SILVESTRE PINHEIRO FERREIRA, O VIAJANTE SOMBRA (2)

Mais adiante, começam a surgir nomes. Detenho-me em Silvestre Pinheiro Ferreira. Reconheço o nome, passei por ele algumas vezes de raspão, associado a aspectos interessantes - o suficiente para me ficar em memória, apesar de não ser dos que me tenho ocupado. Aqui se diz que, exilado por motivos político-culturais, fora acolhido por António de Araújo de Azevedo, «chefe virtual dos afrancesados até 1807» (Dias, 1980, p.423).

António de Araújo de Azevedo, que foi referido por Latino Coelho nas suas notas biográficas sobre José Bonifácio de Andrade e Silva, referência da qual apresento também uma passagem: «Em uma carta autografada, que tivemos em nosso poder, e foi dirigida por José Bonifácio nos primeiros anos deste século a um ministro seu amigo e favorecedor, António de Araújo e Azevedo [1], queixava-se amargamente o ilustre mineralogista das contradições que lhe tornavam desagradável o cargo professoral, que exercia na universidade de Coimbra, e lhe tolhiam a acção útil e eficaz nos seus ofícios de intendente das minas e superintendente das matas e sementeiras» (cf. Coelho, 1877, p.382). E, mais adiante, Bonifácio acaba por referir a amizade antiga que os ligava (Coelho, 1877, p.383).[2]

Os autores da obra Os primórdios... adiantam também que António de Araújo de Azevedo deixara o país, pela primeira vez, via Londres, para representar Portugal nos Países-Baixos, em 7 de Junho de 1789, e que voltara a estar efemeramente em Lisboa, nos primeiros meses e no verão de 1801. Referem ainda, e citando texto de uma carta do Dr. António Joaquim Pegado, recém-chegado de Londres, para D. João de Almeida de Melo e Castro, embaixador de Portugal em Inglaterra, datada de 12 de Setembro de 1800, que Araújo e Brito[3] tinham protegido os «secretários dos clubes de Lisboa» e que tinham sido soltos os que Manique havia preso.

No mesmo documento, o nome de Silvestre Pinheiro Ferreira é também citado: « um célebre Silvestre[4], membro de uma sociedade que foi há seis anos dispersa em Coimbra, cujo primordial instituto foi revolucionar Portugal dentro de dez anos». A carta diz mais, em meu entender: Silvestre e um outro (Sequeira)[5] tinham ido em companhia dos secretários dos clubes de Lisboa, protegidos por Araújo e Brito, para França.

Graça e J.S. da Silva Dias interpretaram de forma diferente o excerto da carta de Pegado a Melo e Castro.[6] Em primeiro lugar, consideraram que o autor se referia sempre à mesma ocasião de fuga. No meu entender, e também com apoio em mais  dados, é possível identificar no texto dois momentos distintos: um em que Silvestre Pinheiro Ferreira sai para França, antes da dissolução da sociedade revolucionária em Coimbra, que deverá ter sido realizada em 1794 ou 1795, e outro na sequência da busca à sua residência em 1797. Em segundo lugar e de forma complementar, tomaram o «em companhia deles» como  a companhia de Araújo e/ou Brito, e este pressuposto levou a que nada batesse certo com nada, quando a consideração de uma quarta hipótese[7] - a de que Silvestre e Sequeira saiam com os secretários dos clubes de Lisboa -  podia ter indicado um caminho possível.

Deste modo, e partindo do facto de que Sequeira é Joaquim Pedro Fragoso da Mota de Sequeira, como este saiu em 1790 para França, com José Bonifácio e Manuel Ferreira da Câmara, para uma viagem de «aperfeiçoamento técnico», então José Bonifácio e Ferreira da Câmara deveriam ser os secretários protegidos por António de Araújo e Azevedo e Francisco Maria de Brito, e no grupo viajava mesmo um quarto elemento – Silvestre Pinheiro Ferreira.

Em síntese:

   -   Silvestre é Silvestre Pinheiro Ferreira;

   -  Sequeira é Joaquim Pedro Fragoso da Mota de Sequeira;

   -  Os secretários dos clubes de Lisboa são José Bonifácio e Ferreira da Câmara;

   - Silvestre saiu com Sequeira que saiu com Bonifácio e Câmara, para França, em 1790;

   - O grupo saiu de Portugal sob ameaça de suspeitas: Bonifácio e Câmara presos por Pina Manique, Silvestre ligado a uma associação subversiva e revolucionária, Sequeira, uma incógnita;

   - O quarto homem pode ter seguido o mesmo destino do trio oficial, a partir de França, ou destino diferente;

   - Silvestre Pinheiro Ferreira deve ter voltado a Portugal por volta de 1797 (Câmara e Sequeira por sua vez parece que regressaram em 1798); com a residência vasculhada, não permanecem dúvidas de que continuava a ser persona non grata. E volta a fugir. Penso que é este segundo momento de evasão a que se refere o autor da carta quando diz: «Este homem fugiu daqui, foi acolhido em Holanda por Araújo, e agora vai ser segundo secretário e oficial de secretaria de Estado». António de Araújo só vem a Lisboa em princípios de 1801, portanto em 1797 ainda está no estrangeiro. Este mesmo facto é avançado por Graça e J.S. da Silva Dias, quando afirmam: «As buscas em Coimbra foram em 1797 e atingiram a residência de Pinheiro que em seguida emigrou, via Londres, de onde por conselho e recomendação do abade Correia da Serra se dirigiu a Haia e daí a Paris, ao encontro de António Araújo, a cujo patrocínio ficou a dever o provimento como secretário da legação de Portugal em Paris e logo em Haia» (Dias, 1980, p.425).

   A hipótese de que não eram três mas quatro os homens que saíram de Portugal, em 1790, rumo à França, carece de maior confirmação. Seria necessário apurar se efectivamente «Sequeira» é Joaquim Pedro Fragoso de Sequeira, e se José Bonifácio e Manuel Ferreira da Câmara foram os presos de Manique e os protegidos de António Araújo e Francisco Maria de Brito. Sem esses dados adquiridos, tudo não passa de mera conjectura, com maior ou menor grau de concordância e razoabilidade. O facto de José Bonifácio confessar uma amizade de longa data com o primeiro, e Latino Coelho o declarar seu protegido, pode aumentar a suspeita de se tratar de uma hipótese verdadeira.

   A confirmar-se a hipótese então surgem as perplexidades: como é que um homem que tem a protecção do chefe dos afrancesados, combate no batalhão académico as tropas invasoras de Napoleão e mantém a proximidade conhecida com os representantes máximos do «ancien regime», em Portugal, primeiro, e depois no Brasil? E como é que esse mesmo homem se transforma depois no patriarca da independência da antiga colónia portuguesa?

   Tal como estas, outras questões que coloco não parecem ser de resposta mais fácil: porque é que se omitiu a presença de Silvestre Pinheiro Ferreira nas fontes oficiais da época? Por outras palavras, porque é que as entidades da época «apadrinharam», oficializando a saída de Bonifácio e Câmara, e não o fizeram com Silvestre? Qual foi o verdadeiro papel de Sequeira no grupo? E por último: porque é que ninguém fala do viajante sombra, passados tantos anos após os acontecimentos, o tempo suficiente para não criar embaraços, como por exemplo no  Elogio histórico de José Bonifácio de Andrada e Silva da autoria de Latino Coelho em 1877?

BIBLIOGRAFIA

 ALVES, Helena (1996) – Rotas do Minério. In Miguel Rego (coord.) – Mineração no Baixo Alentejo, Câmara Municipal de Castro Verde. 

ANDRADE, A. A. Soares de (1998) – A Mineralogia de Abraham Gottlob Werner (1750 – 1817) nas “Prelecções Filosóficas” de Silvestre Pinheiro Ferreira (1769 – 1846). “Boletim HFCT”, N.º1, Dezembro, Ano 2. 

ANDRADE, Ernesto de Campos* (1932) – Memórias do Conde do Lavradio, D. Francisco de Almeida Portugal, comentadas pelo Marquês do Lavradio, D. José de Almeida Correia de Sá. Parte primeira (1796 a 1833), vol. I. Coimbra.

* coordenador 

ARAÚJO, Ana Cristina Bartolomeu (1993) – As invasões francesas e a afirmação das ideias liberais. In José Mattoso (dir.) – História de Portugal. Quinto volume. O Liberalismo (1807-1890). Lisboa, Círculo de Leitores. 

BENSAUDE-VINCENT, Bernadette & STENGERS, Isabelle (1996) – História da Química. Lisboa, Instituto Piaget. 

CARNOT, Ad. (1882) – Les laboratoires de l’école nationale des mines. In Fremy (dir.) – Encyclopédie chimique. Paris, Dunod, Éditeur. 

COELHO, José Maria Latino [1877] – Elogio histórico de José Bonifácio de Andrada e Silva. In Edgard de Cerqueira Falcão (comp.) – Obras Científicas, Políticas e Sociais de José Bonifácio de Andrada e Silva, vol III. Santos, 1964. 

DIAS, Graça da Silva & J.S. da Silva (1980)  Os Primórdios da Maçonaria em Portugal. vol I, tom.I. Lisboa, INIC. 

FOURCY, A.(1828) – Histoire de l’école polytechnique. Paris, chez l’auteur, a l’école polytechnique. 

MENDES, H. Gabriel (1978) – A abertura e exploração da mina de azougue de Coina, no final do século XVIII, em duas plantas da mapoteca do Instituto Geográfico e Cadastral. Separata da “Revista da Universidade de Coimbra”, vol XXVI, Coimbra. 

SILVA, António Delgado da (1860) – Colecção da Legislação Portuguesa, desde a sua última compilação das ordenações, redigida pelo Desembargador António Delgado da Silva, Ano de 1791 a 1801. Lisboa, na Tipografia de Luís Correia da Cunha. 

SILVA, António Delgado da (1847) – Suplemento à Colecção da Legislação Portuguesa, do Desembargador António Delgado da Silva, pelo mesmo ano de 1791 a 1820. Lisboa, na Tipografia de Luís Correia da Cunha. 

SILVA, Inocêncio Francisco da Silva (1860) – Dicionário Bibliográfico Português. tom. IV e tom.V. Lisboa, Imprensa Nacional. 

SILVA, José Bonifácio de Andrada e Silva [1819] – Discurso histórico. Recitado na sessão pública de 24 de Junho de 1819. In Edgard de Cerqueira Falcão (comp.) – Obras Científicas, Políticas e Sociais de José Bonifácio de Andrada e Silva, vol I. Santos, 1964. 

SOUSA, Luís Pinto de [1790] – Instrução (Documento III: instruções do ministro Luís Pinto de Sousa, relativas à viagem de aperfeiçoamento técnico através da Europa). In Edgard de Cerqueira Falcão (comp.) - Obras Científicas, Políticas e Sociais de José Bonifácio de Andrada e Silva, vol III. Santos, 1964. 

.........NOTAS

[2] A carta em questão foi escrita por José Bonifácio, em 4 de Janeiro de 1806, a António de Araújo e Azevedo, na altura ministro dos Negócios Estrangeiros, que o foi desde 1804 a 1807, até à partida da corte para o Brasil (Araújo, 1993, p.22).

[3] Francisco José Maria de Brito, diplomata de carreira, literato e amigo de Araújo, durante algum tempo em Lisboa. Chegou pelos fins de Novembro de 1795 e partiu pelos meados de Agosto de 1796. Brito voltou a estar em Portugal de Setembro de 1797 a 15 de Abril de 1801, quando embarcou para França, na companhia de António de Araújo, regressando este em Julho e ficando, pelo seu lado, até Junho de 1803 (Dias, 1980, p.425)

[4] Graça e J.S. da Silva Dias identificaram-no como Silvestre Pinheiro Ferreira, que terá fugido na sequência de buscas realizadas na sua residência em Coimbra em 1797 (Dias, 1980, p.425)

[5] Identificado pelos mesmos autores como sendo, provavelmente, Joaquim Pedro Fragoso da Mota de Sequeira (Idem, Ibidem, p.425)

[6] A transcrição completa do excerto da carta de Pegado a Melo e Castro é: «O duque [de Lafões] tem o maior ascendente. Nada lhe obsta ao que ele se propõe deveras. Sobre ele só têm influência o Stockler e todos os suspeitos de jacobinismo. Araújo e Brito protegeram os secretários dos clubes de Lisboa; foram soltos os que Manique havia preso. Sequeira foi em companhia deles para França, assim como um célebre Silvestre, membro de uma sociedade que foi há seis anos dispersa em Coimbra, cujo primordial instituto foi revolucionar Portugal dentro de dez anos. Este homem fugiu daqui, foi acolhido em Holanda por Araújo, e agora vai ser segundo secretário e oficial do Estado» (Idem, Ibidem, p.425)

[7] As outras três hipóteses, em meu entender, colocadas por Graça e J.S. da Silva Dias foram: 1.ª - saída com Araújo e Brito - excluída, porque Araújo e Brito, de 1789 a 1801 só se encontraram em Portugal nos primeiros meses desse último ano; 2.ª - saída com Araújo - excluída, porque Araújo saiu em 1789; 3.ª - saída com Brito – excluída, porque Brito só esteve em Portugal de fins de Novembro de 1795 a meados de Agosto de 1796, e depois de Setembro de 1797 a 15 de Abril de 1801, altura em que embarcou com António Araújo para França. 


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