BENTO CARQUEJA

BENTO CARQUEJA
Radiografia sentimental de um grande homem
Por Maria Elisa Pérez

Separata de "O Tripeiro", 7ª série, Ano XIII, nº 8-9, Porto, 1994



Maria Elisa Pérez, neta de Bento Carqueja,
autora do artigo "Radiografia sentimental de um grande homem",
em sua casa, no Porto.

Foto TriploV
27 de fevereiro de 2009

A imagem que tenho desse avô que tanto marcou a minha infância e meninice é a de um homem não muito alto, forte, calvo, testa ampla, cabelo branco cercando-lhe o crânio, olhos claros com uns óculos ovais de aro de ouro a corrigirem a miopia, farto bigode branco de pontas erguidas - que todos os dias frisava com um pequeno ferro redondo aquecido numa lamparina de álcool. Em criança ficava deliciada ao vê-lo
executar essa «operação»...

Após a morte de sua mulher, vestiu sempre roupa negra e camisa branca. Na cabeça colocava um chapéu preto de abas reviradas e na gravata a imaculada pérola.

Nasceu em Oliveira de Azeméis, a 6 de Novembro de 1860, na casa de seus pais, em frente aos Paços do Concelho.

Nesse pequeno largo ficava a casa dos Carquejas com a loja à face da rua - o clube da terra -, onde compravam e cavaqueavam tanto as pessoas gradas como os lavradores.

Seu pai, também Bento de Sousa Carqueja, homem cheio de interesse devido às suas qualidades morais, exerceu vários cargos públicos e foi um exímio actor em festas familiares.

Era irmão de Manuel e Francisco Carqueja, fundadores de "O Comércio do Porto». A mãe de Bento Carqueja, Amélia Soares de Pinho, descendia de uma família nobre, cuja casa brasonada em que vivia se situava do outro lado da praceta.

Quando começou a namorar com o dono da mercearia, foi um grande desgosto para a família, por não ter escolhido um fidalgo para marido. Contudo, as qualidades deste HOMEM BOM rapidamente conquistaram o
clã Soares de Pinho.

Desde pequeno, o meu avô mostrou interesse por tudo, não se contentando com meias palavras quando pedia alguma explicação. O seu jogo fisionómico e os seus olhos azuis revelavam uma enorme vivacidade de espírito. O professor primário aconselhou os pais a mandá-lo estudar para a cidade, porque o "Bentinho" podia tornar-se alguém na vida.

É «enviado» para o Porto em 1870, acompanhado por um recoveiro, para casa dos tios, Paulina e Francisco Carqueja, irmão de seu pai. Continua os estudos no Colégio de Nossa Senhora da Glória, onde teve por companheiro Luís de Magalhães, filho do grande tribuno José Estevão, cuja
profunda amizade só terminou com o seu falecimento.

No colégio, cedo revela dotes de oratória e escrita, sendo notado pela leal camaradagem com os colegas.






Bento Carqueja com a neta Maria Elisa,
 o genro Fortunato Seara Cardoso
e quadros de «O Comércio do Porto», aquando da inauguração
do edifício da Av. dos Aliados.

Vive num meio culto e o jornalismo depressa domina o seu espírito. Com apenas 15 anos publica o seu primeiro discurso feito no colégio e no ano seguinte a primeira «reportagem do exterior» a propósito da Santinha da Arrifana. Ávido de saber cada vez mais, estuda Economia, Física, Agricultura e Filosofia, tornando-se um verdadeiro pedagogo. Possui uma memória prodigiosa e enorme facilidade em falar de qualquer assunto.

Em 1881 é nomeado professor na Escola Normal do Porto e nessa mesma época entra para co-proprietário de «O Comércio do Porto». O seu lema dentro e fora do jornal é defender os interesses da Cidade e da Pátria. Não se deixa influenciar por ideias políticas, revelando-se sempre uma pessoa íntegra, procurando servir e ajudar aqueles que o rodeavam.

A sua facilidade em se exprimir e o lugar de destaque que vai ocupando como homem do Porto, levam-no a discursar ao lado do grande tribuno António Cândido, no Teatro de São João, no IV Centenário da Descoberta do Brasil.

Nessa altura já é casado com a sua prima, Elisa Maria Kunhartd de Sousa Carqueja, senhora que organizava, com outras damas da sociedade do Porto, festas de caridade a favor dos desprotegidos e das vítimas da Guerra.

Quando o Conde de Paçô Vieira o convida para entrar para o Governo, a fim de integrar o Conselho Superior da Agricultura, recusa o cargo afirmando: « - Desejo não ser nada no meu País, além do meu lugar de
jornalista e professor».

É também convidado para a Academia Real das Ciências, em Lisboa, cargo que aceita dado tratar-se de um centro de cultura. Foi um dos membros mais activos e assíduos - com inesperadas e interessantes intervenções.

Ia de 15 em 15 dias às sessões que se realizavam à quinta-feira. Partia do Porto de véspera, no Sud, chegando à Estação de S. Bento sempre à  última hora. O chefe, que já conhecia esse hábito, esperava que ele entrasse para anunciar a partida do comboio. Como já não era novo, minha mãe muito se preocupava com estas correrias.

Um dia, para lhe agradar, vai cedo para a estação. Encontra o seu amigo Clemente Menéres e põe-se na conversa. O chefe, como o tinha visto chegar, manda partir o comboio e ... Bento Carqueja ficou em terra!...

Em 1925, é novamente convidado para assumir um cargo no Governo. A esse convite, responde: «Quero ser uma pessoa independente para servir livremente o meu País».

 










Uma curiosa caricatura de
Bento Carqueja assinada por J.C.L.

O seu grande amigo Veloso Salgado pinta o seu retrato. Durante essas sessões dizia-lhe: «Fala comigo porque a falar é que te quero pintar». E assim saiu uma obra prima desse mestre, em que Bento Carqueja parece estar a comunicar connosco.

Vai ao Brasil, à Argentina e ao Uruguai realizar conferências. Um dia, quando estava a almoçar - coisa rara, sozinho - num hotel em Buenos Aires, recebe um telegrama que lhe anuncia o nascimento do seu primeiro
neto varão, o Manuel Filipe. Fica tão emocionado que chama o criado, manda-o trazer uma garrafa de champanhe e convida-o a beber uma taça à saúde do seu neto. Com o seu feitio extrovertido tinha que compartilhar com alguém essa alegria.

Foi também professor catedrático na Faculdade de Ciências do Porto. Ao dar a sua última aula, levam-no ao Salão Nobre onde o reitor, outras individualidades e os alunos prestam uma sincera homenagem ao Homem
e ao Mestre.











O edifício de "O Comércio do Porto",
na Av. dos Aliados.

Nunca recebeu qualquer salário pelas aulas que ministrava, entregando-o na totalidade ao Instituto de Investigação Científica de Ciências Económico-Sociais para as suas pesquisas. O ensino era para ele um enorme prazer. Era com satisfação que esclarecia e formava pessoas. Tem um desgosto enorme quando deixa de leccionar, desgosto esse que lhe custa a superar.

Nunca reprovou ninguém. Dizia ao aluno: «Não será melhor vir na próxima época?...».

Entre as aulas, as conferências e o jornalismo decorreu a sua vida. A "O Comércio do Porto" dedicou-se com alma e coração.

Nessa época, tanto na cidade como na província comentava-se: «Vinha n' "O Comércio do Porto"... «"O Comércio do Porto" dizia...».

As suas páginas de verdade, sem sensacionalismo, eram como escrituras que chegavam a todas as classes sociais. O grande número de assinantes que tinha espalhado por todo o País, como por exemplo os brasileiros e os capitalistas, muito apreciavam as notícias que os punham a par do que se passava por esse mundo fora. As senhoras e as jovens deliciavam-se com os folhetins.

O jornal "o Lavrador" foi editado a pensar nos homens da terra, que tanto precisavam de ser esclarecidos com as novas técnicas da lavoura, tornando-se para eles um "breviário".

Desde criança que a vida de Bento Carqueja foi a de um homem que lutou e trabalhou para ser livre, servir o próximo e a Deus.

Era uma pessoa calma, com maneiras fidalgas, mas se fosse preciso assumir uma posição rígida vergava qualquer um. O seu bom-senso, a sua justiça, a sua coragem, levam-no a vencer as maiores dificuldades e
desgostos.

Era um filantropo, e acima da vida intelectual e profissional o que mais amava era a família e o seu torrão natal: Oliveira de Azeméis. Podia estar muito ocupado no jornal, mas se algum conterrâneo o procurava,
recebia-o com a maior estima e prontificava-se a mexer o céu e a terra para realizar aquilo que considerava um pedido JUSTO.

Nunca deixou de responder a uma carta. Quando o pai de Joaquim Alberto Pires de Lima, que foi catedrático da Faculdade de Medicina do Porto, lhe escreveu dizendo que tinha cinco filhos, era professor primário
e não podia mandar o filho estudar Medicina porque não tinha posses, Bento Carqueja responde-lhe: «O seu filho já está inscrito no Colégio da Glória como professor interno, podendo assim matricular-se na Academia
Politécnica e fazer o seu curso».

Quantas e quantas pessoas através dos seus actos de benemerência venceram na vida e foram alguém!

Para Bento Carqueja não existiam impossíveis. Ao resolver construir o edifício de «0 Comércio do Porto», situado na esquina da Rua Elísio de Melo com a Avenida dos Aliados, chama o arq. Rogério de Azevedo -
ainda um novato - e diz-lhe para apresentar o projecto dois dias mais tarde, altura em que havia sessão na Câmara, sendo essa a única oportunidade de o projecto ser aprovado, visto existir um litígio com o presidente.

Rogério de Azevedo, acompanhado por dois desenhadores, concebe o projecto e a memória, facto quase impossível de acreditar! ... Em consequência do desgaste provocado pela realização dessa tarefa fica um mês de cama. Quem colaborou nos cálculos foi o engenheiro e arquitecto Baltasar de Castro.

Na casa de seus pais, em Oliveira de Azeméis, vivia a irmã de Bento Carqueja, Amélia Laura Carqueja de Lencastre Abreu e Lima, que estava sempre pronta a recebê-lo e aos seus inúmeros amigos com deliciosas refeições.

Meu avô apreciava comida portuguesa, principalmente taínhas da ria, trazidas ainda a saltar pelas varinas, e lampreias de Entre-os-Rios. Também da sua predilecção eram os doces de ovos e os ovos em fio, feitos pelas freiras do Convento de Arouca, e mais tarde pela Aninhas Doceira, em Oliveira de Azeméis, cuja mãe fora educada nesse Convento e lhe ensinara o segredo. No dia dos seus anos a irmã trazia-lhe uma grande taça cheia de ovos em fio.

No Casinhoto de Ferreiros, em Oliveira de Azeméis, passava as suas férias. Nessa casa, situada no meio das serras - cuja planta fora feita pelo seu amigo arq. Marques da Silva -, existia uma linda varanda de pedra
forrada a azulejos que reproduziam uma pintura de Veloso Salgado. Aí, descansava e saboreava a paz desse local onde uma enorme vinha, por ele mandada plantar, dava um saboroso vinho branco.

Gostava de vestir calças de estopa e casaco de alpaca por serem peças frescas nessa época do ano. Para dar a volta à quinta, colocava um chapéu de panamá e na mão um bordão feito de cana da Índia tendo em baixo um espigão de ferro, e em cima uma argola de prata com as suas iniciais.

Normalmente eu acompanhava-o nesse passeio e foi assim que aprendi as primeiras luzes sobre botânica. Como era um apaixonado pela terra, essa terra dava-lhe um enorme prazer e bem-estar.

Quando o Rei D. Manuel II se deslocou a Oliveira de Azeméis, recebeu-o em sua casa. Ao descerem para o largo, estalaram tiros de morteiro, o que fez o jovem Rei - ainda marcado pela recente morte do pai - agarrar-se ao braço de Bento Carqueja e dizer: «Ó Carqueja, estou seguro?! ...».

No Porto, na sua casa da Rua da Alegria, 953, costumava jogar bilhar uma vez por semana com o bispo D. António Barroso - a quem minha mãe servia rebuçados de avenca numa tacinha de prata -, com Ferreira
da Silva - esse mestre na Física sempre distraído, que acertava mais no pano do que na bola -, e com Fortunato Cardoso - grande amigo e vizinho, cujo filho, Fortunato, casou mais tarde com a sua filha, Maria
Paulina, e que foram os meus pais. Estes serões deliciavam-no.

Já no meu tempo vinha jantar connosco, aos domingos, o Comendador Francisco Bernardino Pinheiro de Meireles - homem dedicado a instituições de caridade e mesário da Misericórdia. Com Bento Carqueja organizava, no Ateneu Comercial do Porto, a festa anual do Prémio Xavier da Mata para distinguir o melhor aluno e operário das fábricas do Porto e arredores, bem como dos asilos. Enternecia ver esses dois homens de idade ainda se tratarem como no tempo da meninice: «Ó Bentinho», «Ó Francisquinho».

Wenceslau de Lima, Clemente Menéres, Vasconcelos Porto, Fernando Vaz Cerquinho, Teixeira Lopes, Luís Costa (seu primo), Tito Fontes (seu médico) e tantas outras figuras da cidade fizeram parte do seu leque de amigos!

Uma vez foi atacado publicamente. Perguntaram-lhe por que não deu qualquer resposta. O seu comentário foi simplesmente o seguinte: «Não perco o meu tempo a ripostar às pedradas dos inimigos. Só os inimigos
é que nos fazem conhecer os amigos».

Quando lhe perguntaram o que era um jornal, respondeu: «Um jornal tem de rejuvenescer à medida que avança na idade, porque a vida social transforma-se a cada momento e não faz sentido que a imprensa não
acompanhe de perto essa transformação produzida pelo labor do engenho humano. O público, esse insaciável devorador, reclama um jornal com informações novas e surpresas».












Bento Carqueja aos quarenta anos.

«O Comércio do Porto» era mais velho do que ele seis anos.

Após a sua morte, uma morte serena de um HOMEM BOM, na Rua do Molhe, à Foz do Douro, na manhã do dia 2 de Agosto de 1935, o Conselheiro Luís de Magalhães, seu companheiro de colégio, escreveu: «A
vida de Bento Carqueja tinha três pólos: a família, o jornalismo e o ensino. Seguiu estes caminhos sem desvios e paragens, passando ao lado dos políticos e da política, sempre independente. Se tinha de escrever ou fazer alguma crítica era para bem da pessoa ou da Pátria. Possuía no sangue o lema FAZER BEM».

Também Júlio Dantas nesse momento o descreve assim: «Não sei o que mais admirar em Bento Carqueja. Se a sua inteligência penetrante, se o seu rasgo cheio de iniciativa, se o seu perfeito aprumo moral, a sua autoridade, os seus juízos cheios de bondade comovedora, a sua lealdade exemplar, a sua certeza, a sua tolerância, qualidades mestras dos chefes, hoje tão em decadência por todo o Mundo». E acrescenta ainda a frase de um velho poeta italiano: «Se queres tornar bela uma cidade ergue uma estátua a um cidadão
honrado». «É o que o Porto deve fazer a Bento Carqueja».






Uma expressiva foto de Bento Carqueja, discursando num acto oficial.

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