SILVESTRE PINHEIRO FERREIRA, O VIAJANTE SOMBRA (1)

« Silvestre Pinheiro Ferreira (1769 -1846) nasceu em Lisboa e em Lisboa morreu » pareceu-me a maneira mais adequada de iniciar o tema sobre este viajante.  A. Soares de Andrade introduziu assim mesmo a figura do autor das Prelecções Filosóficas, no seu artigo publicado no primeiro número do “Boletim de História e Filosofia da Ciência e da Técnica” e eu limito-me a transcrevê-lo. Uma ironia, esta, o abordarmos a pessoa por aquilo que menos a caracterizou. No caso de Silvestre Pinheiro Ferreira a coincidência no local de nascimento e morte só indica exactamente isso; o resto da sua vida, em boa parte, passou-o de lugar em lugar. E continuo a citar Soares de Andrade: «pelo meio estudou nos Oratorianos, foi professor no Colégio das Artes, escapou a uma provável prisão por motivos ideológicos, viajou pela Inglaterra, Holanda, França, Rússia e Alemanha, foi diplomata em Haia e em Berlim (onde escutou os filósofos Fichte e Schelling e os naturalistas Karsten e Werner), acompanhou, como conselheiro do Rei, a corte de D. João VI no Brasil[1] (na sequência das Invasões Francesas), regressou a Portugal (onde foi Ministro dos Negócios Estrangeiros), retornou a Paris (como estudioso e publicista) e voltou finalmente a Portugal (onde foi deputado e publicista) ».

Uma vida conturbada e «viajada» por sua vez não constitui facto que mereça uma menção particular. Nessa época muitos outros a tiveram assim: a grande transformação em França e os seus ecos em Portugal,  a fuga da família real e respectivo séquito para o Brasil, as invasões, as lutas entre liberais e absolutistas, tudo isto afectou de forma impiedosa a geração que, grosso modo, era jovem na Revolução Francesa, envelhecida nas guerras e extinta antes da paz se estabelecer no nosso país.

Mas a notoriedade de Silvestre Pinheiro Ferreira é um facto, e dela diversos autores se têm ocupado. Considerado um dos mais eminentes pensadores luso-brasileiros, destacou-se no Brasil como doutrinador jurídico, onde as suas reflexões sobre a ordem democrática e os direitos do Homem tiveram boa receptividade junto dos que elaboravam a Constituição da jovem nação (Andrade, 1998, p.27). Outros factos se podem acrescentar, evidenciando a sua capacidade «doutrinadora» e persuasiva em outras pessoas: nas suas Memórias, o Conde do Lavradio, D. Francisco de Almeida Portugal confessava que no Brasil tinha tido por mestre Silvestre Pinheiro Ferreira, na altura Conselheiro de Embaixada[2]; João Maria Leitão (Gavião, 1819 - Lisboa, 1870), o eminente engenheiro, ao que tudo indica, responsável pela (re)descoberta das minas de S. Domingos[3], foi a seu conselho estudar para a Escola de Minas de Paris, quando ainda jovem fazia o curso na Marinha, ao que se seguiu um tirocínio prático de mineração na Saxónia, Boémia e outros pontos da Alemanha.[4]

Muitos outros factos notáveis se podem certamente reunir a esta insigne personalidade, mas não é por eles que me detenho na figura de Silvestre Pinheiro Ferreira.

O motivo que me leva a abordar a pessoa em causa não tem tanto a ver com a objectividade das suas realizações, mas mais com a subjectividade das fontes que a elas nos conduzem. E trato um caso extremo, um exemplo de como as fontes nos podem ocultar factos, em vez de revelar: em minha opinião, e até prova em contrário, Silvestre Pinheiro Ferreira acompanhou os bolseiros do Estado português (senão na totalidade, pelo menos na fase inicial do percurso), que num período aproximado de dez anos percorreram a Europa, de Norte a Sul, em formação científica e técnica no âmbito da mineração e metalurgia. Os bolseiros eram três: José Bonifácio de Andrade e Silva, Manuel Ferreira da Câmara e Joaquim Pedro Fragoso da Mota de Sequeira, assim reza a história. Mas o que as fontes não revelam, pelo menos as mais directas, é que a acompanhar este pequeno grupo seguia discretamente uma quarta personalidade.

A viagem de aperfeiçoamento técnico
Foi em Junho de 1790 que a viagem ordenada pela rainha D. Maria I, levou de Portugal para vários países da Europa, os três naturalistas Manuel Ferreira da Câmara Bettencourt e Sá (Minas Gerais, 1762 – Baía, 1835)[5], Joaquim Pedro Fragoso da Mota de Sequeira (Portalegre,? – Lisboa, 1833)[6] e José Bonifácio de Andrade e Silva (S. Paulo, 1763 – Rio de Janeiro, 1838), a fim de aprofundarem os seus conhecimentos nas Ciências Naturais, principalmente nos ramos da química, mineralogia e montanística.[7]

Segundo Latino Coelho, a escolha de José Bonifácio foi baseada numa recomendação do Duque de Lafões (Coelho, 1877, p.337). Na falta de informação, considerei que os outros dois seguiram um processo idêntico.

O destino dos viajantes estava traçado nas instruções assinadas pelo ministro dos negócios estrangeiros e da guerra, Luís Pinto de Sousa Coutinho: para a cidade de Paris, em primeiro lugar, para frequentar, durante um ano, os «cursos preparatórios»: o de química de Fourcroy, e o de mineralogia docismática de Lesage.

Manuel Ferreira da Câmara era, no mesmo documento, nomeado «chefe de brigada», com o encargo de « decidir do tempo dos estudos e das viagens, do destino de cada um dos sócios, e dos sítios aonde devem empregar-se »; eram dadas também indicações para o grupo se apresentar aos ministros da Coroa portuguesa, em todas as Cortes por onde transitassem e onde estes existissem, para que fossem por eles protegidos e recomendados na forma de ordens. A estes ministros era igualmente incumbido o dever de fornecer os fundos necessários às aquisições de «livros da profissão, máquinas e modelos», para serem remetidos à Corte de Lisboa.

Com o curso de mineralogia docismática de Lesage, director da Escola de Minas de Paris, o grupo encerra a primeira parte do plano de formação. Mas a verdadeira escola prática, mineira e tecnológica não tinha residência na «cidade das luzes»[8]; o passo seguinte é dado nesse sentido – os três naturalistas seguiram assim para a famosa Academia de Freiberg, à qual acorriam alunos oriundos tanto da Europa como da América, para assistirem às lições de Abraham Gottlob Werner (1750 – 1817), considerado o fundador da mineralogia sistemática, e venerado «como oráculo na ciência mineralógica» (Coelho, 1877, p.338). Deixavam para trás Paris e a formação em química, bebida numa das mais idóneas fontes: Antoine François de Fourcroy (1755 – 1809) colaborador, junto de Lavoisier, Guyton de Morveau e Berthollet, na criação de uma nomenclatura moderna para a química.[9]

Bonifácio, Câmara e Fragoso frequentaram o curso de Werner de orictognosia, geognosia e montanística. Assistiram igualmente ao de Lempe, de matemáticas puras e aplicadas, com especial incidência na teoria de máquinas, de Kohler, que explicava o direito e a legislação de minas, de Klotzch, que demonstrava os ensaios químicos dos minerais, Freiesleben, que regia a química prática, e Lampadius, encarregue da metalurgia (Coelho, 1877, p.338).

Concluída a formação em Freiberg, era «tempo de ir pedir à própria observação da natureza o que os livros, os gabinetes, as lições não podiam completar» (Coelho, 1877, p.338). Começaram então as excursões aos territórios, onde a lavra e tratamento dos minérios era exemplo dos conhecimentos adquiridos. O grupo visita as minas do Tirol, da Stiria, da Carintia. Chegaram a estender o seu itinerário até Pavia, na mira das lições de Volta, e também para Pádua e Turim – onde Bonifácio desenvolveu uma teoria sobre a formação dos montes Euganeos, que se opunha às doutrinas vulcanistas de Ferber, Fortis e Spallanzani, e seguia a tese neptunista de Werner (Coelho, 1877, p.339).

José Maria Latino Coelho, autor que tem sido frequentemente citado, traçou com abundância de pormenores o percurso biográfico de Andrade e Silva. Em meio às suas notas, afirma por exemplo que foi nos países escandinavos, onde existia uma tradição de escola químico-mineralógica, que o reputado naturalista veio a receber o maior estímulo para as suas actividades, através do contacto com a mineralogia de Bergmann, em Upsala, e Abilgaard, em Copenhaga, e da possibilidade de acesso a regiões muito ricas em florestas e jazigos metalíferos. Segundo o autor em questão, foi nesta altura que se iniciou a produção científica de projecção internacional para José Bonifácio de Andrade e Silva, com a memória sobre os diamantes do Brasil, publicada nas actas da Sociedade de História Natural de Paris, e muito citada nos livros de mineralogia. Acrescenta também que foram principalmente as investigações realizadas nos jazigos e nas minas da Suécia e Noruega, em Arendal, Sahla, Krageroe e Langbanshytta, que permitiram a Bonifácio a descoberta de quatro novas espécies mineralógicas, Petalite, Spoduméne, Kryolithe e Scapolithe, e oito minerais, que podiam incluir-se como variedades, muitas delas desconhecidas e importantes das espécies já descritas pelos seus antecessores ou contemporâneos (Coelho, 1877, pp.369 – 370).

José Bonifácio fez uma descrição das espécies em termos exteriores e empíricos, e este facto dará posteriormente aso a alguma confusão entre os que descreveram estas mesmas espécies em termos de caracteres químicos. Mas apesar dos desajustes, nas questões de «paternidade», a que Latino Coelho faz referência, discute e explica em detalhe, o nome de Andrade e Silva ficará definitivamente incorporado no grande edifício da ciência da época, de tal forma que «desde o abade Hauy, o eminente fundador da mineralogia francesa, até aos modernos sábios alemães, clássicos na ciência dos minerais, Naumann e Quenstedt, e aos modernos mineralogistas franceses, entre os quais é Dufrénoy preeminente, o talento português ficou associado aos progressos mineralógicos nos livros estrangeiros de maior autoridade» - é novamente Latino Coelho quem o afirma (p.367).

Andrade e Silva pode desta forma apresentar os seus trabalhos nas mais reputadas publicações consagradas às ciências físicas e naturais, tal como o Jornal de Química de Scheerer, na Alemanha, no Jornal de Minas de França, nas Actas da Sociedade Histórico-Natural da mesma nação, nos Anais de Química de Fourcroy, e no Jornal de Física de Paris (Coelho, 1877, p.368). O brilhantismo de José Bonifácio poderá explicar a falta de referências a possíveis trabalhos igualmente desenvolvidos pelos outros elementos da equipa durante o período probatório europeu. Pouco é conhecido do que Manuel Ferreira da Câmara e Joaquim Pedro Fragoso de Sequeira desenvolveram ou não, a par com a actividade do seu notável colega.[10]

Mas independentemente disso, o facto é que de regresso a Portugal, após tantos anos de viagem, estes três homens detinham um «capital» científico e técnico que os tornava únicos, e indispensáveis à mudança. Terão visto o que de mais importante acontecia no domínio da química e da docismática, da mineralogia e da mineração, por países como a França, a Inglaterra, a Alemanha, Suécia, Noruega – estavam actualizados, e preparados, para efectivar o projecto de desenvolvimento da mineração do Reino. 

Como já foi referido, todos acabaram por ser Intendentes Gerais de Minas, Manuel Ferreira da Câmara no Brasil (1800 - ?), Fragoso de Sequeira (1829– 1832) e José Bonifácio (1801-1819)[11] em Portugal. Os dois primeiros regressaram mais cedo, em 1798; José Bonifácio só voltou em 1800 (Mendes, 1978, p.7). 

NOTAS

[1] D. João era na altura o príncipe regente.

[2] O cargo foi abolido por decreto de 6 de Outubro de 1821 (ANDRADE, 1932, p.76).

[3] Quem o afirma é Helena Alves em “Rotas do Minério”, 1996

[4] Informação retirada do Obituário da “Revista de Obras Públicas e Minas”, Ano I, Tomo I. Lisboa, Imprensa Nacional, 1870. 

[5] Bacharel formado nas Faculdades de Leis e Filosofia pela Universidade de Coimbra; Deputado à Assembleia Constituinte do Brasil em 1823; Senador eleito pela Província de Minas Gerais em 1825 (Inocêncio Silva, tomo V, 1860, p.425)

[6] Há poucos dados a seu respeito. Inocêncio Silva não precisa a data de nascimento, e não tem a certeza do grau de doutor ou bacharel em Coimbra, assim como das faculdades envolvidas (Silva, tomo IV, 1860, p.143). Dos três elementos do grupo foi o que, pelo menos aparentemente, mais afastado permaneceu dos cargos públicos e da política. Foi no entanto bastante activo como académico, redigindo diversas memórias sobre temas ligados à pecuária e à agricultura, que se publicaram nas Memórias Económicas da Academia. Chegou também a ser Intendente Geral das Minas e dos Metais do Reino, mas num período breve, e já na fase final da sua vida.

[7] A data de partida dos que bem podíamos denominar por « três intendentes», porque todos o chegaram a ser (Andrade e Silva  e Fragoso de Sequeira em Portugal, Ferreira da Câmara no Brasil), foi avançada por José Bonifácio no seu “Discurso histórico” recitado na sessão pública de 24 de Junho de 1819 da Academia das Ciências, que não refere a presença de mais ninguém no grupo.

[8] Esta Escola de Minas, criada em 1783, encerrada em 1790, e reorganizada em 1794, funcionava no “Hôtel des Monnaies” de Paris e era composta por dois professores: Sage para a química, docimásia e mineralogia e Duhamel  na física, geometria subterrânea, hidráulica e exploração de minas (Carnot, 1882, p.792). Uma outra fonte referia, para este estabelecimento, a presença de alguns professores e doze alunos  e afirmava que se ensinava a química e a exploração de minerais, mas os conhecimentos veiculados eram puramente teóricos; para a prática, era preciso procurar junto das nações estrangeiras. Os poucos homens que a França possuía, instruídos neste campo, tinham adquirido os seus conhecimentos na Alemanha (Fourcy, 1828, p.9).

[9] Antoine Fourcroy enquadra-se numa geração de químicos-analistas cujas actividades se orientaram, muito particularmente, para o controle de qualidade de materiais e substâncias de interesse imediato para a sociedade, com a correspondente detecção de fraudes, procurando desenvolver os métodos analíticos (Bensaude-Vincent e Stengers, 1996, p.133 e p.154)

[10] H. Gabriel Mendes indica um folheto de Joaquim Pedro Fragoso de Sequeira, escrito em 1797, obra em francês e alemão, intitulado Description abrègè de tous les travaux tant d’Amalgamation, que des Fonderies qui sont actuellement en usage dans les ateliers d’amalgamation et des Fonderies de Halsbruck, prés de Freiberg, etc..., publicado em Dresden em 1800. Um escrutínio realizado nos ficheiros da Biblioteca Nacional permitiu-me localizar cinco títulos para este autor, num deles constando apenas como anotador. Os quatro trabalhos da autoria de Fragoso de Sequeira estão publicados nas Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, e tratam de temas de agricultura e pecuária nacional, não tendo nada a ver, portanto, com as questões mineiras e químico-metalúrgicas do «período europeu».

   Quanto a Manuel Ferreira da Câmara, foram localizados igualmente na Biblioteca Nacional os seguintes títulos: Ensaio de descrição física e económica da Comarca dos Ilhéus na América, de 1789; Observações feitas por ordem da Real Academia de Lisboa acerca do carvão de pedra que se encontra na freguesia da Carvoeira, de 1790, e o Projecto de Constituição para o Império do Brasil. Inocêncio Silva dá indicação de que devem existir ainda mais alguns trabalhos, baseado na informação biográfica feita por Sigaud, e publicada na “Revista do Instituto do Brasil”, tom. IV, p.515-518 (Silva, tom.V, 1860, p.425).

[11] José Bonifácio tinha como ajudante interino, desde 1813, o seu genro, Alexandre António Vandelli. Quando partiu para o Brasil, em 1819, a Intendência ficou a cargo do ajudante Vandelli e do secretário Vicente Pinto de Miranda. (Mendes, 1978, p.9)