FEIJÓ
NATURALISTA BRASILEIRO
EM CABO VERDE NO SÉCULO XVIII (fim)
Maria Estela Guedes e Luís M. Arruda*

QUARTA CARTA

Ilha do Fogo, 1 de Novembro de 1783

Depois de haver concluído a expedição da ilha Brava, para cumprir com as ordens que me havia deixado o Exº Prelado, me fiz transportar para esta Ilha em uma lancha de pau de figueira da terra, de boca aberta de 15 palmos de comprimento, em que a obrigação de obediência me fez arriscar a vida na passagem daquele canal, um dos perigosos destas Ilhas; e no dia 20 de Junho, pelas 2 horas da tarde, fiz dar à vela do porto da Furna, e tendo navegado com o vento Norte e proa de Leste, pelas 12 da noite do mesmo dia surgimos no porto chamado da vila, onde desembarquei na mesma hora; passados 8 dias de descanso, dei princípio à minha obrigação, observando e recolhendo tudo quanto foi possível, e este trabalho foi concluído no fim do mês de Outubro próximo passado, e é, Exmº Sr., o que vai a fazer objecto das seguintes cartas, que fiado na mesma atenção, passo a descrever-lhe.

A seguir, refere a localização geográfica da ilha e dos portos e a sua história topográfica e física.

QUINTA CARTA

Ilha do Fogo, 8 de Novembro de 1783

Neste documento descreve o Pico do Fogo e a Chã da Caldeira, até então não observada nem descrita por alguém, com a história das suas antigas e novas erupções e produções.

O Pico é uma montanha muito elevada, de figura cónica, situado junto à serra da parte de Leste; porém isolado, ou separado da mesma cadeia de montes, que constituem a serra; sua altura da parte da serra é mais baixa do que da parte do mar, que tem uma boa légua, tudo em um plano inclinado desde a sua sumidade até onde lhe chamam Baleia.

A serra, como disse, é a terminação dos montes da ilha, que unidos formam da parte do Pico um como muro a pique, que com a metade da circunferência do mesmo Pico descreve um semicírculo concêntrico, a qual não é separada dele senão por um grande vale, a que chamam Chã da Caldeira; esta tem de uma boca, ou ponta à outra, uma légua quase de comprimento sobre 1/4 de largura, isto é, da serra ao Pico; sua altura é maior do que a do Pico; a figura exterior, ou da parte de Oeste, é como um cone truncado; e sua superfície interior, além de ser a pique, como disse, é irregular.

Esta posição, que se assemelha à de muitos vulcões extintos da Itália, me persuade primeiramente que esta serra e o Pico não eram antigamente mais do que uma só montanha de figura cónica, infinitamente mais vasta, e mais elevada do que não é hoje o mesmo Pico; 2º, que sua sumidade foi levantada por algum fogo subterrâneo donde, vindo abater dentro de si mesmo, tem dado origem a um vale circular, cujo ponto central foi o Pico, de que não resta hoje mais que a meia circunferência que compreende a Chã da Caldeira, e quem sabe se este Pico algum dia virá também a abater, porque está oco no seu interior e passará a formar com as suas paredes uma circunferência, e seu fundo, ou centro, um pequeno lago circular, como tem sucedido em muitos vulcões extintos.

A sumidade deste Pico tem variado conforme as diferentes erupções que tem havido; ali é que está a principal boca daquele vulcão; ela tem uma figura quase elíptica, o seu interior é da figura de um funil, e a cavidade é muito profunda.

Toda a superfície exterior é coberta de pedaços de lava, umas avermelhadas, outras pretas misturadas com cinzas ou escórias de diferentes cores, lançadas pela boca durante as erupções.

"Estas lavas, ou cinzas, têm constituído vários montículos ao pé do mesmo Pico, naquela Chã; tais são os montes chamados de Losna, e outros mais pequenos. Na erupção do ano de 57 (27), este monte foi aberto pelo lado do Lés-Sueste e formou junto à boca outro montículo, ao pé do que chamam Monte de Aipo, outro de igual origem.

"Tem havido algumas erupções violentas, e nelas têm estas bocas lançado pedras incendiadas, com terríveis estrondos, e ribeiras de fogo de pedras derretidas com enxofre, e que chegou a entulhar um grande vale, que havia da parte da Baleia, que não parece que houve ali tal vale, e foi tão abundante e tão forte aquela corrente, que correu até ao mar, onde fez uma ponta comprida, e queimou muitos peixes; e a última erupção foi há 12 anos (28) pouco mais ou menos, em a qual lançou o Pico por alguns dias nuvens de cinza, e com tanta velocidade que chegaram a cair a 40 ou mais léguas (29) ao mar; na Boavista se apanhava a bordo das embarcações em baldes, e as nuvens eram tão negras que fazia grande escuridão na mesma ilha do Fogo; e dizem que estas cinzas eram de diversas cores durante a mesma erupção.

Acha-se também quantidade de enxofre, um puro e outro já decomposto e reduzido a uma terra branca, e no plano da Baleia alguns poços de sal comum procedido de água do mar que o mesmo Pico nas suas erupções tem lançado, e depois coagulado com o calor do sol.

A lava que este vulcão tem lançado em estado de fusão e fluidez, dizem durou por muitos tempos ardente; eu ainda vi da parte do Monte de Aipo um homem escaldar a mão apanhando enxofre, que eu mandava recolher para examinar.

Toda aquela serra, e mais montes da ilha são cobertos de lava e cinza vulcânica, e mesmo muitas colinas, principalmente as chegadas ao Pico e serra; são formados de bancos de cós regulares e irregulares, compostos de lava, e de outros compostos confusamente de pedras de diferentes grandezas e terra solta; estes são de grossura de 2 braças, assentados sobre outros grandes e grossos, brancos, de uma pedra dura, rigíssima, como vidrenta, a que os naturalistas chamam saxum, em que se acham embutidos quantidade de cristais de basaltos pretos, pardos etc. e tudo alterado pela força do fogo.

A formação destes montes, ou colinas, bem reflectida, deixa pensar ser feita pela deposição das águas, porque se os estrados e veios são mais ou menos delgados, à proporção que as cinzas que as compõem foram mais ou menos grossas, e mais ou menos misturadas de grandes ou pequenas pedras, depois, com o tempo, unindo-se estas cinzas, e endurecendo-se pelo seu peso específico pelas águas das chuvas, pelo frio, pelo calor, etc., têm dado origem a uma espécie de pedra sólida e compacta, de que comummente são compostas aquelas colinas; a inclinação que nelas se observa ou provém de terem as cinzas assentado sobre planos inclinados, ou de alguma revolução que tiveram por algum tremor subterrâneo.

Refere ainda as comunicações que dizem manter o Pico do Fogo com o mar, relacionando-as com o aparecimento de sal à sua superfície, e apresenta algumas causas para as suas erupções.

A propósito das produções, menciona a utilização das pozulanas na construção e o lucro considerável que podia ser obtido a partir da exploração do enxofre, existente em grande quantidade e puro como o purificado em oficinas italianas.

SEXTA CARTA

Ilha do Fogo, 5 de Dezembro de 1783

Na ilha do Fogo, diz Feijó não haver uma fonte de água vertente de que possam os habitantes se servir, excepto alguns poços de água salobra, que a necessidade os obriga a abrir junto às praias, para os seus usos. Considera-a quanto ao clima quente em extremo, porém sadia, principalmente da parte Norte; as doenças que ali se experimentam são algumas febres agudas no tempo das águas, mas estas não são de tanto perigo como na capital; também há a mesma enfermidade do carbúnculo que na ilha Brava, porém não é tão perigosa. Se chover no tempo das águas, a ilha é das mais férteis porque produz infinitamente mais do que em outra qualquer. A este respeito aponta várias das suas produções.

Anota ainda como se faz a administração da ilha e qual a sua população, números de fogos, de casais, de viúvos, de solteiros e de escravos, sem esquecer a fertilidade das gentes, o seu carácter, trajes, costumes e alimentação. Disserta sobre o governo espiritual, a economia do bem comum, descreve o governo militar e fala do descobrimento.

SÉTIMA CARTA

Ilha do Fogo, 15 de Dezembro de 1783

Com esta carta Feijó envia o catálogo das plantas consideradas naturais das ilhas do Fogo e Brava; a esta foi segunda vez com o objectivo de investigar a flora. A propósito do Fogo, comenta: Sendo, no tempo seco, esta ilha tão árida por causa de águas, e tão abundante de plantas naturais no tempo das chuvas, o que não deixa de causar grande gosto e prazer à vista, e atenção ao que for inclinado às observações da Natureza; que variedade de vegetais, e algumas tão novas como esquisitas se apresentaram a meus olhos nesta ilha, e na Brava [...].

Segue-se o catálogo das plantas naturais da ilha do Fogo, incluindo 157 espécies, agrupadas em Monandria, Diandr., Triand., Tetradria, Pentandr., Octandr., Decandr., Dodecandr., Icosandr., Polyandr., Tetradin., Monadelpl., Diadelpl., Syngenesia, Synandr., Monoecia, Dioec., Polygam. e Criptogam., de acordo com o sistema lineano .

Um anexo com o título Expedição da ilha Brava, indica, numa primeira lista, o conteúdo de uma caixa com 65 amostras de pedras e de terras e numa segunda, sob o título Herbário, 85 nomes de plantas. À parte, anota o envio de sementes de quatro espécies sem as respectivas flores, por não ser o tempo de haver as suas plantas, mais algumas conchas que se encontram pela costa e uma garrafa com água da Fonte do Vinagre. Outros anexos: Mapa das produções da ilha do Fogo tirado na real expedição - 1783 e Mapa dos fogos e almas da ilha do Fogo tirado na real expedição - 1783.



NOTAS


(28)
1757. Sublinhado no manuscrito.

(29) Doze anos depois de 1757 não é 1783. O autor está a usar como fonte um documento de 1769 que alude à erupção de 1757. Feijó foi secretário do Governo Geral de Cabo Verde e Guiné, portanto tinha acesso ao arquivo. Note-se no entanto que não se trata de lapso, pois este facto repete-se noutros textos sobre o Fogo, de tal modo que Orlando Ribeiro o assinala, declarando não ser capaz de o explicar. O incidente pertence à mesma isotopia de sentido que o uso do termo “Garboeiro”, em que as letras C e g se sobrepõem, o que obriga a pensar em “G” – o mesmo que GADU. GADU aparece por extenso na memória sobre o Fogo publicada por Pimentel: um dos últimos parágrafos classifica como obra do Grande Arquitecto do Universo os fenómenos da Natureza. Carreira publica uma carta de Feijó à Rainha, demasiado louca para não ser assisada, e demasiado falsa para não ser verdadeira (é no entanto impensável que pudesse ter chegado às mãos de D. Maria I), em que Feijó confessa ter copiado textos “tal como o seu Pai os pariu”, isto é, sem falsificar as fontes, pondo por exemplo 26 anos onde se lê 12, para a sua nota concordar com a erupção de 1757.

(30) Há uma rasura em ”léguas”, depois repete-se “ou léguas”.

(31) O herbário feito por Feijó em Cabo Verde, com mais de 600 espécies, está no Museu de História Natural de Paris.