PORTUGAL
7. TECNOLOGIA E LITERATURA

Derrick de Kerkhove assinala três grandes conceitos que interferem na realidade virtual: digitalização, fragmentação, descontextualização: "a digitalização é o novo tradutor universal de todas as substâncias heterogéneas... A fragmentação não bastava para para libertar a matéria e a informação para análise e re-utilização. O princípio tinha de apoiar-se no seu corolário... o princípio da descontextualização também se apoia na reacção neurofisiológica aos critérios de decifração" .

Mantenhamos por enquanto a ideia de que a literatura é mais uma técnica do imaginário do que uma tecnologia. Joris Vlasselaers observou que na cena literária da Europa ocidental “algumas inovações relacionadas com a teoria literária manifestam claras interferências da mídia tecnológica em poéticas e formas literárias” . A literatura tornou-se um medium entre outros media. Esta transformação veio manifestar o indiscernível momento de contaminação que faz dela simultaneamente uma técnica e uma tecnologia do imaginário. Avizinham-se os tempos da escrita electrónica em que os novos media provocarão uma modificação no próprio sistema literário aos níveis da produção, mediatização, recepção e processamento. Perdido o seu momento aurático, o texto literário vai tornar-se, por efeito da alteração dos media e do próprio mercado dos bens culturais, um híbrido, um artefacto.

Ludwig Tieck, no início do Romantismo, sonha com uma poética da analogia, apontando já para a importância da noção de velocidade e dinamismo para a criação de um novo tipo de literatura. “Na poética de Rimbaud, encontramos fragmentos nos quais a dinâmica e a velocidade energética da modernidade constituem a base de novas formas literárias, rodopios (“tourbillons”) de associações sem nenhum momentum associativo explícito” . Bem antes de MacLuhan, os futuristas italianos vão desenvolver uma autêntica poética da analogia, uma poética de “imaginazione senza fili”, associada a uma terminologia tecnológica, a da telegrafia sem fio de Marconi, que aproxima o sistema tradicional da comunicação literária das exigências modernas da velocidade, urgência e imediatez. A fórmula poética de Marinetti la chaîne des analogies e a écriture automatique do surrealismo promanam dessa lógica da analogia.

A literatura informática releva essencialmente da metamorfose em que o produto reflecte no ecrã o processo da sua génsese electrónica que é especular. O leitor, no novo meio electrónico digital, através de um simples clique, obtém associações múltiplas entre palavras, sons e imagens, aproximando-o da semiose infinita de Peirce. T. H. Nelson e Negroponte resumem esta mudança da seguinte maneira:

1. Os media têm vindo a impor há muito as suas ideias aos leitores e espectadores;

2. A nova tecnologia inaugurará o que Stewart Brand, Wortzel e outros denominaram uma "renascença pessoal".

Esta nova Renascença anuncia sobretudo uma nova era em que a tecnologia e as humanidades já não se encontram separadas, mas ligadas por um medium electrónico. Marshall MacLuhan dissera já que "Gutenberg fez com que todos se tornassem leitores. O Xerox fez com que todos se tornassem editores". Como também para Joyce os mundos virtuais começaram pelo reconhecimento de "todos serem poetas", sendo todos co-produtores. No entanto, como Moisés, nem ele, que pretendia ser ele próprio "o grande engenheiro" bem como um homem da Renascença, nem MacLuhan viram a Terra Prometida do ciberespaço .

O conceito de arquitectura implica a noção de construção (arquitectura e design) e de engenharia, e está na base do poético. O poético é uma forma específica de comunicação não distorcida, com um princípio mecânico (mas não mecanicista): "na era da máquina de filmar, da câmara-video, dos sincronizadores de som, interfaces de utilizadores de gráficos (GUIs), hipermedia, e realidade virtual (VR), as possibilidades de tal exploração podem ter aumentado mas o prazer poético implicado é o mesmo" . Outro aspecto do poético diz respeito à teoria dos códigos, que a teoria da informação considera como teoria monoplana, enquanto que a teoria poética como parte de uma teoria de morfogénese não o é. Finalmente, o figural é uma construção complexa que, incluindo embora elementos materiais e formais, também é modelada pelos factores tecnológicos do modo ou modos de comunicação em presença (disso são exemplo a primitiva utilização de dispositivos tais como a sobreposição de imagens nos filmes e a utilização de tipos de caracteres no início da imprensa para produzir poemas geométricos ou figuras ortográficas).

Como Genette ensina: "aquilo que podelos reter da velha retórica não é o seu conteúdo, é o seu exemplo, a sua forma, a sua ideia paradoxal da Literatura como uma ordem fundada sobre a ambiguidade dos signos, sobre o espaço exíguo mas vertiginoso que se abre entre duas palavras com o mesmo sentido, dois sentidos da mesma palavra, duas linguagens da mesma linguagem" . O que de facto está em causa é a transfiguração da experiência através da incessante reelaboração da medialidade. Todas as palavras são portadoras de figuras virtuais e só a mediação da escrita faz com que essas figuras se consumam e disseminem. Nunca antes as tecnologias de comunicação foram tão abrangentes de todas as potencialidades implicadas nos media e nas suas interrelação fluidas com a actividade da "orquestração das artes". Finnegans Wake, reunindo mecanicamente os resíduos (flotsam and jetsam) de uma cultura internacional emergente, abarca todos os modos contemporâneos e históricos de comunicação, de produção cultural e de maquinaria social - incluindo modos de comunicação tão diferentes como a linguagem gestual, a linguagem do rufar dos tambores, os manuscritos, os jornais, a rádio, a TV, os filmes, os telefones, os telégrafos e possíveis combinações futuras de todos eles; e géneros tão diversos como a liturgia, o drama, o folheto, poemas, desenhos animados, banda desenhada, óperas, e contos orais.

As consequências desta revolução tecnológica sobre a literatura fazem com que a literatura que se anuncia, que se pratica, seja já uma literatura que tira partido de todas as riquezas da imaterialização dos conteúdos concretizada pelas possibilidades que oferecem os circuitos electrónicos ou optrónicos: imaterialidade, instantaneidade, mobilidade, fluidez, adaptabilidade, colectividade, impessoalidade, multiplicidade, interactividade, para lá das fronteiras do que se convencionou chamar para-literatura, por exemplo, ou hiperrealidade. A literatura electrónica significa, mais do que a volatilização do referente, a sua modificação. Jean Baudrillard é dos teóricos mais desiludidos acerca daquilo que chama o "crime perfeito": "A realidade foi expulsa da realidade. Talvez apenas a tecnologia reúna ainda os fragmentos esparsos do real. Mas que é feito da constelação do sentido?". Referindo os aspectos abrangentes da realidade virtual e do ciberespaço, a investigação de Baudrillard no campo da "simulação" e do "êxtase da comunicação" merece ser salientado. É importante notar até que ponto o tratamento da comunicação empreendido por Baudrillard se assemelha ao de MacLhuan. Sob muitos aspectos, poderia verificar-se que as ideias de Baudrillard acerca do "êxtase da comunicação" correspondem à forma como ele interpreta as perspectivas de MacLuhan sobre a literatura, a arte simbólica, o modernismo e têm a ver particularmente com Joyce .

Estamos perante um movimento ontológico maciço causado pelo advento das novas tecnologias. O movimento das realidades digitais para as realidades virtuais altera substancialmente a nossa relação com a linguagem e com a realidade. Michael Heim permite-se fazer a pergunta seguinte: "se os novos media alterarem a nossa relação com os símbolos, a linguagem e, portanto, a realidade, como poderemos avaliar melhor essas deslocações ontológicas?" Ou, de outro modo: "como poderá o hipertexto (escrita não sequencial) reconfigurar as distinções na leitura, na escrita e nas hierarquias do conhecimento?" Se aceitarmos a afirmação de MacLuhan de que o medium é a mensagem então o advento dos computadores não afectará apenas a rapidez com que obtemos acesso ao conhecimento, como transformarão o nosso sentido do que significa conhecer." Jay David Bolter rejeita a possibilidade de os ambientes da RV "constituirem uma fase final do desejo do signo natural, a fase em que o próprio signo é eliminado" . Não existe uma forma de linguagem livre das ambiguidades e das intertextualidades da ordem simbólica, como demonstrou Umberto Eco em The Search for the Perfect Language. O medium é a mensagem porque cria o público que lhe é mais adequado. Os media electrónicos criam um público cujas mudanças de humor são tão impessoais como o tempo atmosférico. A rede é fria, precisamente no sentido que MacLuhan dá à palavra: ubíqua e abrangente, mas não-directiva, tão maleável ou "discreta" que nos obriga a um envolvimento activo. A Rede exige muita participação. Embora para os Cyborgs os meio frio do ciberespaço desligue muito do corpo humano e do espírito e incentive o computador a reconhecer-se como fonte de experiência independente de ambos. Outros problemas, outras perguntas defluem deste movimento de fundo que passou também à relação tecnologia/política e que permite dizer por exemplo que a única liberdade de imprensa é a liberdade realizada pela tecnologia e não pela política .

A crítica da tecnologia como tal caracteriza a Escola de Frankfurt e em especial os seus principais representantes, Adorno e Horkheimer. Em Dialectics of Enlightenment (1972) sustentam que a instrumentalidade é em si uma forma de domínio, que controlar os objectos viola a sua integridade, os suprime e destrói. Demonstram que a essência da tecnologia é histórica e reflexa. Como instituição a sua racionalidade é sempre implementada por formas valorativas sujeitas à crítica política .

As tecnologias também abrem um potencial limitado de libertação. Jurgen Habermas estabeleceu a distinção entre o potencial de libertação implícito nas tecnologias de comunicação e a produção de indústrias culturais, por um lado, e, por outro, as distorções reais efectuadas pela forma como a organização da tecnologia opera através do modelo económico de cultura como indústria cultural: "A comunicação livre processa-se a partir do âmbito restrito dos contextos espácio-temporalmente delimitados e permite que surjam esferas públicas, estabelecendo a simultaneidade abstracta dos conteúdos de uma rede de comunicação virtualmente presente, distante no espaço e no tempo, e mantendo as mensagens disponíveis em múltiplos contextos. Estes públicos dos media hierarquizam e ao mesmo tempo anulam as restrições do horizonte da comunicação possível. Um aspecto não pode ser separado do outro - e nisso reside o seu potencial ambivalente" .

Eco, que abordou a questão das novas tecnologias nos seus romances - que considera "romances académicos" - sustenta que: "a Disneyland diz-nos que a tecnologia nos pode dar mais realidade do que a natureza" . O que agora vacila é a nossa concepção do dentro/fora, da intensão/extensão. Por exemplo, no filme de Woody Allen A Rosa Púrpura do Cairo, a personagem de um outro filme que concentra o ardor dos sonhos da espectadora; junta-se a ela na realidade (da obra), que assim se torna ficção, mas redobrada por uma outra realidade prestes a tornar-se sonho, graças à chegada do actor que representa a personagem, e cujo papel será o de reintegrar todos no seu lugar "real" . Já em Emile de Rousseau, Sofia apaixona-se por Emílio porque ele se assemelha a uma personagem de um romance que ela lera. O amor faz-se pela mediação do hiato impresso. A cultura de hoje consiste em realidades construídas - Disneylands - que são mais reais do que a realidade a que se pressupõe que se reportam. "O hiperreal" é a expressão com que Baudrillard designa esta nova ordem de realidade. Desde que se fala da interactividade com as tecnologias da comunicação, esta, como muito judiciosamente faz notar J.P. Jeudy, "continua a ser pensar de acordo com uma tradição fenomenológica: o dispositivo substitui o outro e é com ele que o sujeito se vê obrigado a dialogar. Um sistema interactivo já não se dimensiona da mesma forma que a relação alter-ego, apresenta-se como um dispositivo autónomo que absorve o sujeito e as suas representações do outro" . Empirismo? Não existe, por um lado, a realidade e, por outro, os sujeitos - actores ou actantes; há o perpétuo entrechocar-se do que se oferece provisoriamente como realidade ou ficção, transformando-se uma na outra. O mau romance é aquele em que se é capaz de discernir entre a realidade e a ficção. De resto, há romances modernos que derivam da "realidade" nua e crua e julgam que ela se equipara a uma ficção. Como faz notar Daniel Sinoby "a vida de uma obra de arte são, evidentemente, as ressonâncias identificadoras que em nós desperta, que nos dão prazer, mas é também e sobretudo o facto de ela nos deslocar dos nossos espaços habituais, de nos relançar e integrar no impulso que nos imprimiu e cujo final é uma tensão, uma abertura, um limite, apesar da aparência de acabamento: o final da obra é um corte e um apelo, que parte do coração da obra, das suas entranhas secretas, apelo a que, para além da apreensão e das interpretações, se faça dela outra coisa, mesmo que seja apenas falar dela e sermos, nós próprios, a segunda instância inerte ou agitada de que ela contituíu o primeiro impulso; testemunha perplexa ante dos espaços que ela deixa em aberto" . Um dos objectivos de alguns artistas é reduzir o hiato entre a vida e a arte: será que a RV nos ajudará a fazê-lo? Jenn Holzer, por exemplo, pensa que: "ao fazer a vida parecer suficientemente real, se será levado a tentar remediar as coisas mais atrozes. Avançando suficientemente num campo aparente, talvez haja a possibilidade de tornar as coisas de algum modo mais impressionantes - ou, neste caso, verdadeiramente aterradoras. Tornar a aparência tão horrível como as coisas reais estão a acontecer" .