Chronica do senhor rei D. Pedro I oitavo rei de Portugal
*PROLOGO*  

Deixados os modos e definições da justiça, que, por desvairadas guisas, muitos em seus livros escrevem, sómente d'aquella para que o real poderio foi estabelecido, que é por serem os maus castigados e os bons viverem em paz, é nossa intenção, n'este prologo, muito curtamente falar, não como buscador de novas razões, por propria invenção achadas, mas como ajuntador, em um breve mólho, dos ditos de alguns que nos aprouveram. Á uma, por espertar os que ouvirem, que entendam parte do que fala a historia; á outra, por seguirmos inteiramente a ordem do nosso arrazoado, no primeiro prologo já tangida.   E porquanto el-rei Dom Pedro, cujo reinado se segue, usou da justiça, de que a Deus mais praz que cousa boa que o rei possa fazer, segundo os santos escrevem, e alguns desejam saber que virtude é esta, e pois é necessaria ao rei, se o é assim ao povo: vós, n'aquelle estilo que o simplesmente apanhámos, o podeis lêr por esta maneira.

Justiça é uma virtude, que é chamada toda virtude; assim que qualquer que é justo, este cumpre toda virtude; porque a justiça, assim como lei de Deus, defende que não forniques nem sejas gargantão, e isto guardando, se cumpre a virtude da castidade e da temperança, e assim podeis entender dos outros vicios e virtudes.  

Esta virtude é mui necessaria ao rei, e isso mesmo aos seus sujeitos, porque, havendo no rei virtude de justiça, fará leis por que todos vivam direitamente e em paz, e os seus sujeitos sendo justos, cumprirão as leis que elle puzer, e cumprindo-as não farão cousa injusta contra nenhum. E tal virtude, como esta, póde cada um ganhar por obra de bom entendimento, e ás vezes nascem alguns assim naturalmente a ella dispostos, que com grande zelo a executam, posto que a alguns vicios sejam inclinados.  

A razão por que esta virtude é necessaria nos subditos, é por cumprirem as leis do principe, que sempre devem de ser ordenadas para todo bem, e quem taes leis cumprir sempre bem obrará, cá as leis são regra do que os sujeitos hão de fazer, e são chamadas principe não animado, e o rei é principe animado, porque ellas representam, com vozes mortas, o que o rei diz por sua voz viva: e porém a justiça é muito necessaria, assim no povo como no rei, porque sem ella nenhuma cidade nem reino pode estar em socego. Assim, que o reino, onde todo o povo é mau, não se pode supportar muito tempo, porque, como a alma supporta o corpo e partindo-se d'elle, o corpo se perde, assim a justiça supporta os reinos e partindo-se d'elles perecem de todo.  

Ora, se a virtude da justiça é necessaria ao povo, muito mais o é ao rei; porque se a lei é regra do que se ha de fazer, muito mais o deve de ser o rei que a põe e o juiz que a ha de encaminhar, porque a lei é principe sem alma, como dissemos, e o principe é lei e regra da justiça com alma. Pois quanto a cousa com alma tem melhoria sobre outra sem alma, tanto o rei deve ter excellencia sobre as leis: cá o rei deve de ser de tanta justiça e direito, que cumpridamente dê ás leis a execução; de outra guisa, mostrar-se-hia seu reino cheio de boas leis e maus costumes, que era cousa torpe de vêr. Pois duvidar se o rei ha de ser justiçoso, não é outra cousa senão duvidar se a regra ha de ser direita, a qual, se em direitura desfalece, nenhuma cousa direita se pode por ella fazer.  

Outra razão por que a justiça é muito necessaria ao rei, assim é porque a justiça não tão sómente aformoseia os reis de virtude corporal, mas ainda espiritual, pois quanto a formosura do espirito tem avantagem da do corpo, tanta a justiça no rei é mais necessaria que outra formosura.  

A terceira razão se mostra da perfeição da bondade, porque então dizemos alguma cousa ser perfeita, quando fazer pode alguma semelhante a si, e portanto se chama uma cousa boa, quando sua bondade se pode estender a outros, ao menos, sequer por exemplo, e então se mostra, por pratica, quanto cada um é bom, quando é posto em senhorio.  

Porém, cumpre aos reis ser justiçosos por a todos seus sujeitos poder vir bem, e a nenhum o contrario, trabalhando que a justiça seja guardada, não sómente aos naturaes de seu reino, mas ainda aos de fóra d'elle, porque, negada a justiça a alguma pessoa, grande injuria é feita ao principe e a toda sua terra.  

D'esta virtude da justiça, que poucos acha que a queiram por hospeda, posto que rainha e senhora seja das outras virtudes, segundo diz Tullio, usou muito el-rei Dom Pedro, segundo vêr podem os que desejam de o saber, lendo parte de sua historia.  

E pois que elle, com bom desejo, por natural inclinação, refreou os males, regendo bem seu reino, ainda que outras minguas por elle passassem, de que penitencia podia fazer, de cuidar é, que houve o galardão da justiça, cuja folha e fructo é honrada fama n'este mundo e perduravel folgança no outro.