CADERNOS DO ISTA, 6






Os Direitos Humanos
e a Igreja
(fim)

António José
Ribeirinha Barreleiro





4. - A pessoa humana como fundamento da doutrina social católica

Leão XIII, como é sabido, inicia, com os seus grandes documentos políticos e sociais, a exposição moderna do pensamento cristão nestas matérias, recolhendo e consagrando uma larga elaboração doutrinal anterior no campo católico. A apresentação dos temas está condicionado em grande parte por sua oposição à ideologia dominante naquele tempo, o liberalismo, com todos os seus antecedentes e sequelas. Contudo, já começa a manifestar-se duma maneira progressiva, ainda que timidamente, a afirmação da dignidade do homem e dos seus direitos fundamentais como base da doutrina social da Igreja. Assim o vemos ao longo do seu Corpus politicum particular mente num dos seus documentos, a encíclica SAPIENTIAE CHRISTIANAE, onde se lê a seguinte frase: “A sociedade não foi instituída pela natureza para que o homem a procure como fim último, mas para que nela e por meio dela possua meios eficazes para a sua própria perfeição” (1). E em particular a RERUM NOVARUM, primeira grande manifestação do pensamento estritamente social dos papas, considera já explicitamente o respeito à dignidade humana e aos direitos fundamentais do homem, especialmente referidos aos proletários, como um dos fundamentos de toda a sua doutrina social (2).

É, contudo, Pio XI quem primeiro propõe duma maneira clara e explícita esta doutrina como base do pensamente social cristão, ainda que todavia sem a perspectiva universal e absoluta que adquirá em seus sucessores. A QUADRAGESIMO ANNO, frente às atrozes consequências duma economia capitalista levantada às costas da moral e frente à concepção materialista do novo socialismo, segue mantendo a linha de pensamento de Leão XIII, fundada em última instância, na dignidade humana, em especial dos trabalhadores, ainda que o verdadeiro fundamento doutrinal desta encíclica tenha de se buscar melhor em su conceito de justiça social e nas exigências do bem comum, que se estendem a todos os campos da vida social (3). Pelo contrário, nas enciclícas posteriores contra o nacional socialismo (Mit brennender sorge) e contra o comunismo (Divini Redemptoris ) começa já, directa e explicitamente, a exposição da doutrina católica da sociedade com a afirmação da dignidade do homem e do respeito dos seus direitos fundamentais segundo aquele princípio brilhantemente explicado por Pio XI: “ A sociedade é para o homem, e não o homem para a sociedade” (4). É evidente a influência imediata que nesta mais clara apresentação da doutrina têm exercido os perigos que o totalitarismo extremo desses movimentos, directamente atacados por Pio XI, entranhava para uma recta concepção cristã do homem e do seu verdadeiro lugar dentro da sociedade e do Estado, já que, praticamente, nessas concepções ficava de facto absorvido por eles.

Pio XII, a partir da sua primeira encíclica, SUMMI PONTIFICATUS, e logo numa enorme quantidade de ocasiões e com grande variedade de fórmulas, coloca já duma maneira determinante a doutrina da pessoa, da sua dignidade e dos seus direitos como base de todo o seu pensamento político e social. Uma das sua expressões mais brilhantes encontra-se na sua mensagem de Natal de 1942, onde se formula e se explica amplamente o seguinte princípio: “Origem e fim essencial da vida socialtem de ser a conservação, o desenvolvimento e o aperfeiçoamento da pessoa humana, ajudando-a a por em prática rectamente as normas e os valores da religião e da cultura, assinaladas pelo Criador a cada homem e a toda a humanidadrquer no seu conjunto quer em suas natuarais ramificações” (5). Em documentos posteriores repetirá a mesma doutrina em fórmulas concisas, mas não menos expressivas, como por exemplo: “O homem, longe de ser o objecto e um elemento passivo da vida social, é, pelo contrário, e deve ser e permanecer, seu sujeito, seu fundamento e seu fim” (6). Pio XII, ao prôpor esta doutrina não só enfrenta os totalitarismos, que alcançam a máxima virulência no início e ao longo do seu pontificado, mas também a um processo geral da sociedade actual, onde a pessoa está em perigo cada vez maior de ser absorvida pelo Estado e pelas grandes organizações sociais, dando lugar a esse fenómeno geral de despersonificação que agudamente comenta na sua mensagem de Natal de 1952.

João XXIII, em suas duas grandes encíclicas, recolhe quase ao pé de letra esta mesma doutrina. Na MATER ET MAGISTRA diz: “ O princípio capital, sem dúvida alguma, desta doutrina afirma que o homem é necessariamente fundamento, causa e fim de todas as instituições sociais; o homem, repetimos, enquanto é sociável por natureza e foi elevado a uma ordem sobrenatural. Deste transcendental princípio, que afirma e defende a sagrada dignidade da pessoa, a Santa Igreja, com a colaboração de sacerdotes e seculares competentes, deduziu, principalmente no último século, uma luminosa doutrina social. E a PACEM IN TERRIS começa estabelecendo como base de toda a convivência social e de toda a doutrina política, nacional e internacional, desenvolvida ao longo da Encíclica, um princípio semelhante: “ Em toda a convivência humana bem ordenada e proveitosa há que estabelecer como fundamento o princípio de que todo o homem é pessoa, isto é, natureza dotada de inteligência e livre arbítrio, e que, portanto, o homem tem por si mesmo direitos e deveres, que dimanam imediatamente e ao mesmo tempo de sua própria natureza” (7).

O Concílio Vaticano II consagra solenemente esta doutrina, colocando a dignidae e vocação da pessoa humana como base de toda a sua exposição sobre “a presença da Igreja no mundo actual” na GAUDIUM ET SPES. “É a pessoa do homem diz já no fim do prólogo - que há que salvar. É a sociedade a que há que renovar. É, por conseguinte, o Homem; mas o homem todo inteiro, corpo e alma, coração e consciência, inteligência e vontade, quem centrará as explicações que vão a seguir” (8). “Crentes e não crentes estão geralmente de acordo neste ponto: todos os bens da terra devem ser ordenados em função do homem, centro e cimo de toods eles” (9). E, falando directamente da comunidade ou sociedade humana, repetirá com os documentos anteriores da Igreja: “A índole social do homem demonstra o desenvolvimento da pessoa humana e o crescimento da própria sociedade estão mutuamente condicionados. Porque o princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições sociais é e deve ser a pessoa humana, a qual, por sua mesma natureza, tem absoluta necessidade da vida social” (10). O Concílio, sublinha através de toda a sua disposição, que se trata da pessoa humana, do homem, não no abstracto, mas em função da sua condição actual na sociedade contemporânea, com indica o título do primeiro capítulo preliminar: “a situação do homem no mundo de hoje” (11).

Paulo VI, na sessão de encerramento do Concílio (07.12.1963), num dos discursos mais brilhantes de seu pontificado, analizou bela e profundamente o Humanismo da Igreja e do Concílio, que, em definitivo, não foi outra coisa que uma promoção do homem moderno, um acto de serviço da Igreja à humanidade contemporânea.

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5. - As Declarações de direitos e deveres da Pessoa na Doutrina da Igreja.

Um dos fenómenos sociais e políticos que tem sido mais determinantes na marcha da sociedade moderna é, sem dúvida, o processo histórico das chamadas Declarações dos Direitos do Homem, principalmente desde a Declaração da independência da América (1776) e a Revolução Francesa (1789) até à mais famosa entre as recentes, a da ONU (1948). O seu conhecimento, ainda que só seja sumário, tem muita importância para compreender o sentido e alcance das similares declarações de direitos fundamentais da pessoa que encontramos na doutrina da Igreja.

Pio XI, na encíclica Divini Redemptoris, começando a sua síntese da doutrina social cristã frente ao comunismo, ao apresentar sinteticamente a doutrina do Homem, dá-nos um brevíssimo e tímido catálogo dos direitos fundamentais do homem, que não tem, contudo, o ar de uma verdadeira declaração de direitos, ainda que certamente, tanto neste documento como na Quadragesimo Anno , não deixa de ir assinalando e estudando os principais direitos fundamentais da pessoa.

A primeira declaração propriamente dita de direitos da pessoa dentro da doutrina oficial da Igreja encontramo-la num dos fundamentais discursos de Pio XII, o do Natal de 1942. Ainda que breve e dentro do contexto geral do discurso, tem toda a solenidade e profundidade duma declaração fundamental, que, contudo, passou um pouco inadvertida. Diz “Quem deseje que a estrela da paz apareça e se detenha sobre a sociedade, contribua com a sua parte a devolver à pessoa humana a dignidade que Deus lhe concedeu desde o princípio; opondo-se à excessiva aglomeração dos homens, quase à maneira de massas sem alma; a sua inconcistência económica, social, política, intelectual e moral; a sua falta de sólidos princípios e de fortes convicções; a sua volubilidade; favoreça com todos os meios lícitos, em todos os campos da vida, formas sociais que possibilitem e garantam uma plena responsabilidade pessoal tanto na ordem do terreno como na ordem eterna; apoie o respeito e à prática realização dos seguintes direitos fundamentais da pessoa: o direito a manter e desenvolver a vida corporal, intelectual e moral; e particularmente o direito a uma educação e formação religiosa; o direito ao culto de Deus privado e público, incluída a acção caritativa religiosa; o direito, em princípio, ao matrimónio e à consecussãodo seu próprio fim; o direito à sociedade conjugal e doméstica; o direito a trabalhar, como meio indispensável para o manter da vida familiar; o direito à livre eleição de estado; por conseguinte, também do estado sacerdotal e religioso; o direito a um uso dos bens materiais consciente de seus deveres e das limitações sociais.

Esta declaração, que parece uma simples enumeração de direitos, há que entendê-la em função da inexgotável doutrina de Pio XII, que em múltiplas vezes explicou, cada um dos direitos fundamentais que aparecem na sua declaração, juntando inclusivé algum direito novo importante, como no caso da opinião pública (17.02.1950) e da participação na vida pública (Natal de 1944).

Apesar das intervenções de seu predecessor, foi sobretudo João XXIII quem apresentou ao mundo, em nome da Igreja, uma declaração dos direitos fundamentais da pessoa humana como fundamento de toda a sua doutrina social e política. O texto, como nenhum outro anterior da Igreja, mereceu a atenção entusiasmada de toda a humanidade; incluíndo crentes e não crentes. Toda a primeira parte da Encíclica PACEM IN TERRIS não é mais que a apresentação e justificação ampla e detalhada, com o estilo inconfundível do seu autor, dos direitos e deveres da pessoa humana tal como os concebe hoje a Igreja, fundando-se, contudo, não na Revelação divina, para falar a “todos os homens de boa vontade”. Neste documento, João XXIII alude explicitamente tanto ao fenómeno moderno já indicado, da inclusão dos textos constitucionais de declarações de direitos, como à famosa declaração dos últimos tempos, a da ONU, da qual faz um significativo elogio (ainda que discretamente velado por alguma reserva (ns. 75.79...).

O Concílio Vaticano II, na Constituição GAUDIUM ET SPES, deixou-nos também uma enumeração breve dos principais direitos fundamentais da pessoa (12). Mas nem pelo contexto, nem pelo conteúdo, nem pela forma se apresenta como uma declaração completa dos direitos, muitos dos quais vêm referidos noutros capítulos ou números, sem plano de conjunto, sem pretensão de catalogação.

António José Ribeirinha Barreleiro

 
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Notas

(1) Cfr. Immortale Dei: DP n.8 p. 199 ss; Libertas: DP n.9 p.235 ss.

(2) Cfr. Rafael Gonzaléz Moralejo, enseñanza de la encíclica Rerum Novarum y oportuno desarrollo en el magisterio de Pio XI y Pio XII, en comentários a la Mater et Magistra, BAC, Madrid 1963, pg. 123 ss.

(3) Cfr. Id. pag. 129.

(4) Mit brenender sorge: DP n.35, pag. 659; Divini Redemptoris: DS n. 27-30 pag. 685 ss.

(5) DP n.9 pag.843.

(6) Mensagem de Natal 1944.

(7) Cfr. P.in T., n.9

(8) Cfr. Concílio Vaticano II, Constituição Pastoral Gaudium et Spes n.13.

(9) Ibd. n.12.

(10) Ibd. n. 25.

(11) Ibd. n.4.

(12) Cfr. Vat.II - G.S. n.26.

 



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