PORTUGAL
1. PASSAGENS

“A diferença, a transgressão, a conexão, o fluxo, a viagem, o nomadismo, o movimento, os cyborgs - (...) passaram a ocupar um lugar central em diferentes discursos e práticas culturais associados à emergência de um novo paradigma que veio redefinir os termos da relação entre ordem e desordem, stasis e fluxo, determinação e contingência, e que atravessa diferentes disciplinas e diferentes domínios do saber e da ciência que a modernidade tendeu a pensar separada e diferenciadamente”, escreve J. Arriscado Nunes que assim resume muito adequadamente as configurações que marcam a passagem do paradigma moderno ao paradigma pós-moderno. “Cibersociedade” (Jones, 1995), “cibercultura” (Aronowitz et al., 1996; Escobar, 1994), “tecnociência” (Aronowitz et al., 1996), “tecnocultura” (Penley e Ross, 1991) são algumas das designações desse novo paradigma em que também a questão da escrita e da literatura se inscreve. Que há, para além destes labirintos textuais em que interminavelmente erramos? As mais das vezes, de facto, o pós-moderno é a cultura das citações infinitas. Derrick considera o livro de Pynchon, Gravity´s Rainbow um sintoma da transição paradigmática; McHale, por sua vez, considera que a ficção cyberpunk pode ser encarada como uma expressão paradigmática da escrita pós-modernista . As expressões culturais daí emergentes remetem-nos para a corrente cyberpunk na ficção científica (vejam-se, na literatura, as obras de William Gibson, Bruce Sterling, John Shirley, Tom Maddox, Lewis Shiner, Pat Cadigan, no cinema, Blade Runner e Alien, de Ridley Scott, Viedodrome, ou Crash, de David Cronenberg, e Robocop e Total Reccall, de Paul Verhoeven). A publicação de Neuromancer de Gibson, em 1984, é a consagração de um primeiros géneros a que, no meio da ficção científica, se chamava já “cyberpunk” - literatura que abordava a condição de pessoas marginalizadas por sistemas culturais de raíz tecnológica, histórias de inadaptados oprimidos por um “sistema” que tem a forma, ou de um governo repressivo ou de uma religião fundamentalista, mas em regra o seu poder materializa-se através das tecnologias da comunicação e das biotecnologias - implantes cerebrais, clonagem, híbridos humanos (vejam-se, por exemplo, os dois filmes da série Terminator).

Passamos da era Guttenberg (do Livro) à era electrónica (do livro e da imagem virtual), mas os novos media não parecem terem substituído completamente os antigos. Os media electrónicos no seu conjunto constituem as mediações mais importantes para entender as transformações culturais que acompanham a passagem do moderno ao pós-moderno. Hoje, tal como sublinham Nicholas Nigroponte, em Being Digital, ou Douglas Eisenhart em Publishing in the Information Age, todos os sinais para os dispositivos da comunicação electrónica podiam ser postos em formato digital e transportar com eles instruções para a interpretação ou play back em diversos media .

As implicações culturais dos media electrónicos e das tecnoculturas que lhes estão associadas atingem de modo especial o campo da escrita e, concomitantemente, o da crítica. Como muito bem escreve J. Arriscado Nunes, “a electronic literacy, ao transformar o medium material, implica também transformações nos modos de produção do conhecimento e nos modos de produção estéticos, por um lado, e na organização social do conhecimento e da expressão estética, da sua produção, distribuição e apropriação, por outro” . A emergência de tecnologias como o hipertexto/hipermedia materializam as teses pós-estruturalistas sobre a heterogeneidade dos textos e a intertextualidade, sobre a morte do autor e do sujeito, bem como emprestam um valor acrescentado à noção de leitor. Algo de que falaremos mais adiante.

Se existe algo como um mundo social da ficção de hipertexto (Howard Becker: 1996), tal significa que nesse mundo há, para além de “obras” hipertertextuais, “autores” , um “público” e “críticos”, essas personagens tradicionalmente convocadas para se pronunciarem sobre o valor das “obras”. Mas se aquilo a que assistimos é o fim do texto e da crítica, como é possível ainda falar da poética, entendida como um constructo sistemático que explica torna consistente a crítica das obras literárias? E como ler esta passagem sem lançar mão de uma hipótese interpretativa, do género: corresponde a saída da literatura, adaptada ao livro, à saída da prisão da linguagem? Mais simplesmente: coincide esta saída com a passagem do modernismo ao pós-modernismo e com a redefinição da experiência, como se tivéssemos já o poder de criar qualquer experiência que desejemos? É que, sem as limitações de um percurso linear, conectando um começo e um fim, a arte pode simultaneamente imitar a experiência, tornando-se também experimental. Como observou S. Fish: "preferiria uma subjectividade reconhecida e controlada a uma objectividade que é, em última análise, uma ilusão" (Fish, 1980: 87), ou então: "o significado de uma proposição...é a sua experiência" (Ibid., 1980: 98) .

Quando usamos o computador, aceitamos naturalmente a metáfora do lugar para descrever a experiência. "Vamos" ao menu e escolhemos quit, para "sair" de um programa. São espaços em que acreditamos, mesmo não existindo. É esta dinâmia que torna a realidade virtual tão imortal como Giles Bowkett assinala: "a realidade virtual fornece uma metáfora para a nossa experiência informática - a experiência de entrar num espaço virtual com leis de física próprias - e transforma essa metáfora num espectáculo digno de Hollywood . De facto, à medida que a tecnologia se expande, maior expectativa há de que se gastará muito mais tempo de vida frente ao écran. Quanto mais o uso do computador exige de nós, tanto maior é o afastamento da verdadeira profundidade da experiência humana. Por isso Lakoff discute: "muitas coisas ditas interactivas são bem pouco interactivas! Têm a ver com qualquer menu fixo, não com a capacidade de sondar, como se sonda alguém, ou de julgar ou emocionar-se como numa interacção em directo. Tem de haver respostas de conserva e possibilidades em conserva" . A passagem é, de facto, do paradigma da fixidez ao paradigma do efémero. Os antigos conceitos de propriedade, expressão, identidade, movimento e contexto, uma vez baseados na manifestação física, não se aplicam no mundo onde não pode haver ninguém. A temporalidade, intangibilidade e transciência que marcam a efemeridade da arte são anunciadas através do espaço em que a peça digital é colocada numa rede, introduzida, manipulada e reinserida na rede por outras, às vezes simultaneamente. De facto, a tecnologia tem contribuído para aumentar a efemeridade da arte . Um texto electrónico é um mundo em constante movimento. A premissa da computação literária indicia claramente uma concepção borgeana da linguagem: uma combinatória infinita de sinais. O meio electrónico da escrita ameaça destruir o ponto de vista tradicional do autor como autoridade, e da literatura como monumento: "o medium electrónico lança o descrédito sobre as noções tradicionais de obras monumentais, de um cânone fixo de grandes autores, da fixidez e coerência da própria linguagem" . Mas o que sobretudo se alterou foi o estatuto da leitura. A atenção dos autores e críticos de textos on-line não recai tanto sobre a qualidade estilística, como sobre o funcionamento da “máquina hipertextual” no contexto dinâmico da leitura comutável entre vários níveis textuais e os links. Idensen dirá que escrever em rede “não tem a ver com literatura no sentido clássico do termo”. Tem muito mais a ver com a “medição de novos territórios no espaço telemático, com o estabelecimento de paisagens textuais e com a concepção da escrita e da leitura como um acto nómada de deambulação de um lado para o outro” . O vulnerável personagem-escritor, Flannery, personagem chave do romance Se numa noite de Inverno um viajante” de Italo Calvino di-lo assim: “Acudiu-me a ideia de escrever um romance feito apenas de inicíos de romance. O protagonista poderia ser o Leitor que é constantemente interrompido. O Leitor arranja o novo romance A do autor Z. Mas é um exemplar defeituoso, e não consegue andar para além do início... Volta à livraria para que lhe troquem o volume... Poderia escrevê-lo todo na segunda pessoa: tu, Leitor...” . Este Leitor, como o Kublai Kan de As Cidades Invisíveis, que quebra por vezes o “pacto ficcional” que o fixa e o codifica na sua função, obrigando a ficção a ir mais longe e a defrontar-se com um imprevisível, anuncia com muita propriedade a chegada do Leitor hipertextual que não respeita os bosques da ficção delimitados e sinalizados. Um tal leitor, pouco tem já a ver quer com o leitor modelo capaz de cooperar na actualização textual de acordo como o próprio texto prevê essa cooperação, quer com as noções de “estratégia narrativa”, “mecanismo narrativo”, ou “dispositivo narrativo” . O que contraria U. Eco: “Para além de outras razões estéticas, importantíssimas, penso que lemos romances porque eles nos dão a confortável sensação de viver em mundos onde a noção de verdade não pode ser objecto de discussão, enquanto o mundo real parece ser um lugar bem mais traiçoeiro” .

Esta é a estrutura do discurso hipertextual organizado. Os hipertextos servem para interromper o fluxo de leitura através de redes interligadas, os links, e para levar o leitor a um “vertiginoso delírio de possibilidades”. O hipertexto é um infindável texto em movimento que só existe, de facto, enquanto texto alternativo. Com a escrita hipertextual, passa-se do monumento ao movimento "on line". Acontece com palácios, túmulos, igrejas, catedrais, mesquitas, pinturas, esculturas, outros tantos "monumentos" que conservaram a memória colectiva e lhe deram uma identidade própria. Hoje, as imagens electrónicas que nos fornecem a televisão e informática tendem a substituir a memória "monumental". É a passagem de um texto bruto a um texto dinâmico: "inachevables" (Valéry), "infaisables" (Nerval), "fuzzy" (Eco). John Cage resume em algumas palavras o essencial da sua obra: "a abertura de tudo o que é possível e a tudo o que é possível é isso, penso eu, o que demando" (Pour les oiseaux). Estas palavras resumem muitas obras do século XX, obras abertas e obras em movimento, para usar os termos de U. Eco. O primeiro grande ensaio de U. Eco - Opera aperta (1962) tinha como finalidade demonstrar a polissemia constitutiva da mensagem literária. Eco opunha-se, portanto, ao desconstrucionismo, com uma distinção preliminar entre o "uso do texto" e a interpretação do texto: se o uso transforma o texto num pretexto, a interpretação tem de derivar necessariamente do texto como un point ferme .

As poéticas da metamorfose provocaram um verdadeiro sismo das representações e dos saberes: das obras musicais, do encadeamento livre de sequências (Boulez) à execução livre (Cage, Boucourechliev); para as obras plásticas, da escultura de móveis (Calder) às esculturas móveis e aos jogos com a imprevisibilidade dos fluidos (Tinguely); para as obras literárias, da obra-processo (Ulysses) à significação plural e aos espaços proliferantes - discurso polifónico - à obra-deriva (Finnegans Wake) que pulveriza a linguagem, contra a ordem do monumento e do estabelecido. "Gosto de coisas que mais não são do que impulso eléctrico. Não necessariamente neutras, mas fugazes" (Jenny Holzer). Não falta quem fale de textos móveis e de instalibidade textual a propósito do texto medieval, para concluir que a instabilidade textual na civilização do manuscrito não era nem acidental nem determinada por uma má tecnologia: "o texto móvel era mais a norma do que a excepção na civilização do manuscrito. A tal ponto, de facto, que não seria de forma alguma exagerado dizer que, na Idade Média, uma obra literária não podia perdurar senão na medida em que gozava de uma existência dinâmica" . Na actualidade, uma nova categoria de artista nasce neste novo mundo que deixa de comunicar a ideia de uma experiência para passar a comunicar a própria experiência, para se tornar um "spacemaker", um "fazedor" de espaço . Essencialmente, o efeito primordial da arte tecnológica é a deslocação, que provoca no espectador surpresa e uma sensação de estranheza. As vanguardas modernas procuraram, sobretudo, a transformação pela desfamiliarização. Os formalistas russos já se haviam apercebido desse sentimento e criaram uma palavra para exprimi-lo: ostranania. Pierre Lévy falará de desterritorialização: "o mecanismo hipertextual nas redes numéricas desterritorializou o texto. Em consequência disso, emergiu um texto sem fronteiras nem limites precisos, sem interioridade definível. Agora há simplesmente o texto como quem diz a água ou a areia. Mas o texto ainda está em movimento, em estado de perpétua mudança, de vectorização e metamorfismo contínuos" .