu ver, é à luz deste seu sentido próprio que se devem entender as palavras imagem e semelhança usadas no Génesis para expressar a relação entre o ser humano e Deus. Em relação a Deus o ser humano é como uma estátua em relação à realidade, pessoa ou coisa, que a estátua representa. A função fundamental da estátua é representar, isto é, tornar presente a realidade representada. No caso das estátuas divinas, esta função é particularmente importante, dado o carácter invisível dos deuses. Estes só são visíveis graças às suas representações. Os seres humanos são, por conseguinte, presenças visíveis de Deus no mundo humano. Diga-se de passagem, esta concepção do ser humano como imagem de Deus torna inúteis outras imagens, nomeadamente as representações de Deus por meio de animais irracionais, que eram correntes no antigo Próximo Oriente. De facto, esta concepção dos seres humanos acabou por excluir outras representações da divindade no mundo bíblico, ou pelo menos contribuiu para a sua exclusão. Ser a presença de Deus no mundo, a sua presença visível, é a máxima dignidade que se pode imaginar para um ser criado. Esta dignidade transmite-se como uma espécie de traço hereditário no seio da família humana, de pais a filhos. Criado à imagem e semelhança de Deus, Adão engendra à sua semelhança e imagem (Gn 5,1-3). O facto de os seres humanos serem imagens de Deus torna gravíssimo qualquer atentado contra a vida humana. Em Gn 9,6 ele funda, de maneira paradoxal, a condenação do homicida à pena capital. No que diz respeito à defesa da vida humana, entenda-se à defesa da vida dos inocentes, não estamos longe do Art. 3 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que consagra o direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal de todos os seres humanos. Os restantes textos bíblicos são unânimes na condenação do homicídio, cuja proibição faz parte do decálogo na sua dupla forma (Ex 21,13 e Dt 5,17). Repare-se, no entanto, que o decálogo tem como horizonte o povo bíblico. Restringe-se ao que os textos bíblicos chamam Israel. Limita-se a contemplar o caso do homicídio de um Israelita. Os outros não entram em linha de conta.

Afastei-me ligeiramente das traduções habituais de Gn 1,26 ao verter “Façamos o ser humano à nossa imagem e semelhança, de modo (ou para) que tenha poder sobre os peixes do mar (...) ». Esta tradução, que expressa uma relação entre o facto de os seres humanos serem imagem de Deus e o seu domínio sobre os outros seres vivos, parece-me preferível do ponto de vista gramatical. No entanto, a gramática não permite escolher entre uma relação de consequência (de modo a) e uma relação de finalidade (a fim de). Seja como for, o poder que o homem tem sobre os animais vem-lhe do facto de ele ser imagem de Deus. O facto de os seres humanos serem imagem de Deus não só os distingue e os põe acima de todos os animais, mas confere-lhes poder sobre todos eles. Esta relação do ser humano com o mundo animal parece expressar-se precisamente em termos de poder régio, o que implica que o ser humano desempenha o papel de rei da criação. Segundo a concepção então corrente, pelo menos no Próximo Oriente, os reis humanos eram representantes ou vice-reis de uma divindade. E parece ser sob esse modelo que os textos sacerdotais do Génesis apresentam o ser humano nas suas relações com o resto da criação. Esta concepção do homem resulta provavelmente da transposição dos atributos e da função régios para todos os seres humanos. Tal democratização dos atributos régios deve ter sido feita numa altura em que já não existia em Judá a instituição monárquica. Se, de facto, ela ainda existia, o autor sacerdotal dos textos do Génesis não lhe reconhecia a grande importância que geralmente se lhe atribuia.

Diga-se de passagem que, sob este ponto de vista, as tradições bíblicas contrastam com as tradições mesopotâmicas. Segundo estas, os deuses criaram a humanidade para servi-los, fornecendo-lhes alimento e bebida. A humanidade teria como única razão de ser libertar os deuses do trabalho servil (3).

A concepção dos seres humanos tal como se expressa nos mitos bíblicos sobre as origens da humanidade poderia constituir um excelente fundamento daquilo a que chamamos os direitos humanos, ou pelo menos, de alguns deles. Segundo esses mitos, a humanidade é uma grande família, cujos membros são irmãos, iguais em dignidade e livres. Em termos objectivos, essa concepção não está muito afastada, por exemplo, do primeiro considerando da Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas (4). Por isso, é curioso constatar que a Bíblia só muito raramente invoca os mitos das origens da humanidade como fundamento de um ou outro comportamento ou acção que têm a ver com os direitos humanos. Mencionei já o caso de Gn 9,6, texto onde se funda a pena capital para o homicida no facto de os seres humanos serem imagens de Deus. De resto, que eu saiba, as referências à criação da humanidade nesse contexto ocorrem nos escritos sapienciais, concretamente nos Provérbios (Pr 14,31; 17,5; 22,2) e em Jó (31,13-15). Frutos de uma reflexão que tem por objecto não o destino do povo bíblico, mas os próprios seres humanos e os seus comportamentos, esses escritos sapienciais acercam-se de uma ética universalista como a que está subjacente aos direitos humanos.

.
Notas

(1) Pode ver-se a discussão de A. Dos Santos V az , A visão das origens em Génesis 2,4b-3,24. Coerência temática e unidade literária , Lisboa, Edições Didaskalia - Edições Carmelo, 1996, pp. 99-122.

(2) Cf. também Gn 5,1-3 e 9,6.

(3) J. N. C arreira , Mito, Mundo e Monoteísmo (Biblioteca Universitária, 67), Mem Martins, Publicações Europa- América, 1994, pp. 73-86.

(4) «Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo; ».

..



pesquisa no site
powered by FreeFind

ISTA
CONVENTO E CENTRO CULTURAL DOMINICANO
R. JOÃO DE FREITAS BRANCO, 12 - 1500-359 LISBOA
CONTACTOS:
GERAL: ista@triplov.com
PRESIDÊNCIA: jam@triplov.com
SECRETARIADO: bruno@triplov.com
COLÓQUIO "INQUISIÇÃO": inquisitio@triplov.com