O.CADERNOS DO ISTA, 5

Agustina e Duras:
COMOVER-SE COM A VIDA
OU DESESPERAR
ALEGREMENTE DELA (1)

José Augusto Mourão





Je pense que la charité est impossible sans la justice, et la justice se déforme sans la charité.
E. Levinas

O mundo não nos deve nada culturalmente, porque não houve ênfase, nem excesso, nem teatralidade na nossa História. Deve-nos costumes e uma certa brisa da civilização que é a sensibilidade e a compaixão. A teoria da compaixão parece adaptar-se à índole dos portugueses. Um espírito lânguido e corajoso para suportar os outros, que é muito mais do que amar os outros.
Agustina Bessa-Luís

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Vou partir da tese que resume a obra de Werner Marx: “a força do compadecer é a medida do agir responsável” (1). Este ponto de partida, a alguma distância da teleologia aristotélica, permite colocar a questão de saber se é possível mostrar que o “poder-compadecer” é de facto uma força, uma virtude em que se manifestam o reconhecimento, a compaixão e o amor do próximo. Reflecte a literatura a força da compaixão? Esta é a questão a que vou tentar responder, convocando a terreiro duas grandes escritoras do nosso tempo. Agustina e Duras são dois nomes para sempre ligados à paixão da escrita e à descrição das paixões humanas. “O coração humano não vive sem paixões. Nem que sejam mesquinhas e pobres, elas impedem a podridão da vontade e estimulam o génio criador que também existe no próprio conjunto das dependências em que se move o povo” (2). Agustina criou desde A Sibila (1954) um universo romanesco inconfundível na novelística portuguesa da segunda metade do nosso século, com uma visão extremamente barroca que A. M. Machado define muito resumidamente “por uma laboriosa descoberta do ser e do estar no mundo temporal” (3). A obra de Agustina move-se em torno das paixões: “A maneira de precaver o mistério contra a erosão das experiências chama-se paixão” - lê-se num capítulo do romance As Categorias (1970), inteiramente dedicado ao estudo das paixões humanas e à paixão do conhecimento em particular. A obra de Marguerite Duras é exploração dos extremos, do amor e do silêncio, do desejo e da fruição, da ausência e da morte, do escândalo duma escrita que não recua diante de nenhuma transgressão (4). Em que medida Agustina e Duras comparecem a esta configuração desorbitada da forma de vida cristã que é a compaixão? Trata-se de duas personalidades fortes, duas “vozes da Sibila”, acima do medo do escândalo, acima dos ódios mais acerados ou dos amores mais sem-razão dos críticos e dos leitores. Duras não tem pejo nenhum em dizer: “Je suis hors de toute censure, Oui, je pense, j´espère. Même par exemple, parler de Dieu, employer ce mot... Dans Le Camion , je tiens la place de Dieu.” (72, p. 55). Trata-se de personagens que também, por razões diferentes, romperam com o horizonte mágico, religioso, sacrificial, da prática cristã. Aparentemente, nada as aproxima, uma radical, a outra conservadora. Uma veste-se de um tom de raro e positivo humanismo, a outra veste-se do sol da melancolia e do desespero. Mas algo as une, para além de um estilo de escrita inconfundível e incomparável, entre dois extremos: um, barroco, prodigioso, torrencial, sapiencial, outro pobre, ao contrário do espectáculo verboso ou narrativo, mas laminar, fulgurante como um fio de espada, intenso, lancinante. Para além do estilo, qualquer delas tende a passar do estatuto de ficcionista para o estatuto de “maitre à penser”, embora, como sublinhou E. Prado Coelho, qualquer delas habite uma “pensée sans maître” (5). Duras é quase autobiográfica sempre, Agustina retira-se por trás dos grandes enredos, da grandiloquência aforística. Há mais do que uma diferença e uma distância entre elas, que comunicam entre si através de uma comum atenção às formas de miséria, de abjecção, de exclusão, de deformação, de desespero, do insuportável. Maurice Blanchot e M. Duras fazem parte de uma geração marcada por um silêncio intolerável: o de Auschwitz, o dos campos, o do massacre judeu. Robert Antelm, o marido de Marguerite Duras foi deportado, trazido meio morto dos campos de concentração. São dele estas palavras: “Dans l´enfer, on dit tout, ce doit être d´ailleurs à cela que nous, nous le reconnaissons”. Duras apresentou o seu filme Le camion como um filme político, um meio de dar a palavra às mulheres, aos emigrantes: “Chaque fois que vous voyez un camion, c´est une parole de femme qui passe.” Acima de tudo, o que liga estas duas mulheres é o topos da paixão. O tema da paixão, que comunica com um outro, o do desejo e, no seu extremo, o tema da morte e depois, ainda, o de Deus. Ora, a paixão é a figura da impossibilidade , uma não-relação : “como é que a paixão se alojou nesta tragédia - foi uma tragédia, a paixão é sempre-, como é que chegou a viver-se como uma paixão, detestando sob essa definição, a de detestar? Não sei, a paixão passava por aí, pelo detestar o corpo da mulher (entrevista a Gilles Costaz, “Le Matin”, 14/11786). Agustina , na sua imensa sabedoria, dirá simplesmente: “o nosso tempo desperta a compaixão porque lhe falta a paixão” (6). Nem Duras nem Agustina se situam no horizonte prometaico das Luzes, ou nesse outro horizonte, imanentista, do modernismo. Há n´ Os Incuráveis uma figura de pobre que se arrasta de um lado para o outro da estrada sobre joelheiras de pneu, pedindo esmola. É a Perdiz:

“A Perdiz (...) abriu desmedidamente os seus olhos de caranguejo, pôs-se a coçar as pústulas das pernas, que pareciam decepadas e à parte da sua existência - troncudas, lazarentes, mortas” (7).

Compare-se esta personagem com a mendiga de Duras em O Vice-Cônsul, sem nome e sem rosto, que cristaliza algo das representações actuais da pobreza e do recalcamento:

“A rapariga comprime o pé, os parasitas saem, verte a água cinzenta e trata o pé....O pé está cheio de chumbo, sobretudo depois das paragens, mas ela não sofre. Levanta-se, olha as portas. Do interior da vivenda chega o barulho das vozes. Regressar a Battambang, voltar a ver essa magra, a mãe. Ela bate nas crianças. Foge-se pelos taludes. Ela grita. Chama para distribuir o arroz quente. Os seus olhos choram no fumo. Voltar a vê-la antes de crescer, uma vez, antes de partir de novo e talvez morrer, voltar a ver essa cólera.” (O Vice-Cônsul , p. 49). Depois do Vice-Cônsul a experiência da escrita de Duras vai ainda mais longe: há apenas restos, mulheres estéreis, silêncios, lugares inabitáveis, personagens uniformes, sem nome, já mortos em vida, fora-da-dor. fora-do-tempo, afogados num desejo circular quase exangue.

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(1) Cf. Jean Greisch, “De la pluralité des mondes”, in “Le Supplément”, nº 200, mars 1997, p. 191.

(2) A Crónica do Cruzado Osb , p. 145.

(3) Álvaro Manuel Machado, A novelística portuguesa contemporânea , Biblioteca Breve, Instituto de Cultura Portuguesa, 1977, p. 65

(4) Aliette Armel, Marguerite Duras et l´autobiographie , Le Castor Astral, 1990, p. 154.

(5) Eduardo Prado Coelho, “Agustina: uma compaixão sem amor”, Expresso , 9 de agosto de 1996, 38-R.

(6) ABL, Estados Eróticos de Soren Kierkegaard , Guimarães Editores, 1992.

(7) ABL, Os Incuráveis, II, p. 122.

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