PORTUGAL
24. CODA


Em última análise, a intenção desta viagem foi contribuir para um trabalho de compilação. Quis apenas abrir acessos e definir etapas de estudo, trabalho de conjunção que religa os textos entre si e tendo como objectivo sublinhar a coerência deste arquipélago de fragmentos: convite à leitura e apagamento por trás dos textos apresentados. Não foi sempre este o objectivo da crítica? Estas notas são fundamentalmente uma colagem de citações e também intervieram na sua elaboração múltiplas vozes transmitidas através de correspondência electrónica, de sítios na Rede, etc. A presente abordagem do hipertexto foi informada pelos teóricos do pós-modernismo, bem como pelos teóricos do hipertexto. W. Burroughs, David Bolter, Michael Joyce, Carolyne Guyer, pensadores pós-modernos exemplares por mor das suas ficções literárias, também estão frequentemente presentes nestas páginas. Seguindo as pisadas destes autores, não se pretendeu nada que se parecesse com uma crítica equilibrada e bem fundamentada da hiuperficção ou do pós-modernismo. A prática do hipertexto abre - instantaneamente - um espaço virtualmente infinito de informação/comunicação, sem fronteiras, polilógico como o universo. Simultaneamente, essa prática marca o território balizado por questões como estas, que não são dramáticas, e a que o tempo e as circunstâncias hão-de eventualmente responder:

a) o maelström (pós-modernismo, pós-humanismo, etc)
b) o fim das grandes narrativas
c) o texto electrónico
d) novas formas de texto literário (aspectos críticos de uma experiência positiva)
e) narrativas pós-humanas (corpos pós-humanos - poder e prazer)
f) a interactividade: um logro?
g) acesso a um serviço universal (comunidades abertas)
h) novas formas de imaginação fechada (ciborguização, interpelação de dóceis corpos digitais)
i) responsabilidade legal pelos conteúdos (microfísica do poder, censura)
j) tecnologias da liberdade (traições, revelações, destruição, modificação, negação de serviços)

Para voltar ao nosso objecto de estudo: o hipertexto ficcional, a questão fundamental das hiperficções é que, para serem arte, tendem a ser extremamente idênticas à vida. Movimentam-se deslocam-se, consentindo tudo, e assim apenas permitem que encontremos a nossa própria perspectiva. São tão mútliplas que revelam o que é individual: nós próprios, leitores da nossa própria história. O hipertexto é uma ideia antiga, uma utopia antiga, um lindo jogo. Os livros das séries intituladas "Choose Your Own Adventures", ou "Find Your Fate" oferecem aos jovens leitores algo de semelhante ao jogo de aventura computurizado. Cada livro contém um jardim com caminhos bifurcados, entre os quais o leitor tem de escolher um. Poderá isso levar a novas formas de literatura? U. Eco tem estado a usar o hipertexto fantástico chamado "Scrabble" de há trinta anos para cá. Com o "Scrabble" pode estabelecer-se toda e qualquer ligação oblíqua, qualquer combinação de frases. Como U. Eco aponta: "Se formos poetas, temos o nosso próprio 'Scrabble' mental. O hipersistema é o futuro. O hipertexto pode finalidades pedagógicas: tentar misturar as coisas, encontrar novas possibilidades. Pois, sim, mas não é uma revolução na literatura ou na poesia". A razão é a seguinte: "Quando já se tem as brochuras, Joyce e Mallarmé, não é preciso o hipertexto para se ter uma leitura aberta da literatura" . A maior parte das ficções em hipertexto que existem por esse mundo não passam, afinal, de textos lineares com notas de pé de página. Os seus autores tentam conservar elementos da ficção linear, tais como o enredo e as personagens. Aliás, a ficção em hipertexto deveria ser o que pretende constituir: uma forma superior à ficção linear. Para isso, deveria conservar o que a ficção linear tem de melhor e pôr de lado o que ela tem de pior. Ora, o que é que a ficção linear tem de melhor? A resposta de Sbauerba é a seguinte: "a ficção linear insere a realidade em embalagens manuseáveis; torna possível experimentar-se a realidade e a perspectiva alheias, viver-se a vida e sentir as emoções de outrem... o autor tem de encontrar o equilíbrio correcto entre o que acontece e o que não poderia de modo algum acontecer, para manter o interesse do leitor". O que é a ficção linear tem de pior? Do que a ficção em hipertexto pode abdicar é do enredo-como-estrutura. A ficção em hipertexto pode abdicar das ideias de princípio, meio e fim; para constituir um género diferente tem de renunciar à ideia do enredo tradicional.

A literatura torna-se um jogo disputado num labirinto: auto-enclausurado, auto-justificado e absurdo para quem não aprendeu o código. A facilidade de saltar de um nódulo para outro favorece a superficialidade. Há um risco semelhante não apenas no que tange à escolaridade, mas sobretudo à cultura e à gestação de um pensamento próprio.

Do mesmo modo que a tecnologia informática tornou possível o hipertexto, a mobilidade textual medieval pode ser vista como a consequência da prática do manuscrito. Portanto, a mobilidade textual resulta da natureza da tecnologia manuscrita - até surgirem certas limitações que reduzem a intervenção do copista. Meadow usa a expressão "hipertexto bem escrito", e previamente "um autor bom", referindo-se a um autor linear - o que levanta desde logo o problema das regras do bem escrever. Quer dizer que há bons e maus escritores no ciberespaço. A opção é, a meu ver, apenas esta: navegar por este espaço, independentemente de surdir ou não à nossa frente a utopia de um paraíso tecnológico. Todas as metáforas utilizadas para evocar o ciberespaço implicam o ideal da libertação dos constrangimentos da existência material: "O ciberespaço é um habitat da imaginação, um habitat para a imaginação... o lugar e triunfo da poesia sobre a pobreza, do 'pode-ser-assim' sobre o 'deve-ser-assim'" .

Entre o discurso da sedução e o discurso crítico é preciso encontrar o bom comércio, que permita, simultaneamente, a prática da técnica do desassossego e aquilo que nos chega como lugar comum a acolher e praticar. Fica o problema da ética da leitura: o fosso entre aquilo que lemos e aquilo que somos, entre a palavra e a letra, o dito e o dizer. Não se trata de afirmar que o que se é é mais verdadeiro do que o que se lê, a questão reside na relação entre estas duas instâncias. É certo que há riscos: por exemplo, o de ceder ao êxtase da comunicação, um estado quase místico, do qual se espera a libertação da realidade; e também o risco de se entregar discurso que flui e nos leva até ao nosso porto, ou pelo menos até ao limiar que não ultrapassamos. Se já não há realidade, não há mais razão para combater. U critério ético importante para avaliar qualquer tecnologia nova é a qualidade e o grau de sociabilidade que ela torna possível (Rheingold, 1993). Se estamos à beira de um novo Renascimento, é especialmente por estarmos a destruir as barreiras entre mundos artísticos separados (outrora). A opção que D. de Kherkhove faz em favor de Jericó, como uma vitória do "software" sobre o "hardware" pode ser justificada: "a súbita aceleração tecnológica e social, sem preparação prévia, pode, de facto, levar à desintegração, como as duas Guerras Mundiais amplamente demonstraram. É esta certamente a faceta de Babel. Contudo, estamos a começar a acostumar-nos à velocidade... estamos a começar a aperceber-nos desta unidade como consistindo em enormes formas de ondas de correntes eléctricas em campos electromagnéticos. É esta a onda de som que poderia fazer desmoronar todas as muralhas de cidades e estados nacionais. A viragem que deveríamos esperar não é um desastre, mas uma transformação - uma imagem da humanidade radicalmente nova" .

Os sistemas de pensamento - científicos, artísticos, metafísicos, etc. - são sempre fundamentalmente conservadores. Como fez notar Kuhn, os paradigmas, ou modelos plenamente abrangentes da experiência, tendem a tornar invisíveis, ou a rotular como irrelevantes, as novas descobertas que minam as suas convicções ou as suas expectativas básicas. Este "princípio de conservação", esta inércia, parece ser o denominador comum das teorias científicas dos modelos económicos ou das normas comportamentais . As novas tecnologias estão particularmente em harmonia com as abordagens pós-estruturalistas e pós-modernistas da textualidade, algo que aparece resumido no subtítulo do livro de George Landow de 1992, Hypertext: the Convergence of Contemporary Critical Theory and Technology.